quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O Abominável Dr. Phibes

Um dos maiores monstros sagrados do cinema de horror, Vincent Price é lembrado por vários de seus personagens ao longo de sua carreira, mas nada tão marcante quanto sua interpretação como o psicopata Dr. Anton Phibes.

Assim como imortalizamos ao longo da história o monstro de Frankenstein a Boris Karloff e o Conde Drácula a Bela Lugosi (anos 1930 e 40) e Christopher Lee (décadas de 1950, 60 e 70), ou ainda Freddy Krueger a Robert Englund (anos 1980 e 90 - este, é claro, infinitamente inferior aos mitos anteriores), Price ficou associado ao Dr. Phibes, único personagem em sua carreira a ter uma sequência de filmes.

Dirigido em 1971 por Robert Fuest e com produção inglesa da American International Pictures, "O Abominável Dr. Phibes", é um típico exemplo do estilo "camp", com visual e cenários muito coloridos e estética brega, porém um clássico absoluto do humor negro em sua essência.

O Dr. Phibes, deformado em um acidente e dado como morto, planeja uma maquiavélica vingança contra a equipe de cirurgiões que ele acusa de falharem em salvar a sua esposa Victoria, na mesa de operações. Auxiliado por uma bela, misteriosa e silenciosa jovem, Vulnavia (Virginia North), ele executa todos com muita arte e engenhosidade, inspirando-se nas históricas dez pragas de Deus contra um faraó egípcio. Os assassinatos calculados despertaram a atenção da polícia que em vão fica em seu encalço tentando impedí-lo.

Desfigurado pelo acidente, Dr. Phibes transformou-se numa criatura hedionda que utilizava uma máscara com suas antigas feições e falava através de um gramofone plugado a sua garganta que alterava seu tom de voz para algo bem gutural. E é através desse orifício que ele também ingeria seus alimentos.

Apesar dos brutais e inventivos assassinatos, Dr. Phibes mantinha uma atmosfera romântica em torno de sua vingança, onde possuía até uma orquestra de bonecos mecânicos em seu esconderijo, que tocavam para ele e sua assistente dançarem comemorando cada crime cometido. Além disso, ele mantinha também um órgão no estilo "O Fantasma da Ópera", onde tocava suas melodias fúnebres, enquanto derretia a face de bonecos de cera com fogo após o sucesso de mais assassinatos.

Após dizimar com maestria a equipe de médicos incompetentes, Dr. Phibes voltou novamente em 1972 na sequência "A Câmara de Horrores do Abominável Dr. Phibes" com mesma direção e produção do filme original. Agora ele parte para o Egito buscando um rio perdido e oculto nas pirâmides (O Rio da Vida) onde supostamente se alcançava a imortalidade. Leva então consigo sua esposa Victoria embalsamada, na esperança de ressuscitá-la e obter a vida eterna para os dois. Em seu rastro seguem também um grupo de arqueólogos com o mesmo objetivo, obrigando Dr. Phibes a liquidá-los.

A sequência de assassinatos artísticos continua com a mesma intensidade, talvez um pouco mais gratuitos agora, porém cada vez mais engenhosos e divertidos, o que inspirou outro filme de Vincent Price no ano seguinte, "As Sete Máscaras da Morte" (Theatre of Blood), onde interpretou um ator shakespereano que simula suicídio e se vinga ferozmente de seus críticos, inspirando-se em textos de Shakespeare.

O Dr. Phibes foi um típico "serial killer" do cinema, porém ele chacinava suas vítimas com classe e genialidade, arquitetando cuidadosamente seus métodos e maneiras de matar, como um verdadeiro cavalheiro, combinando com a personalidade aristocrática de Vincent Price. Bem diferente das dezenas de filmes posteriores onde os assassinos em série como os psicopatas famosos, porém pouco inteligentes, Jason Voorhees (Sexta-Feira 13) e Michael Myers (Halloween), interpretados por atores inexpressivos, sempre mancharam as telas de sangue ao exagero e com pouca inventividade em seus crimes, variando apenas no uso das armas (de machados à serras elétricas) ou nos métodos brutais (mutilações diversas).

Mas o horror é fascinante por tudo isso, por abranger um infindável universo onde há espaço para todas as manifestações e estilos e onde tudo tem características próprias e sua importância na consolidação do gênero como arte de entretenimento (por Renato Rosatti).


Ficha Técnica

O Abominável Dr. Phibes (The Abominable Dr. Phibes, ING, 1971) 91minutos
Direção: Robert Fuest
Roteiro: James Whiton e William Goldstein
Produção: Louis M. Heyward e Ron Dunas
Produção Executiva: Samuel Z. Arkoff e James H. Nicholson
Música: Basil Kirchin
Fotografia: Norman Warwick
Maquiagem: Trevor Cole-Rees
Efeitos Especiais: George Blackwell
Edição: Tristam Cones
Direção de Arte: Bernard Reeves
Elenco: Vincent Price (Dr. Anton Phibes), Joseph Cotten (Dr. Vesalius), Peter Jeffrey (Inspetor Trout), Hugh Griffith (Rabbi), Terry-Thomas (Dr. Longstreet), Virginia North (Vulnavia), Caroline Munro (Victoria Phibes), Aubrey Woods (Goldsmith), Susan Travers (Enfermeira Allen); David Hutcheson (Dr. Hedgepath); Edward Burnham (Dr. Dunwoody); Alex Scott (Dr. Hargreaves); Peter Gilmore (Dr. Kitaj); Sean Bury (Lem Vesalius).

Sinopse

Para quem gosta de filmes de terror – no que têm de pior e de melhor -, um prato cheio. Dr. Phibes (Vincent Price) é um gênio louco e incompreendido, querendo se vingar dos médicos que o julgaram culpado pela morte da esposa. Escondido num cinema abandonado, arquiteta planos mirabolantes a partir da leitura do Velho Testamento, mais especificamente da história que fala das sete pragas do Egito.

Fontes: O Abominável Dr. Phibes; Webcine: Abominável Dr. Phibes, O.

O Bebê de Rosemary

1968 não foi apenas um ano de grandes agitações políticas e sociais, mas também de grandes momentos para o universo do terror: George Romero fez levantar, literalmente, os mortos para atacar os vivos no clássico A Noite dos Mortos-Vivos (Night of Living Dead), mostrando que o horror explícito e orçamento mínimo poderiam gerar uma obra-prima do cinema; os Rolling Stones colocavam Satã na ordem do dia com a música "Sympathy For The Devil", onde o "Príncipe do Mal" era retratado como um Anti-Herói e suas maldades serviam como contraponto à ordem social "careta" e ao Establishment, imagens típicas da Contracultura da época; e o diretor polonês Roman Polanski trouxe nada mais nada menos do que o filho do Demônio, o próprio anti-Cristo, às telas no clássico O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby).

Baseado no livro de grande sucesso de Ira Levin, a história é simples e apavorante: jovem recém-casada, Rosemary (Mia Farrow), muda-se com seu marido, Guy (John Cassavetes), um ator desempregado, para um edifício soturno (Dakota) em Nova Iorque. Logo, ela começa a desconfiar que seu marido está envolvido com magia negra (junto com os vizinhos, um "simpático" casal de velhinhos) e, em troca do sucesso, quer entregar seu filho para rituais macabros. O filme, então, narra a luta de Rosemary para manter a criança longe de seus perseguidores, reservando-lhe uma trágica surpresa: seu filho não era de Guy, mas sim do Demônio.

Produzido pelo legendário especialista em filmes de terror William Castle (que faz uma "ponta" como o homem que vai na cabine telefônica e assusta a fugitiva Rosemary), o primeiro filme de Roman Polanski nos Estados Unidos conseguiu criar um suspense intenso: utilizando-se de pequenos espaços num apartamento fantasmagórico (sombras, pessoas passando sem serem notadas, vozes vindas da parede, etc.), Rosemary fica presa completamente - mesmo numa cidade gigantesca como Nova Iorque, as "redes" podem ser fechadas e não existe lugar para fugir.

O filme tornou-se uma obra-prima do terror psicológico, apesar de apresentar momentos fortíssimos, como as impressionantes cenas do Demônio transando com Rosemary; a fragilidade dela sofrendo de inexplicáveis dores de gestação; o clima de perseguição que a faz ficar paranóica; e o final chocante (Rosemary, com uma faca, invade o apartamento do lado, descobre a real natureza de seu filho - Polanski acrescentou vários fotogramas da "criança", destacando os olhos horripilantes - e aceita ser sua mãe), entre outras.

Tais cenas provocaram polêmica - a Igreja Católica classificou o filme como "blasfemo", assim como outras religiões, que procuraram impedir a exibição do filme - e grande sucesso de bilheteria. O filme e o livro abriram uma série de trabalhos sobre cultos e demônios na época. Podemos também colocar este filme como o precursor direto dos futuros clássicos O Exorcista (The Exorcist) e A Profecia (The Omem).

Além da direção criativa de Polanski, nada disso seria possível sem a fantástica interpretação do elenco: Mia Farrow está perfeita como a frágil Rosemary, sofrendo todos os terrores possíveis para proteger seu "filho"; John Cassavetes está perfeito como o marido que entrega tudo ao Demônio; Ruth Gordon, a velhinha simpática e demoníaca, ganharia o Oscar de atriz coadjuvante.

E, como todo clássico que se preze, também apresentou suas "maldições": um ano depois do lançamento do filme, a esposa de Roman Polanski, a belíssima atriz Sharon Tate, foi assassinada brutalmente pela "comunidade" liderada por Charles Manson (ele misturava passagens da Bíblia com letras do "Álbum Branco" dos Beatles, num dos episódios mais violentos da década de 60 e que ajudaria a destruir a Contracultura); em 1980, na frente do mesmo edifício Dakota onde o filme foi rodado, o ex-beatle John Lennon foi assassinado. O diabo andou às soltas, sem dúvida (por Orivaldo Leme Biagi).

Ficha Técnica

Título: O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, Estados Unidos, 1968). 136 minutos
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Roman Polanski, a partir de romance escrito por Ira Levin
Produção: William Castle; Dona Holloway
Fotografia: William A. Fraker
Música: Christopher Komeda
Edição: Sam O'Steen; Bob Wyman
Desenhos de Produção: Richard Sylbert
Direção de Arte: Joel Schiller
Elenco: Mia Farrow (Rosemary Woodhouse); John Cassavetes (Guy Woodhouse); Ruth Gordon (Minnie Castevet); Sidney Blackmer (Roman Castevet); Maurice Evans (Edward 'Hutch' Hutchins); Ralph Bellamy (Dr. Abraham Sapirstein); Victoria Vetri (Terry Gionoffrio - como Angela Dorian); Patsy Kelly (Laura-Louise); Elisha Cook Jr (Mr. Nicklas - Elisha Cook); Emmaline Henry (Elise Dunstan).

Sinopse

Alugando um apartamento em antigo prédio de Nova Iorque, os recém-casados Rosemary e Guy Woodhouse (Farrow e Cassavetes) organizam suas vidas com pequena ajuda dos vizinhos Minnie e Roman Castevet (Gordon e Blackmer). Guy é ator e luta por um papel de destaque, enquanto Rosemary decora com ar mais alegre o apartamento onde anteriormente foi cometido um crime. Guy consegue um papel graças a um acidente com o ator titular e, logo depois, Rosemary tem um pesadelo no qual é possuída pelo demônio. Passado algum tempo, Rosemary descobre que está grávida e é tratada por Minnie e o médico desta, Dr. Sapirstein (Bellamy), com vitaminas especiais. Fatos estranhos levam Rosemary a desconfiar que todas estas pessoas estão envolvidas com magia negra, começando a suspeitar que o marido, um ator que, literalmente, venderia a alma ao diabo para conquistar o sucesso, mantém ligações perigosas com vizinhos praticantes de bruxaria, que desejam possuir o filho dela que vai nascer.

Prêmios

Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante (Ruth Gordon) e indicação para Melhor Roteiro Adaptado.

Fontes: Boca do Inferno: Bebê de Rosemary; Webcine: O bebê de Rosemary.

Giovanni Bocaccio

Giovanni Bocaccio nasceu em Paris (1313) e morreu em Certaldo, Toscana(1375). Filho de um comerciante, Boccaccio não se dedicou ao comércio como era o real desejo de seu pai. Preferiu cultivar o talento literário, que se manifestou desde muito cedo. Com isso produziu uma obra que lhe garante lugar entre os maiores nomes do início da literatura italiana, ao lado de Dante e de Petrarca.

Após os primeiros estudos em Florença, Boccaccio foi enviado a Nápoles para completar sua formação na sucursal dos Bardi, banqueiros para os quais trabalhava seu pai, que insistia em fazê-lo trabalhar no comércio. Aos 18 anos, consegue autorização para abandonar os estudos comerciais, mas o pai impõe-lhe uma nova escolha: direito canônico. Boccaccio aceita o mal menor, e lança-se à literatura com afinco, estudando escritores franceses em tradução italiana, poemas franceses no original e, principalmente, escritores latinos.

Em Nápoles, é introduzido na corte por um amigo e conhece Maria DAquino (ou Giovanna, não se sabe ao certo), que celebraria em suas obras sob o nome de Fiametta. Ao contrário de Dante, seu amor é profundamente sensual; colocando à distância a imagem da mulher idealizada segundo a tradição da lírica medieval. É dessa época sua primeira obra importante: o Filostrato, autêntico relato da paixão sensual.

Terminado seu romance com Fiametta (1339), inicia-se uma fase infeliz para Boccaccio, não só pelas desventuras amorosas, mas pela pobreza que se segue: os grandes bancos florentinos, entre os quais os dos Bardi, haviam sofrido grande golpe, devido a um empréstimo cedido ao rei inglês não reembolsado. Boccaccio perde sua posição social, deixa de freqüentar a corte de Nápoles e passa a morar em um bairro modesto. É quando começa a conhecer o mundo das ruas.

Retorna a Florença em 1341, onde publica Visão Amorosa, elegia em prosa. Entre 1344 e 1346, escreve Ninfale Fiesolano, lenda construída segundo o modelo do escritor latino Ovídio, onde a inspiração da Antiguidade é suplantada pelo tratamento moderno do assunto.

A peste que assola a Europa, chegando a Florença em 1348, dá a Boccaccio o quadro para sua obra mais importante: Decamerão,escrito enre 1348 e 1353. O livro se compõe de cem novelas que refletem a crise das concepções do mundo religioso. Para fugir à peste, dez jovens refugiam-se por dez dias num local solitário, narrando histórias de amor - eis o enredo da obra de Boccaccio.

A idéia central do Decamerão é a de que a natureza dita ao homem as regras fundamentais de sua conduta. Sufocar os sentimentos é desvirtuar a própria vida.Reafirmando a ruptura com os princípios morais e tradições literárias da Idade Média, que defendiam o valor da vida supraterrena e do amor espiritual, insiste na exaltação da beleza e do amor terrenos.

O Decamerão fez de Boccaccio o primeiro grande realista da literatura universal. Em 1355 escreve Corbaccio, sua última obra em dialeto toscano. A partir daí, utilizará somente o latim. Escreveu ainda Mulheres Célebres (1362), uma série de 104 biografias de mulheres conhecidas por seus vícios e virtudes. Pretendia ainda publicar as conferências que realizou sobre Dante: Os Comentários sobre a Divina Comédia. Mas a morte abateu-o, impedindo a conclusão do livro.

A Peste Negra


A peste negra foi a mais trágica epidemia que a História registrou, tendo produzido um morticínio sem paralelo. Assim foi chamada por causa das manchas escuras que apareciam na pele dos enfermos. Como em outras epidemias, teve início na Ásia Central, espalhando-se por via terrestre e marítima em todas as direções.

Em 1334 causou 5.000.000 de mortes na Mongólia e no norte da China. Houve grande mortandade na Mesopotâmia e na Síria, cujas estradas ficaram juncadas de cadáveres dos que fugiam das cidades. No Cairo os mortos eram atirados em valas comuns e em Alexandria os cadáveres ficaram insepultos. Calcula-se em 24 milhões o número de mortos nos países do Oriente.

Em 1347 a epidemia alcançou a Criméia, o arquipélago grego e a Sicília. Em 1348 embarcações genovesas procedentes da Criméia aportaram em Marselha, no sul da França, ali disseminando a doença. Em um ano, a maior parte da população de Marselha foi dizimada pela peste.

Em 1349 a peste chegou ao centro e ao norte da Itália e dali se estendeu a toda a Europa. Em sua caminhada devastadora, semeou a desolação e a morte nos campos e nas cidades. Povoados inteiros se transformaram em cemitérios. Calcula-se que a Europa tenha perdido a metade de sua população.

Esta epidemia inspirou o livro Decamerão, de Giovanni Bocaccio, que viveu de 1313 a 1375. As cenas que descreve no prólogo do livro se passam na cidade de Florença, na Itália:

"Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão de nossas iniqüidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.

Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ficou purificada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para esse trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manutenção do bom estado sanitário. Pouco adiantaram as súplicas humildes, feitas em número muito elevado, às vezes por pessoas devotas isoladas, às vezes por procissões de pessoas, alinhadas, e às vezes por outros modos dirigidas a Deus.

A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas, as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte futura, também as manchas passaram a ser mortais, depois, para os que as tinham instaladas.

Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tais doenças. Ao contrário. Fosse porque a natureza da enfermidade não aceitava nada disso, fosse que a ignorância dos curandeiros não lhes indicasse de que ponto partir e, por isso mesmo, não se dava o remédio adequado. Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de medicina. Assim como era certo que poucos se curavam, também é certo que, ao contrário desses, quase todos, após o terceiro dia do surgimento dos sinais referidos acima, faleciam. Sucumbiam uns mais cedo, outros mais tarde; a maioria ia-se para o túmulo sem qualquer febre, nem outra complicação.

Esta peste foi de extrema violência; pois ela atirava-se contra os sãos, a partir dos doentes, sempre que doentes e sãos estivessem juntos. Ela agia assim de modo igual àquele pelo qual procede o fogo: passa às coisas secas, ou untadas, estando elas muito próximas dele. A enfermidade ainda fez mais. Não apenas o conversar e o cuidar de enfermos contagiavam os sãos com esta doença, por causa da morte comum, porém mesmo o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada, ou utilizada por aqueles enfermos, parecia transferir, ao que bulisse, a doença referida.

É de causar espanto o ouvir aquilo que preciso dizer. Não fosse visto pelos olhos de muitos, assim como pelos meus, aquilo que se passou, dificilmente me atreveria a acreditar no que sucedera, e ainda menos a escrever, por mais merecedora de fé a pessoa pela qual eu o ouvisse contar. Garanto que foi de tal poder a peste mencionada, no capricho de transferir-se de um a outro mortal, que não passava apenas de homem para homem; muitas vezes chegou a fazer, de modo visível, o que se diz mais à frente, e que é muito mais: a coisa do homem doente. ou que morrera de tal doença, quando tocada por outro ser, animal, fora da espécie do homem, não apenas o contaminava como também o matava dentro de muito pouco tempo.

Deste fato tiveram os meus olhos (como há pouco se afirmou), certo dia, entre outras vezes, a seguinte experiência: as vestes rotas de um pobre sujeito, morto por essa doença, foram jogadas à rua. Dois porcos, de início, segundo costumam fazer, bom sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na própria cara. Apenas uma hora depois, após vezes umas convulsões, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caíram mortos por terra, sobre os trapos em tão má hora jogados à rua.

De tais circunstâncias e muitas outras idênticas a estas, ou mesmo piores, nasciam muitos terrores e muitos lances de imaginação, naqueles que ainda estavam vivos. E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo.

Pessoas havia que julgavam que o viver com moderação e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam para se resistir ao mal. Formando o seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera. Não procuravam viver melhor. Moderadamente faziam uso de alimentos simples, assim como de vinhos muito bons. Fugiam a qualquer ato de luxúria. Não ficavam a palestrar com ninguém, nem queriam ouvir ainda falar de nenhum caso de morte, ou de doença, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com a música e com os prazeres que pudessem ter.

Outras pessoas, levadas a uma opinião diversa desta, declaravam que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder. Como diziam, assim procediam, do modo como lhes fosse possível, dia e noite. Iam ora a uma tasca, ora a outra; bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia. obrigando os donos a escutar o que lhes desse na telha de dizer. E podiam cedo, agir assim sem grandes preocupações, porque cada um - quase como se não houvesse mais viver - já deixara ao léu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dará a própria pessoa. Por isso, a maior parte das casas ficou sendo de moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o próprio dono. E, com este proceder inteiramente bestial, as pessoas punham-se sempre longe dos doentes, tanto quanto possível.

Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim não podiam exercer nenhuma função. Em conseqüência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

Inúmeras pessoas preferiam o caminho do meio, entre os dois acima assinalados. Não evitavam os bons acepipes, como os primeiros, nem, igual aos segundos, entregavam-se à bebida e a outras formas de dissolução. Ao contrário. Usavam todas as coisas, com suficiência e moderadamente, de acordo com o apetite. Não viviam fechados. Vagavam de um lugar a outro, levando, uns, flores nas mãos, ervas odoríferas outros, e outros, ainda, diferentes tipos de especiarias; levavam as ervas ao nariz, considerando excelente coisa o confortar o cérebro com o seu perfume. Era como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenças e dos remédios.

Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porventura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que não havia remédio melhor, nem tão eficaz, contra as pestilências, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pestilências ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, não se importando fosse com o que fosse, a não ser com eles mesmos, inúmeros homens e mulheres deixaram a própria cidade, as próprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a outrem pertencia, ou, pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a cólera de Deus estivesse destinada não a castigar a iniqüidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, somente os que teimassem em ficar dentro dos muros dc sua cidade. Ou como se essa cólera fosse apenas um aviso para que ninguém permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opinadores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, caíam enfermos e, quase abandonados à própria sorte, definhavam inteiramente. Eles mesmos, quando estavam sãos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal.

Vamos pôr de lado a circunstância de um cidadão ter repugnância de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro; de os parentes, juntos, pouquíssimas vezes ou jamais se visitarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim só o fazerem de longe. Tal inquietação entrara, com tanto estardalhaço, no peito dos homens e das mulheres, que um irmão deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irmã, a irmã; e, freqüentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mães sentiam- se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos, como se o não foram (e esta é a coisa pior, difícil de se crer).

Em decorrência de tais condições, àqueles para os quais a multidão era inestimável, aos homens e mulheres que ficavam doentes, não restava outro recurso senão a caridade dos amigos (e destes poucos restavam), ou da avareza dos empregados domésticos. A estes eram pagos fabulosos salários, e tinham tratamento superior ao devido, ainda que, apesar disto, muitos patrões não enfermassem. Grande parte dos patrões era formada por homens e mulheres de elevado talento, e a maioria desses serviços não era usada. Os empregados quase não serviam para outra coisa senão apresentar algo que fosse pedido pelos doentes, ou para os fitar, quando eles faleciam. Quando prestavam esses serviços, freqüentemente eles mesmos se perdiam, junto com o ganho alcançado.

Pelo fato de serem os enfermos abandonados pelos vizinhos, pelos parentes e amigos, tanto quanto pela circunstância de escassearem os criados, apareceu um hábito talvez nunca praticado antes. O hábito foi que nenhuma mulher, por mais pudica, bela ou nobre que fosse, se sentia incomodada por ter a seu serviço, caso adoecesse, um homem, ainda que desconhecido; não importava que tipo fosse de homem, jovem ou não. A ele, sem nenhum pudor, ela mostrava qualquer parte do próprio corpo, do mesmo modo que o exporia a outra mulher, quando a necessidade de sua enfermidade o exigisse. Para as mulheres que escaparam com vida, isto foi, quiçá, motivo de deslizes e de desonestidades, no período que se seguiu à peste.Além disto, sobreveio a morte de inúmeras pessoas, que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrência da escassez de serviços no momento azado, que os doentes precisavam mas não alcançavam, e também em vista da violência da peste, era tão grande o número dos que faleciam, de dia e de noite, na cidade, que provocava estupefação escutar, e ainda mais ver, o que ocorria. Porque por força das circunstâncias, muitas coisas, que contrariavam os costumes básicos de qualquer cidadão, começaram a existir entre os que permaneciam vivos.

Costumava-se (como ainda hoje o vemos) reunirem-se as mulheres, parentes e vizinhas na residência do que morria. Ali, em companhia das mulheres mais aparentadas ao defunto, elas choravam. De outro lado, diante da casa do morto, vizinhos e inúmeros cidadãos reuniam-se com os seus achegados; de acordo com a categoria do morto, apresentava-se o padre. Desse modo, o falecido era conduzido à igreja que escolhera momentos antes de morrer. Os seus pares levavam-no aos ombros, com pompa fúnebre, de velas e de cantos. Tais cerimônias quase se extinguiram, no todo ou parcialmente, quando principiou a crescer o furor da peste. E muitas novidades vieram substituí-las. Não apenas faleciam as pessoas sem que houvesse grande número de mulheres à volta, como também eram incontáveis as que partiam desta vida sem nenhuma testemunha.

Eram em número reduzidíssimo aqueles aos quais eram concedidos os prantos piedosos e as lágrimas sentidas de seus próprios parentes. Em vez de prantos e de lágrimas, passaram a usar-se, para a maior parte, os risos, as pilhérias, e as festas em boa parceria. Tal costume foi, gostosamente, aceito pelas mulheres, na sua maioria, após terem elas postergado a piedade feminina; e afirmavam que o faziam para salvação da alma dos que haviam partido. Fazia-se raro o caso daqueles cujos corpos tinham, indo para a igreja, o cortejo de dez ou doze de seus vizinhos. O féretro destes era carregado não por honrados e prestimosos cidadãos, porém por uma espécie de padioleiros, que se originaram da gente mais humilde, que recebiam o título de coveiros, e que apenas usavam seus préstimos por um preço combinado com antecedência. Tais padioleiros carregavam os caixões, a passos apressados, não à igreja que os defuntos haviam escolhido antes do passamento, porém, com freqüência, ao templo mais próximo. Os padioleiros caminhavam atrás de quatro ou de cinco clérigos, com raras velas; as mais das vezes iam mesmo sem nenhum clérigo. Estes, quando os havia, não perdiam muito fôlego em seus ofícios solenes; ajudados pelos tais coveiros, depositavam os caixões, de preferência, na primeira cova vazia que encontravam.

O tratamento dado às pessoas mais pobres, e à maioria da gente da classe média, era ainda de maior miséria. Em sua maioria, tal gente era retida nas próprias casas, ou por esperança, ou por pobreza. Ficando, deste modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares por dia; como não eram medicados, nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam todos quase sem redenção. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de noite. Inúmeros outros, mesmo morrendo em suas residências, levavam os seus vizinhos a não se manifestarem, mais por causa do mau cheiro dos próprios corpos em decomposição, do que por outro motivo. De pessoas assim e de outras, que faleciam em toda parte, as casas estavam cheias.

Um modo único de proceder, o mesmo sempre, era praticado pela maioria dos vizinhos. Procediam estes levados não menos pelo terror de que fossem afetados pela corrupção dos corpos, do que pela caridade que alimentavam quanto aos falecidos. Sós, ou auxiliados por alguns portadores, quando logravam achá-los, retiravam das residências os cadáveres; colocavam os corpos à frente da porta da casa, onde, sobretudo na parte da manhã, eram vistos cm quantidade inumerável pelos que perambulavam pela cidade e que, vendo-os, adotavam medidas para o preparo e remessa dos caixões.

Tão grande era o número de mortos que, escasseando os caixões, os cadáveres eram postos em cima de simples tábuas. Não foi um só o caixão a receber dois ou três mortos simultaneamente. Também não sucedeu uma vez apenas que esposa e marido, ou dois e três irmãos, ou pai e filho, foram encerrados no mesmo féretro. Muitíssimos destes fatos poderiam ter sido narrados.

E infinitas vezes se viu que, indo dois clérigos, com uma cruz, por alguém, atrás do primeiro se colocarem três ou quatro caixões, carregados por seus respectivos portadores; assim sendo, onde supunham os padres ter um morto para enterrar, havia sete ou oito; com freqüência, até mais. Tais mortos excedentes eram, por esta razão, homenageados com alguma lágrima, às vezes, ou alguma vela, ou alguma companhia. A tal estado chegou a coisa, que não mais se tratava, quanto aos homens que morriam, com mais carinho do que se trata agora das cabras. Porque, com clara evidência pareceu ter de se passar, pacientemente, pelo que o curso natural dos eventos não conseguira mostrar, aos mais cultos, com prejuízos pequenos e esquisitos. Geralmente, a grandeza de um mal costuma transmudar os simples, ao que parece, em peritos e negligentes.

Para dar sepultura à grande quantidade de corpos que se encaminhava a qualquer igreja, todos os dias, quase a toda hora, não era suficiente a terra já sagrada; e menos ainda seria suficiente se se desejasse dar a cada corpo um lugar próprio, conforme o antigo costume. Por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios, pois todos os lugares estavam repletos, ainda que alguns fossem muito grandes; punham- se nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios; cada caixão era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra; sobre ele, outro era posto, o qual, por sua vez, era recoberto, até que se atingisse a boca da cova, ao rés do chão. E, para que não se remexa em cada minúcia de nossas antigas misérias, acontecidas no interior da cidade, afirmo que, mesmo tendo um período adverso passado por ela, riem por isso deixou a peste de poupar algo ao condado.

No condado - vamos pôr de parte os castelos, que, em sua pequenez, eram parecidos às cidades -, os operários, míseros e pobres, faleciam. Tombavam sem vida, pelas vilas isoladas e pelos campos, com suas famílias, sem nenhuma ajuda de médico, nem auxílio de servidor; faleciam não como homens, e sim como animais, nas ruas, nas plantações, nas casas, dia e noite, ao deus-dará. Em decorrência disto, os trabalhadores do campo, conturbados em seus hábitos e parecendo transformados em moradores lascivos da cidade, não se importavam com nada, nem desejavam fazer coisa alguma. Como se aguardassem o dia em que seriam levados pela morte, todos se esforçavam, diligentemente, ao máximo, não em auxiliar a produção dos frutos futuros dos animais e das terras, assim como das antigas canseiras, mas sim em dar cabo dos frutos que estavam à mão. Sucedeu, pois, que os bois, os muares, as ovelhas, as cabras, os porcos, as galinhas, e mesmo os cachorros, tão fiéis sempre aos homens, passaram a perambular pelos campos, indiferentemente, por se verem expulsos da moradia de seus donos. As forragens, deixadas ao abandono nos campos, não apenas não tinham sido apanhadas, como nem sequer foram cortadas. Muitos animais, parecidos a seres pensantes, engordavam, pois pastavam bem no decorrer do dia, passavam a noite em suas casas, e não sofriam restrições da parte de nenhum pastor.

O que se poderá dizer ainda - pondo-se de parte o condado, para se tornar a tratar da cidade -, a não ser que a crueza do céu foi de tal monta e tanta, e quiçá também o tenha sido, em parte, a crueldade dos homens, que, no período que vai de março a julho, mais de 100 000 pessoas é certo que foram arrebatadas da vida, no circuito dos muros da cidade de Florença? Nesse número estão incluídos tanto aqueles que foram levados pela força da pestífera doença, como aqueles que, doentes, foram mal atendidos, ou abandonados às contingências, em razão do medo que os sãos alimentavam.

Antes que sobreviesse este mortal evento, ninguém suporia existir tanta gente dentro da cidade. Quantos vastos palácios, quantas casas magníficas, quantas residências nobres, antes cheias de famílias, de senhores e de senhoras, ficaram vagos, perdendo até o derradeiro serviçal! Quantas linhagens memoráveis, quantas heranças importantes, quantas riquezas famosas foram despojadas de sucessor legítimo! Quantos valorosos homens, quantas mulheres belíssimas, quantos galantes moços - que Galeno teria considerado mais do que sadios, assim como Hipócrates, Esculápio e outros - tomaram o seu almoço de manhã com os seus parentes, colegas, amigos, e, em seguida, na tarde desse mesmo dia, jantaram no outro mundo, em companhia de seus antepassados!"

Fontes: "Decamerão" de Bocaccio; Grandes Epidemias da História

Profecias de Nostradamus


Michel de Notre-Dame nasceu em 14 de dezembro de 1503 na cidade de Saint Remy de Province, no sul da França. Ficou mais conhecido pela forma latinizada do seu nome. Formado em medicina, aprendeu letras e ciências, inclusive as ocultas, como a astrologia. Politicamente se destacou como conselheiro dos reids da França, Henrique II, Francisco II e Carlos IX, além de ser o homem de confiança da rainha Catarina de Médicis.

Ele tinha suas visões em seu quarto, numa bacia de água. Foi um dos maiores profetas de todos os tempos, prevendo acontecimentos históricos e fatos importantes da humanidade, alguns com precisão.

O tema mais impressionante de todos é sobre o fim dos tempos, em que Nostradamus relata seis papas futuros onde, a partir daí, seria o início do fim. Ele previu três anticristos encarnados em seres humanos. O primeiro seria Napoleão Bonaparte, o Segundo Adolf Hittler e o terceiro ainda está por vir (muitos estudiosos julgam ser Bill Gates III, que pois a soma numerológica do mesmo dá exatamente 666, que é o número da "besta" conforme previu Nostradamus).

De acordo com o profeta, o Armagedom iniciará com o poder desse anti-cristo. Outro fator consideravel é a aparição de falsos Cristos, que enganam os homens e habitam nossos tempos. Nas centúrias de Nostradamus encontramos descrições do último e mais poderoso Anticristo:

“O menino nascerá com dois dentes na garganta”; “Corcunda, será eleito pelo conselho o mais hediondo monstro visto na terra”; “Tarefa de assassino, enormes adultérios, grande inimigo de todo o gênero humano, ao qual fará pior que avós, tios, pais, em ferro, fogo, água, sanguinolento e desumano”

Nostradamus cita o mês 7 (julho) de 1999 como “a era do terror”, onde haverá uma grande invasão asiática do Anticristo. Haverá uma fome universal e pouca chuva. Um eclipse do sol sucederá o mais escuro e tenebroso verão que jamais existiu desde a criação e a morte de Cristo. Esse eclipse está previsto para 11 de outubro de 1999 (fato não acontecido).

Aqui estão algumas cartas de Nostradamus sobre alguns acontecimentos:

Carta ao filho Cesar Nostradamus:

“... O mundo, quando se aproximar a conflagração universal, sofrerá tantos dilúvios e tantas inundações que não sobrarão terrenos que a água não tenha coberto. E tão logo será esse período de calamidades que tudo perecerá pela água, fora a história e a topografia dos lugares.

Além dessas inundações, e em seus intervalos, algumas regiões estarão privadas de chuva até um tal ponto, com exceção de uma chuva de fogo que cairá do céu em grande abundância e de pedras candentes, que não ficará nada que não seja consumido. E isto logo e antes da última conflagração.

... Então as imagens do céu voltarão a mover-se, esse movimento superior que nos dá a terra estável e firme. Ela não se inclinará pelos séculos e séculos. ...

De Salon, 1º de março 1555
Michel Nostradamus”

Carta a Henrique, Rei da França II:

“... Depois, o grande império do Anticristo começará nos montes ATILA e em ZERFES de onde descerá com tropas incalculáveis, como a vinda do Espírito Santo procedente de 48 graus; mudará de lugar, perseguido pela abominação do Anticristo, que fará guerra contra o grande rei que desempenhará o papel de grande Vigário de Cristo e sua Igreja, em tempo útil e no momento favorável; esse acontecimento precederá um eclipse do Sol, o mais escuro e mais tenebroso jamais visto desde a criação do mundo até a morte e paixão de Jesus Cristo, e desde então até agora; depois, no mês de outubro, terá lugar uma grande translação, a tal ponto que todos pensarão que a Terra teria perdido seu movimento natural e estaria mergulhando nas trevas perpétuas. Antes disso, haverá sinais no ponto vernal. [...]

Em seguida sairá da haste há tanto estéril, e procederá do grau cinco, para renovar toda a Igreja Cristã. E uma grande paz, a união e a concórdia serão estabelecidas entre os povos dispersos e separados por poderes diferentes. E será conhecida uma tal paz que aquele que erguer e colocar em movimento a facção guerreira contra as diversas religiões será lançado nas profundezas de uma prisão, e o país enraivecido será unificado, depois de se juntar aos bons. [...]

Os países, as vilas, as cidades, as potências e as regiões que haviam abandonado os primeiros caminhos que percorriam a fim de se libertarem serão privados de sua liberdade, soçobrando num profundo cativeiro, e a religião será completamente perseguida. [...] Depois desse grande cão, aparecerá o maior mastim que destruirá tudo, mesmo aquilo que já fora destruído antes dele, depois que as igrejas haviam sido restauradas no seu primeiro estado e o clero reposto em suas funções, depois espalhará o deboche e a luxúria e cometerá milhares de faltas.

[...] Então serão feitas às Igrejas inúmeras perseguições como jamais se viram. E entrementes começará tamanha pestilência que mais de dois terços da humanidade perecerão. A tal ponto que não se conhecerão mais os proprietários dos campos e das casas e a relva crescerá nas ruas das cidades além da altura dos joelhos. [...]

E o Santo Sepulcro ficará durante um longo espaço de tempo abandonado, contemplado apenas pelos céus, sol e a lua. E na Cidade Santa não habitará mais que um pequeno povo, pelo número, mas grande pela sua cultura profana. [...]

Segundo a computação astronômica, e relacionada com as sagradas escrituras, a perseguição dos homens da Igreja terá origem no poderio dos Reis Aquilionários unidos aos orientais. E essa perseguição durará onze anos, um pouco menos, e então será derrotado o principal Rei Aquilionário. .[...] E esse Rei cometerá crueldades incríveis contra a Igreja, ao ponto de que o sangue humano correrá nas ruas e nas igrejas, como a água de forte chuva; e os rios próximos ficarão rubros de sangue e, por outro lado, o mar se tingirá de vermelho com uma grande guerra naval [...] Depois, nesse mesmo ano, e durante os anos seguintes, ocorrerá a mais horrível pestilência, que se ajuntará à fome precedente e serão conhecidas grandes tribulações jamais vistas desde a fundação da Igreja de Cristo, e isso em todas as regiões Latinas, o que deixará traços nas regiões da Espanha. [...]

Depois desse tempo, que parecerá longo aos homens, a face da Terra será renovada com a chegada do Reino de Saturno e do século de Ouro. Deus Criador ordenará, ouvindo a aflição de seu povo, que Satanás seja agrilhoado e atirado no abismo do Inferno, na fossa profunda: começará então entre Deus e os homens uma paz universal [...]

[...] Eu poderia ter feito cálculos mais minuciosos e adaptados uns aos outros, mas considerando, oh Sereníssimo Rei, que a censura pode criar algumas dificuldades, retirei a pena do papel durante a calma de minhas noites. Na verdade, oh poderoso Rei de todas as coisas, muitos dos acontecimentos futuros são expressos claramente com bom senso e concisão, mas eu não quis e não pude reunir tudo nesta carta que vos dirijo. [...]

De Salon, 27 de junho 1558
Michel Nostradamus”

Algumas Centúrias de Nostradamus:

As Centúrias de Nostradamus, separadas por assunto. Obs.: Os algarismos romanos indicam o livro da centúria, e os arábicos a quadra; assim ‘I-18’ significa Centúria I, quadra 18.

Invasão da Europa pelos árabes e pela Ásia:

II-4
De Mônaco até perto da Sicília,
toda a praia será desolação,
não haverá subúrbio, cidade nem vila,
que não sofra dos Bárbaros o assalto.

VII-6
Nápoles e Palermo, e toda a Sicília,
por mãos bárbaras serão inabitáveis,
em Córcega, Salerno, ilha Sardenha,
a fome, a peste, a guerra, fim de males intensos.

ÁRABES:

III-23
Se, França, cruzares o mar da Ligúria,
te encontrarás sitiada entre ilhas e mares.
Maomé contra ti, mas ainda no mar Adriático
de cavalos e asnos roerás os ossos.

V-55
No território da Arábia feliz
nascerá poderoso nas leis de Maomé,
humilhará a Espanha e conquistará Granada,
e depois, por mar, a gente da Ligúria.

Orientais:

II-29
Um Oriental sairá de sua sede
e pelos montes Apeninos verá a Gália:
atravessando céu, águas e neve,
e a todos golpeará.

V-54
De além do Mar Negro e da grande Tartária,
um rei visitará a França,
passará pela Alânia e Armênia,
e deixará um rastro de sangue em Bizâncio.

Presságio 40
Por semearem a morte, sete países da Europa serão mortalmente feridos,
Bombardeios, tempestades, epidemia e a fúria do inimigo:
O chefe do Oriente porá em fuga todos os ocidentais,
e subjugará seus antigos conquistadores.

Perseguição à Igreja Católica:

II-97
Romano Pontífice guarde de aproximar-se
da cidade banhada por dois rios,
o sangue espumará, seu e dos seus,
quando a rosa florir.

V-73
A igreja de Deus será perseguida,
e os templos sagrados pilhados;
mãe expulsará o filho, desnudado em camisa,
os árabes se aliarão aos poloneses.

VIII-98
Dos homens da igreja o sangue será espalhado,
em tanta abundância, como se fosse água:
por longo tempo não diminuirá,
oh, para o clero, ruína e dor.

X-65
Tua ruína, ó grande Roma, se aproxima,
não de tuas muralhas, de teu sangue e substância,
a aversão pelas letras fará tão terrível brecha,
ferro pontudo ferindo a todos até o cabo.

O Anticristo:

VIII-77
O 3º Anticristo será breve aniquilado
vinte e sete anos durará sua guerra.
Os hereges estarão mortos, cativos, exilados.
Sangue, corpos humanos, água vermelha cobrindo a terra.

X-72
Em 1999 e sete meses,
do céu virá um grande rei do terror.
Ressuscitará o grande rei D’ANGOLMOIS.
Antes que Marte reine pela felicidade.

Efeitos da natureza:

I-46
Perto de Aux, de Lestore e Mirande,
o grande fogo tombará do céu três noites,
será causa estupenda e surpreendente,
a terra tremerá logo depois.

IX-83
Sol a vinte de touro, haverá um grande terremoto.
O grande Teatro cheio ruirá,
ar, céus e terra escurecidos e perturbados,
quando o infiel chamar a Deus e aos santos.

Algumas previsões de Nostradamus:

"De Mônaco até perto da Sicília, toda a praia será desolação, não haverá subúrbio, cidade nem vila, que não sofra dos Bárbaros o assalto."

"Nápoles e Palermo, e toda a Sicília, por mãos bárbaras serão inabitáveis, em Córcega, Salerno, ilha Sardenha, a fome, a peste, a guerra, fim de males intensos."

"Se, França, cruzares o mar da Ligúria, te encontrarás sitiada entre ilhas e mares. Maomé contra ti, mas ainda no mar Adriático de cavalos e asnos roerás os ossos."

"No território da Arábia feliz nascerá poderoso nas leis de Maomé, humilhará a Espanha e conquistará Granada, e depois, por mar, a gente da Ligúria."

"Um Oriental sairá de sua sede e pelos montes Apeninos verá a Gália: atravessando céu, águas e neve, e a todos golpeará."

"De além do Mar Negro e da grande Tartária, um rei visitará a França, passará pela Alânia e Armênia, e deixará um rastro de sangue em Bizâncio."

"Por semearem a morte, sete países da Europa serão mortalmente feridos, Bombardeios, tempestades, epidemia e a fúria do inimigo: O chefe do Oriente porá em fuga todos os ocidentais, e subjugará seus antigos conquistadores."

"Romano Pontífice guarde de aproximar-se da cidade banhada por dois rios, o sangue espumará, seu e dos seus, quando a rosa florir."

"A igreja de Deus será perseguida, e os templos sagrados pilhados; mãe expulsará o filho, desnudado em camisa, os árabes se aliarão aos poloneses."

"Dos homens da igreja o sangue será espalhado, em tanta abundância, como se fosse água: por longo tempo não diminuirá, oh, para o clero, ruína e dor."

"Tua ruína, ó grande Roma, se aproxima, não de tuas muralhas, de teu sangue e substância, a aversão pelas letras fará tão terrível brecha, ferro pontudo ferindo a todos até o cabo."

"O 3º Anticristo será breve aniquilado vinte e sete anos durará sua guerra. Os hereges estarão mortos, cativos, exilados. Sangue, corpos humanos, água vermelha cobrindo a terra."

"Em 1999 e sete meses, do céu virá um grande rei do terror. Ressuscitará o grande rei D’Angolmois. Antes que Marte reine pela felicidade."

"Perto de Aux, de Lestore e Mirande, o grande fogo tombará do céu três noites, será causa estupenda e surpreendente, a terra tremerá logo depois."

"Sol a vinte de touro, haverá um grande terremoto. O grande Teatro cheio ruirá, ar, céus e terra escurecidos e perturbados, quando o infiel chamar a Deus e aos santos."

Importante frisar que as profecias de Nostradamus podem ser interpretadas de diversas formas e que não cabe aqui este estudo e sim apenas a transparência dos fatos e a tradução de suas profecias, bem como informações de sua vida, com fins exclusivamente para pesquisas pois a polêmica sobre o assunto já é bastante vasta e muitas delas, de gosto duvidoso (Nostradamus -www.portalbrasil.net).

Fonte: Profecias de Nostradamus

Sombra

"Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Por que de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro.

O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações e meditações da Humanidade.

Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o ressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.

Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia.

Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo - que era histérico - , e cantávamos as canções de Anacreonte - que são doidas -, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer.

Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da

Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu:

“Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara."


por Edgar Allan Poe


Fonte:Extraído do site Nox in Vitro

Silêncio

"Escuta - disse o demônio, pousando a mão sobre a minha cabeça. - O país de que te falo é um país lúgubre, na Líbia, às margens do rio Zaire. E ali não há repouso nem silêncio. As águas do rio, amarelas e insalubres, não correm para o mar, mas palpitam sempre sob o olhar ardente do Sol, com um movimento convulsivo. De cada lado do rio, sobre as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto sombrio de gigantescos nenúfares, que suspiram na solidão, erguendo para o céu os longos pescoços espectrais e meneando tristemente as cabeças sempiternas. E do meio deles sai um sussurro confuso, semelhante ao murmúrio de uma torrente subterrânea. E os nenúfares, voltados uns para os outros, suspiram na solidão.

E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, - como as vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo não há vento no céu! - e as grandes árvores primitivas oscilam continuamente, com um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas - venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso nem silêncio.

Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade da sua desolação.

De repente apareceu a lua através do nevoeiro fúnebre vinha toda carmesim! e o meu olhar caiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia a borda do Zaire, refletindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio sinistro de uma altura descomunal!

Sobre o seu cume estavam gravadas algumas letras. Caminhei através dos pântanos de nenúfares, até a margem para ler as letras gravadas na pedra; mas não pude decifrá-las. Ia voltar quando a lua brilhou mais viva e mais vermelha; olhando outra vez para o rochedo distingui só caracteres. E esses caracteres diziam: desolação.

Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura majestosa. Pendia-lhe dos ombros a antiga toga romana, cobrindo-se até aos pés. Os contornos da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade porque brilhavam através da escuridão da noite a do nevoeiro. Tinha a fronte alta e pensativa, os olhos profundos e melancólicos. Nas rugas do semblante, liam-se as legendas da desgraça e da fadiga o aborrecimento da humanidade e o amor da solidão. Escondi-me no meio dos nenúfares para ver o que aquele homem fazia ali.

E o homem assentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e espraiou a vista pela soledade, contemplou os arbustos buliçosos e as grandes árvores primitivas; depois, ergueu os olhos para a céu a para a lua carmesim. Eu observava as ações do homem escondido no meio dos nenúfares e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Então o homem desviou os olhos do céu para o rio lúgubre para as águas amarelas do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenúfares; escutou-lhes os suspiros melancólicos e as oscilações murmurantes E eu o espreitava sempre, do meu esconderijo e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Embrenhei-me na profundezas longínquas do pântano, caminhei sobre e as flores dos nenúfares e chamei os hipopótamos que habitavam a espessura do bosque. E os hipopótamos ouviram o meu chamado e vieram os Behemothes até o pé do rochedo e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenúfares, espreitava os movimentos do homem e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Então invoquei os elementos e uma tempestade horrorosa rosa sobreveio. E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade e a chuva caía em torrente sobre a cabeça do homem e as ondas do rio transbordavam e o rio espumava enfurecido e os nenúfares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o trovão ribombava e os raios flamejavam, e o rochedo estremecia.

Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenúfares, o vento e as floresta, o céu e o trovão. E na minha maldição os elementos emudeceram e a lua parou na sua carreira, e o trovão expirou e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram imóveis e as águas tornaram n repousar no seu imenso leito, e as árvores cessaram de se agitar, e os nenúfares não suspiraram mais e na floresta não se tornou a ouvir o mínimo murmúrio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei para os caracteres escritos no rochedo e os caracteres diziam agora: Silêncio.

Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pálido de terror. De repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e pôs o ouvido à escuta. Mas não se ouviu nem uma voz no deserto ilimitado. E os caracteres gravados no rochedo diziam sempre: Silêncio. E o homem estremeceu e fugiu e para tão longe fugiu que jamais o tornei a ver.

Ora, os livros dos magos, os melancólicos livros dos magos encerram belos contos, esplêndidas histórias do céu, da terra e do mar poderosos; dos gênios que têm reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céu sublime. Há muita ciência na palavra das Sibilas. E das florestas sombrias de Dodona saíam outrora oráculos profundos.

Mas jamais se ouviu uma história tão espantosa como esta! Foi o demônio que ma contou, assentado ao um lado, na solidão do túmulo. Quando acabou de falar, desatou a rir e como não pudesse rir com ele, amaldiçoou-me. Então o lince, que vive eternamente no túmulo, saiu do seu esconderijo e veio deitar-se aos pés do demônio, olhando-o fixamente nas pupilas."


por Edgar Allan Poe


Fonte: Extraído do site Nox in Vitro

O Rei Peste

Os deuses suportam nos reis, e permitem, as coisas que odeiam em meio à ralé.
BUCKHURST: A Tragédia de Ferrex e Porrex.

Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha como insígnia a tabuleta dum "Alegre Marinheiro". embora mal construída, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.

Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.

O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição. O marujo mais moço era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia além de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos, de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de lamber seus beiços, de vez em quando. E evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de espanto, meio de zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo, parecia o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis. Várias e aventurosas haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida. No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados, com os cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto deles, estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de decifrar caracteres escritos - dom considerado então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a arte de escrever - pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a cargo dos dois discípulos do mar; mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na linguagem alegórica do próprio Legs, "correr às bombas, ferrar todas as velas e correr com o vento em popa".

Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por duas vezes, entrado de chaminé adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção da Escada de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do "Alegre Marinheiro".

Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o espantoso grito de: "Peste!" A cidade estava em grande parte despovoada, e naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à vontade.

Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se, sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os riscos e incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o período de exílio, a tão insuficiente segurança.

Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos à ação de mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram, para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se contavam a toda hora que toda a massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a disparada em que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de ébrios, com berros e urros, em breve se perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .

Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio e nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e tornozelos.

Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite, nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilencial e brumosa, podiam-se perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento mesmo da perpetração de seu roubo.

Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão eretos quanto lhes permitia seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos índios; e para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulmões estentóricos.

Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível, as veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes montões de caliça, não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda com carne.

De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e sinistro edifício, um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e lá de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos, semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta, escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio dum montão de coisas.

A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou tentar descrevê-los um por um.

Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado um personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e Legs sentiu-se confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico para merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias, que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse. Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia não menos extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de descrever, não tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal. Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente destacada para merecer caracterização especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela fazia, no entanto, todos os esforços para conservar a boca fechada, com ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia para um lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto equívoca.

Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma perna enfaixada posta sobre a mesa, parecia achar-se com direito a alguma consideração. Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal, mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de aristocratas falecidos.

Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num acesso daquilo que Tarpaulin chamava "os terrores". Seus queixos, recentemente barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução necessária, na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se na atmosfera do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte dele, sentava-se o sexto e último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços tinham sido cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância; apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete, formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num absoluto espanto de sua própria enormidade.

Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo. Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra, saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça desconjuntada e chocalhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O crânio daquela hedionda coisa continha certa quantidade de carvão em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se projetasse na rua.

À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos, nossos dois marujos não se conduziram com aquele grau de decoro que era de esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.

Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos, fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas relações. Diante de tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias conseqüências poderiam ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o bastão na mesa, distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:

- É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.

- Pare com isso! - interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo- lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e que estão fazendo aqui, com essas farpelas de diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado camarada Will Wimble, o cangalheiro!

À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade, recomeçou:

- De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de "Rei Peste I." Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta noite, aos nossos reais ouvidos... esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de natureza sagrada e superior.

A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos títulos de: "Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero", "Sua Graça o Duque Pest- Ilencial", "Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso" e "Sua Serena Alteza a Arquiduquesa Ana-Peste".

Quanto à vossa pergunta - continuou ele -, a respeito do que nos trás aqui reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne exclusivamente, ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância para ninguém mais que não nós mesmos. Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de hóspedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e licores desta formosa metrópole. Assim procedemos não só para melhorar nossa própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e cujo nome é "Morte".

- Cujo nome é Davi Jones! - exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.

- Lacaio profanador! - exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. - Miserável e execrando profanador. Dissemos que, em consideração àqueles direitos que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação para violar, condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações. Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos, acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de Black Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se acordo com vossos respectivos gostos pessoais.

- Será coisa de absoluta impossibilidade - replicou Legs, a quem a imponência e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.

- Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arrumar no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo para servir de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados esta noite em vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e devidamente paga na taberna do "Alegre Marinheiro". De modo que há de Vossa Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada, pois não posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito menos um trago dessa repugnante água-de-porão que responde ao nome de Black Strap.

- Pare com isso! - interrompeu Tarpaulin, espantado não só pelo tamanho do discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. - Pare com isso, seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas...

- Este modo de proceder - interferiu o presidente - não está de modo algum em acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode ser alterada nem apelada. As condições que impusemos devem ser cumpridas à risca, e isto sem um instante de hesitação... sem o quê, decretamos que sejais amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de cerveja-de-outubro!

- Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! - gritaram todos os membros da família Peste ao mesmo tempo.

O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como um par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para o outro; o cavalheiro de ceroulas de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário ofegava como um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais, arregalando os olhos para cima.

- Oh, uh, uh! - ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. - Uh, uh, ... Uh, uh, uh... Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de Black Strap era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente, que eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim Hurlygurly, o palhaço!... Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha compreensão.

Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.

- Traição! - gritou Sua Majestade o Rei Peste I.

- Traição! - disse o homenzinho gotoso.

- Traição! - esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.

- Traição! - murmurou o homem dos queixos amarrados.

- Traição! - grunhiu o sujeito do ataúde.

- Traição, traição! - berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado seus esforços de safar-se.

Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada. Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros lampejos de luz dentro da sala.

Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de licor tão impetuoso, violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de parede a parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na chaminé da lareira... e as damas caíram com ataques histéricos. Montes de artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques afogou-se imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão... e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário, arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a Arquiduquesa Ana-Peste.


por Edgar Allan Poe


Fonte: Extraído do site Alguns Textos

Pequena Conversa com uma Múmia

O banquete da noite precedente me abalara um tanto os nervos. Estava com uma forte dor de cabeça e sentia-me desesperadamente sonolento. Em vez de sair, portanto, para passar a noite fora, como tencionava, ocorreu-me que o que melhor poderia fazer, após saborear uma pequena ceia, era meter-me logo na cama.

Uma ceia, leve, sem dúvida. Gosto imensamente de queijo derretido com cerveja e torrada quente. Mais de uma libra de uma vez, porém, pode nem sempre ser aconselhável. Entretanto, não pode haver objeção material a duas. E realmente, entre duas e três, há apenas uma unidade de diferença. Arrisquei-me, talvez, a quatro. Minha mulher afirma que foram cinco ? mas, certamente, confundiu duas coisas bem distintas. O número abstrato, cinco, estou disposto a admiti-lo; mas, concretamente, refere-se a garrafas de cerveja preta, sem as quais, a modo de tempero, aquele manjar deve ser evitado.

Tendo dessa forma concluído uma refeição frugal e colocado na cabeça meu barrete de dormir, com a suave esperança de gozar dele, até o meio-dia seguinte, repousei a cabeça no travesseiro e, graças a uma excelente consciência, mergulhei sem demora no mais profundo sono.

Mas quando teve a humanidade realizadas as suas esperanças? Não completara ainda meu terceiro ronco, quando a campainha da porta da rua começou a tocar violentamente e, depois, impacientes pancadas com a aldrava me despertaram incontinenti. Um minuto depois, e enquanto ainda esfregava os olhos, meteu-me minha mulher diante do nariz um bilhete, de meu velho amigo, o Dr. Ponnonner.

“Largue tudo imediatamente, meu caro e bom amigo, logo que receba este. Venha participar de nossa alegria. Afinal, depois de longa e perseverante diplomacia, obtive o consentimento dos diretores do Museu da Cidade, para examinar a Múmia. (Você sabe a que múmia me refiro ). Tenho permissão de desenfaixá-la e abri-la, se for preciso. Estarão presentes apenas poucos amigos ? você é um deles ? está claro. A Múmia acha-se agora em minha casa e começaremos a desenrolá-la, às onze horas da noite.

Sempre seu
Ponnonner”.

Ao chegar à assinatura de “Ponnonner”, senti que já me achava tão desperto quanto um homem necessita estar. Saltei da cama, num estado de êxtase, derrubando tudo quanto se encontrava em meu caminho; vesti-me com uma rapidez verdadeiramente incrível, e dirigi-me, a toda pressa, para a casa do doutor.
Ali encontrei reunido um grupo bem ansioso. Aguardavam minha chegada, com grande impaciência. A Múmia estava estendida sobre a mesa de jantar, e logo que entrei o exame dela foi começado.

Era uma das múmias trazidas, muitos anos atrás, pelo Capitão Artur Sabrestash, primo de Ponnonner, de um túmulo perto de Eleithias, nas montanhas da Líbia, a grande distância de Tebas, às margens do Nilo. As grutas nesse lugar, embora menos magníficas que os sepulcros de Tebas, despertam mais interesse, pelo fato de oferecerem maior número de ilustrações sobre a vida privada dos egípcios. A sala, donde fora retirado o nosso exemplar, era, dizia-se, riquíssima de tais ilustrações, estando as paredes inteiramente recobertas de pinturas a fresco e de baixos-relevos, enquanto estátuas, vasos e mosaicos de magníficos desenhos, indicavam a valiosa fortuna dos mortos.

A preciosidade fora depositada no museu, exatamente nas mesmas condições em que o Capitão Sabrestash a havia descoberto, isto é, o sarcófago estava intacto. Durante oito anos, assim permanecera, exposto apenas, externamente, à curiosidade pública. Tínhamos pois agora a Múmia completa à nossa disposição; e para aqueles que sabem quão raramente chegam intactas às nossas plagas as antigüidades, torna-se evidente, logo, que possuíamos razões de sobra, para congratularmo-nos por nossa boa sorte.
Aproximando-me da mesa, vi sobre ela, uma grande caixa, ou estojo, de quase sete pés de comprimento e talvez com três pés de largura, por dois e meio de profundidade. Era oblonga, mas sem forma de ataúde. Julgamos a princípio que o material empregado fora a madeira do alcômoro, contudo, logo ao cortá-lo, verificamos que era papelão, ou mais propriamente, papel comprimido, feito de papiro. Estava densamente ornamentada de pinturas, representando cenas funerárias e outros assuntos fúnebres, entre os quais serpeavam, nas mais variadas posições, numerosas séries de caracteres hieróglifos, significando, sem dúvida, o nome do falecido. Por felicidade, fazia parte do nosso grupo, o Sr. Gliddon, que não teve dificuldade em traduzir os caracteres, simplesmente fonéticos e representando a palavra Allamistakeo.

Não foi sem esforço que conseguimos abrir a caixa, sem danificá-la, mas tendo finalmente conseguido o que desejávamos, chegamos a uma segunda, em forma de ataúde, e de tamanho consideravelmente menor, que o da de fora, mas, semelhante a ela, exatamente, sob todos os aspectos. O intervalo entre as duas estava preenchido de resina que havia, até certo ponto, apagado as cores da caixa interna.

Ao abrir esta última (trabalho que executamos com bastante felicidade) demos com uma terceira caixa, também em forma de ataúde, e não se diferenciando da segunda em nada de particular a não ser no material de que era feita, de cedro, e ainda exalava o odor característico e altamente aromático dessa madeira. Entre a segunda a terceira e caixa, não havia intervalo, estando uma encerrada ajustadamente dentro da outra.

Removendo a terceira caixa, descobrimos o próprio corpo, que tiramos para fora. Esperávamos encontrá-lo, como de costume, enrolado em numerosas faixas, ou ligaduras de linho; mas, em lugar destas, encontramos uma espécie de bainha, feita de papiro, e revestida duma camada de gesso, densamente dourada e pintada. As pinturas representavam assuntos relativos a vários supostos deveres da alma, e sua apresentação a diferentes divindades, com numerosas figuras humanas idênticas, intentando representar, bem provavelmente, retratos das pessoas embalsamadas. Estendendo-se da cabeça aos pés, havia uma inscrição colunar ou perpendicular, em hieróglifos fonéticos, dando de novo seu nome e títulos de seus parentes.

Em volta do pescoço, assim desembainhado, havia um colar de contas coloridas e colocadas de modo a formar imagens de divindades, do escaravelho, etc., com o globo alado. Na parte mais delgada da cintura, havia um colar semelhante a um cinturão.
Retirando o papiro, encontramos a carne em excelente estado de preservação, sem nenhum odor perceptível. A cor era avermelhada. A pele rija, macia e lustrosa. Os dentes e os cabelos achavam-se em boas condições. Os olhos (parecia), tinham sido arrancados e substituídos por outros de vidro, muito bonitos e imitando perfeitamente os naturais, cem exceção da fixidez do olhar, um tanto acentuada. Os dedos e as unhas estavam brilhantemente dourados.

O Sr. Gliddon foi de opinião, em face do vermelho da epiderme, que o embalsamento se efetuara, totalmente, por meio de asfalto; mas tendo raspado a superfície, com um instrumento de aço, e lançado ao fogo um pouco de pó, assim obtido, o odor de cânfora e de outras gomas aromáticas se tornou sensível.

Rebuscamos bem atentamente o cadáver, para encontrar as aberturas usuais, pelas quais são extraídas as entranhas, mas, com surpresa nossa, nenhuma descobrimos. Nenhum dos presentes, nessa ocasião, sabia ainda que não são raras de encontrar múmias inteiras, ou não cortadas. O cérebro era habitualmente retirado pelo nariz; os intestinos, por incisão ao lado; o corpo era em seguida, raspado, lavado e salgado; depois deixavam-no assim, durante várias semanas, quando começavam a operação de embalsamamento, propriamente dita.

Como não fosse possível encontrar nenhum sinal de abertura, preparava o Dr. Ponnonner, os instrumentos para a dissecação, quando observei, então, que já passava das duas horas. Por esse motivo todos concordaram em deixar para depois o exame interno, para a noite seguinte e já nos dispúnhamos a separar-nos, quando alguém sugeriu uma ou duas experiências com a pilha de Volta.

A aplicação da eletricidade a uma múmia velha de três ou quatro mil anos, pelo menos, era uma idéia se não bastante sensata, contudo suficientemente original e todos a acolhemos sem protesto. Com quase um décimo de seriedade e nove décimos de brincadeiras, dispusemos uma bateria no gabinete do Doutor e para lá levamos o egípcio.

Só depois do muito trabalho, foi que conseguimos pôr a nu algumas partes do músculo temporal, que se mostrou com menos rigidez pétrea, do que outras parte do corpo, mas que, como sem dúvida prevíramos, não dava indício de suscetibilidade galvânica, quando em contato com o fio.

Esta primeira experiência, de fato, pareceu decisiva e, com uma cordial risada ao nosso próprio absurdo, estávamos dando boa-noite uns aos outros, quando, casualmente, meus olhes fitaram os da múmia, e ficaram neles cravados de espanto. Meu breve olhar, na verdade, bastara para assegurar-me de que es glóbulos, que todos nós julgávamos de vidro e que, anteriormente, se distinguiam por certa fixidez estranha, estavam agora tão bem recobertos pela pálpebras, que só uma pequena parte da Túnica Albugínea permanecia visível.

Com um grito, chamei a atenção para e fato, que se tornou logo evidente a todos.
Não posso dizer que fiquei alarmado, diante do fenômeno, porque, no meu caso, “alarmado” não é bem o termo. É possível, porém, que, sem as cervejas pretas talvez me tivesse sentido um pouco nervoso. Quanto a meus companheiros, não tentaram ocultar o terror alarmante, que deles se apossara. O Dr. Ponnonner causava lástima. O Sr. Gliddon, graças a não sei que processo especial, tornara-se invisível. Creio que o Sr. Silk Buckingham não terá por certo a coragem de negar, que se arrastou de quatro pés para baixo da mesa.

Depois do primeiro choque de espanto, porém, resolvemos, como coisa natural, tentar, imediatamente, nova experiência. Nossas operações se dirigiram agora para o artelho do pé direito.

Fizemos uma incisão por cima da parte exterior do osso sesamoideum pollicis pedix e assim chegamos à raiz do músculo obductor.

Reajustando a bateria, aplicamos então o fluido aos nervos expostos, quando, com um movimento de excessiva vivacidade, a Múmia, primeiro levantou e joelho direito, a ponto de pô-lo quase em contato com o abdômen, e depois, endireitando com inconcebível força, acertou um pontapé no doutor Ponnonner, tendo, com efeito, lançado este cavalheiro, como o dardo duma catapulta, pela janela lá embaixo na rua. Precipitamo-nos, en masse, para ir buscar os restos despedaçados da vítima, mas tivemos a felicidade de encontrá-la na escada, subindo numa pressa inconcebível, repleta da mais ardente filosofia e mais do que nunca convencida da necessidade de prosseguir nossa experiência com vigor e com zelo.

Foi a conselho seu, portanto, que fizemos, sem demora, uma profunda incisão, na ponta do nariz do paciente, enquanto o próprio doutor deitando mãos fortes sobre ele, punha-o em vibrante contato com o fio. Moral e fisicamente, figurativa e literalmente, o efeito foi elétrico. Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, e piscou com bastante rapidez, durante alguns minutos, como o faz o Sr. Barnus na pantomima; em segundo lugar, espirrou; em terceiro, sentou-se; Em quarto, agitou o punho diante do rosto do Dr. Ponnonner; em quinto, voltando-se para os Srs. Gliddon e Buckinghan, dirigiu-se-lhes, no mais puro egípcio, da seguinte maneira:

Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto mortificado pela vossa conduta. Do Dr. Ponnonner, nada de melhor se poderia esperar. É um pobre toleirão, que nada sabe de nada. Tenho pena dele e perdôo-lhe. Mas vós, Sr. Gliddon, e vós Silk, que viajastes pelo Egito, e lá residistes, a ponto de poder crer que lá houvésseis estado desde o berço ? vós, digo eu, que tanto vivestes entre nós a ponto de falardes o egípcio tão bem, penso, como escreveis vossa língua materna ? vós, a quem sempre fui levado a olhar, como o amigo fiel das múmias ? realmente, esperava de vós uma conduta mais cavalheiresca. Que devo pensar de vossa atitude tranqüila, vendo-me assim tão estupidamente tratado? Que devo supor de vós, consentindo que Fulano, Sicrano e Beltrano me arranquem dos meus caixões, tirem-me as roupas, neste clima miseravelmente frio?

Sob que aspecto (para acabar com isto), deve encarar o fato de estardes a ajudar e incitar esse miserável velhaco do Dr. Ponnonner a puxar-me o nariz?

Há de supor-se, sem dúvida, que, ao ouvir tal discurso, naquelas circunstâncias, todos nós corremos para a porta, ou caímos em violentos ataques histéricos ou mesmo desmaiamos todos. Uma destas três coisas, digo eu, era de esperar. De fato, cada uma dessas três maneiras de proceder poderia ter sido seguida. E, palavra de honra, não posso compreender como, ou por que foi, que não fizemos nem uma coisa nem outra.

Mas talvez, a verdadeira razão esteja no espírito deste tempo, que procede totalmente de acordo com a regra dos contrários, e é agora usualmente admitida como solução de todos os paradoxos e impossibilidades. Ou talvez, quem sabe, foi somente o ar excessivamente natural e familiar da Múmia, que destituía suas palavras de seu aspecto terrível. Seja o que for, os fatos são claros, e nenhum dos presentes demonstrou qualquer medo particular, ou pareceu acreditar que se houvesse passado qualquer coisa de especialmente irregular.

Quanto a mim, achava-me convencido de que tudo aquilo estava direito e simplesmente me coloquei do lado, fora do alcance do punho da múmia. O Dr. Ponnonner meteu as mãos nos bolsos das calças, fitou diretamente a múmia e ficou excessivamente vermelho.

O Sr. Gliddon cofiava suas suíças e ajeitava o colarinho da camisa. O Sr. Buckingham baixou a cabeça e meteu o polegar direito no canto esquerdo da boca.

O egípcio olhou-o, com expressão severa, durante alguns minutos, e disse, por fim, com escárnio:

Por que não fala, Sr. Buckinghan? Ouviu ou não e que lhe perguntei? Tire o polegar da boca!

O Sr. Buckingham, em conseqüência, teve um leve sobressalto, tirou o polegar direito do canto esquerdo da boca e, a título de indenização, inseriu o polegar esquerdo, no canto esquerdo da abertura acima mencionada.

Não tendo conseguido arrancar uma resposta do Sr. Buckingham, a Múmia se voltou, de mau humor, para o Sr. Gliddon e, em tom peremptório, perguntou, em termos gerais, o que todos nós queríamos.

O Sr. Gliddon depois de grande demora, respondeu em termos fonéticos; e, não fosse a deficiência de caracteres hieroglíficos nas tipografias americanas, grande prazer me seria dado, em transcrever aqui, no original, todo seu excelente discurso.

Aproveito a ocasião para observar que toda a conversa subseqüente, em que a Múmia tomou parte, foi travada em egípcio primitivo, por intermédio (pelo menos no que se refere a mim e aos outros membros não viajados do grupo), dos Srs. Gliddon e Buckingham, como intérpretes.

Esses cavalheiros falavam a língua materna da Múmia com inimitável fluência e graça; mas não posso deixar de observar que (devido, sem dúvida, à introdução de imagens inteiramente modernas e, como é natural, inteiramente novas para o estranho) os dois exploradores foram, por vezes, forçados ao emprego de formas visíveis, para traduzir algum significado especial.

Em dado momento, por exemplo, o Sr. Gliddon não pode fazer o egípcio compreender a palavra “política”, enquanto não esboçou sobre a parede, com um pedaço de carvão, um homenzinho de nariz cônico, cotovelos esburacados, de pé sobre um cepo, com a perna esquerda lançada para trás, o braço direito atirado para a frente, o punho fechado, os olhos girando pelo céu e a boca aberta, num ângulo de noventa graus. De modo bem igual, o Sr. Buckingham não conseguiria explicar a idéia absolutamente moderna de “whig”, sem que (a uma sugestão do Dr. Ponnonner), empalidecendo, tirasse o chinó.
Facilmente se compreenderia que o discurso do Sr. Gliddon versou principalmente sobre os vastos benefícios, extraídos para a ciência, do desempacotamento e do escavamento, das múmias, desculpando-se, desse modo, por qualquer incômodo, que pudesse ter-lhe sido causado, pessoalmente, à Múmia chamada Allamistakeo; e concluindo com uma simples insinuação (pois mal podia ser considerada mais do que isso) de que, explicados agora esses pequenos pormenores, muito bem se poderia continuar a investigação pretendida. Nesse ponto o Dr. Ponnonner preparou seus instrumentos.

Relativamente às últimas sugestões do orador, parece que Allamistakeo teve certos escrúpulos de consciência, sobre cuja natureza não fui precisamente informado; manifestou-se, porém, satisfeito com a s desculpas apresentadas e, descendo da mesa, fez volta ao grupo, apertando a mão de todos.

Quando terminou esta cerimônia, ocupamo-nos, imediatamente, em reparar os danos infligidos ao sujeito pelo escalpelo. Costuramos o ferimento de sua têmpora, pusemos-lhe uma atadura no pé e aplicamos uma polegada quadrada de emplastro preto, na ponta do nariz.

Observou-se então que o Conde (era esse, parece, o título de Allamistakeo) teve um leve tremor, sem dúvida de frio.

O Doutor imediatamente encaminhou-se para o seu armário e logo voltou com uma casaca preta, pelo melhor figurino de Jenning, um par de calças de xadrez, azul-celeste, uma camisa de gingão cor de rosa, um colete de brocado com abas, um sobretudo branco, uma bengala de passeio com ganho, um chapéu sem aba, botinas de verniz, luvas de pele de cabrito, cor de palha, um monóculo, um par de suíças e uma gravata cascata. Devido à disparidade de tamanho, entre Conde e o Doutor (sendo a proporção de dois para um), houve certa dificuldade em ajustar esses trajes à pessoa do egípcio: mas quando tudo se arranjou, podia-se dizer que ele estava bem vestido. O Sr. Gliddon lhe deu, portanto, o braço e levou-o a uma confortável cadeira, junto à lareira, enquanto o Doutor tocava imediatamente a campainha e ordenava fossem trazidos mais charutos e vinho.

A conversa em breve se animou. Muita curiosidade, sem dúvida, foi expressa, a respeito do fato, seu tanto quanto notável, de estar Allarnistakeo ainda vivo.
Eu teria pensado - disse o Sr. Buckingham - que já faz muito tempo que o senhor está morto.

Ora! replicou o Conde, bastante espantado. Tenho pouco mais de setecentos anos de idade! Meu pai viveu mil e não se achava de modo algum caduco, quando morreu.
Seguiu-se então uma rápida série de perguntas e cálculos, por meio dos quais se tornou evidente que a antigüidade da Múmia fora erroneamente estimada. Já se haviam passado cinco mil e cinqüenta anos e alguns meses, desde que fora ela depositada nas catacumbas de Eleithias.

Mas minha observação - continuou o Sr. Buckingham - não se refere à sua idade, por ocasião do enterro (quero crer de fato, que o senhor é ainda um homem moço) e minha alusão foi à imensidade de tempo durante o qual, segundo sua própria explicação, o senhor tem estado empacotado em asfalto.

Em quê? - perguntou o Conde.
Em asfalto - repetiu o Sr. Buckingham.
Ah! sim; tenho uma fraca noção do que o senhor quer dizer; de certo isso poderia dar resultado, mas no meu tempo empregava-se raramente outra coisa que não fosse o bicloreto de mercúrio.

Mas o que especialmente não achamos jeito de compreender ? disse o Dr. Ponnonner ? é como acontece que, tendo morrido e sido enterrado no Egito, há mais de mil anos, esteja o senhor hoje aqui vivo e parecendo tão magnificamente bem.

Se eu estivesse morto, como o senhor diz - replicou o Conde - é mais que possível que morto ainda estaria, pois percebo que os senhores estão ainda na infância do galvanismo e não podem realizar com ele o que era coisa comum entre nós, antigamente. Mas o fato é que sofri um ataque de catalepsia e meus melhores amigos acharam que eu estava morto, ou deveria estar. De acordo com isso, embalsamaram-me imediatamente.Suponho que os senhores tem conhecimento do principal mestre do processo de embalsamamento. Bem, não totalmente.

Ah! percebo… deplorável estado de ignorância! Muito bem, não posso entrar em pormenores neste momento, mas é necessário explicar, que embalsamar (propriamente falando), no Egito, era paralisar indefinidamente todas as funções animais sujeitas a este processo. Uso a palavra “animais”, no seu sentido mais lato, como incluindo não só o ser físico, como o ser modal e vital. Repito que o primeiro princípio do embalsamamento consistiu, entre nós. na paralisação imediata e na manutenção perpétua em suspenso, de todas as funções animais, sujeitas ao processo.

Para ser breve, em qualquer estado em que se encontrasse e indivíduo, no período de embalsamamento, não permaneceria vivo. Ora, como tenho a felicidade de ser do sangue do Escaravelho, fui embalsamado vivo, como os senhores me vêem agora.

O sangue do Escaravelho! - exclamou o Dr. Ponnonner.

Sim. O Escaravelho era o emblema, ou as “armas” duma distintíssima e pouco numerosa família patrícia. Ser “do sangue do Escaravelho” é apenas ser um dos membros daquela família de que o Escaravelho é o emblema. Estou falando figurativamente.

Mas que tem isso com o fato de estar vivo o senhor?

Ora, é costume geral no Egito, antes de embalsamar um cadáver, extrair-lhe os intestinos e os miolos; só a raça dos Escaravelhos não se conformava com esse costume. Portanto, não tivesse eu sido um Escaravelho, e me haveriam extraído intestinos e miolos, e sem uns e outros é inconveniente viver.

Entendo - disse o Sr. Buckingham - e suponho que todas as múmias intactas, que nos têm chegado às mãos, são da raça dos escaravelhos.

Sem dúvida alguma.

Eu pensava. - disse o Sr. Gliddon, com timidez que o Escaravelho era um dos deuses egípcios.

Um dos egípcios quê? perguntou a Múmia, dando um salto.

Deuses! - repetiu o viajante.

Sr. Gliddon, estou realmente atônito por ouvi-lo falar neste estilo ? disse o Conde, tornando a sentar-se. Nenhuma nação, sobre a face da terra, jamais conheceu senão um único Deus. O Escaravelho, o íbis, etc., eram entre nós (o que outros seres têm sido para outras nações) os símbolos, ou intermediários, através dos quais prestávamos culto ao Criador, demasiado augusto para que dele nos aproximássemos de mais perto.
Houve aqui uma pausa. Finalmente, reatou-se a conversa pelo Dr. Ponnonner.

Não é impossível, então, pelo que o senhor acaba de explicar ? disse ele ? que entre as catacumbas, perto do Nilo, possam existir outras múmias da tribo do Escaravelho, em condições de vitalidade.

Não pode haver dúvida alguma a respeito - respondeu o Conde. - Todos os Escaravelhos embalsamados, acidentalmente, quando ainda vivos, estão vivos. Mesmo alguns dos que foram propositadamente assim embalsamados podem ter sido esquecidos pelos seus executores testamentários e ainda permanecem nos túmulos.

Quer ter a bondade de explicar - perguntei eu, o que quer o senhor dizer com “propositadamente assim embalsamados”?

Com grande prazer - respondeu a Múmia, depois de me haver examinado à vontade, através de seu monóculo, pois era a primeira vez que me aventurara a fazer uma pergunta direta.

Com grande prazer - disse ele. A duração habitual da vida de um homem, no meu tempo, era de quase oitocentos anos. Poucos homens morriam, a não ser em virtude do mais extraordinário acidente, antes dos seiscentos anos; poucos viviam mais do que uma década de séculos; mas oitocentos anos eram considerados o termo natural.

Depois da descoberta do princípio do embalsamamento, como já descrevi aos senhores, ocorreu a nossos filósofos que se poderia satisfazer uma louvável curiosidade e. ao mesmo tempo, fazer avançar os interesses da ciência, vivendo-se esse termo natural a prestações.

Relativamente à ciência histórica, de fato, a experiência demonstrava que algo dessa natureza era indispensável. Tendo por exemplo um historiador atingido a idade de quinhentos anos, escrevia um livro, com grande trabalho, e depois fazia-se embalsamar, com todo o cuidado, deixando instruções a seus executores testamentários pro tempore, para que o fizessem reviver, depois de certo lapso de tempo - digamos quinhentos ou seiscentos anos. Voltando à vida, ao expirar aquele prazo, encontraria invariavelmente sua grande obra convertida numa espécie de caderno de notas à toa, isto é, uma espécie de arena literária, para as conjecturas antagônicas, enigmas e rixas pessoais de rebanhos inteiros de comentaristas exasperados. Essas conjecturas, etc., que passavam sob o nome de anotações, ou emendas, verificavam-se haver tão completamente envolvido, torturado e sufocado e texto, que o autor era obrigado a sair de lanterna na mão, à busca de seu próprio livro. Ao descobri-lo, nunca merecia o trabalho da busca. Depois de reescrevê-lo, totalmente, cabia ainda, como dever obrigatório do historiador, pôr-se a trabalhar, imediatamente, em corrigir, de acordo com seu saber individual a e a sua experiência, as tradições do dia, concernente à época em que ele havia originalmente vivido. Ora, este processo de recomposição e retificação pessoal, levado a efeito por diferentes sábios, de tempos em tempos, tinha como resultado evitar que nossa história degenerasse em fábula completa.

Peço-lhe perdão - disse o Dr. Ponnonner, neste ponto, pousando delicadamente sua mão sobre o braço do egípcio - peço-lhe perdão, senhor, mas posso ter a liberdade de interrompê-lo um instante?

Perfeitamente, senhor - respondeu o Conde, afastando-se um pouco.

Desejava fazer-lhe simplesmente uma pergunta - disse o Doutor. - O senhor se referiu à correção pessoal do historiador, nas tradições relativas à sua própria época. Rogo-lhe que me diga, qual a proporção, em média, de verdade misturada. a essa Cabala?
? A Cabala, como o senhor muito bem definiu, gozava em geral de fama de estar justamente a par dos fatos relatados nas próprias histórias não reescritas, isto é, jamais se viu, em circunstâncias alguma um simples jota em qualquer deles, que não estivesse absoluta e radicalmente errado.

Mas já que está perfeitamente claro - continuou o Doutor - que pelo menos cinco mil anos se passaram, desde que o senhor foi enterrado, tenho como certo que vossos anais daquele período, senão vossas tradições, eram suficientemente explícitos, a respeito daquele tópico de interesse universal, que é a Criação, a qual se realizou, como suponho que é de seu conhecimento, havia apenas dez séculos antes.
? O senhor! ? disse o Conde Allamistakeo.

O Doutor repetiu suas observações, mas, somente depois de muita explicação adicional, foi que o estrangeiro pôde chegar a compreendê-las. Por mim, respondeu, hesitantemente:

As idéias que o senhor me apresentou são, confesso, extremamente novas, para mim. No meu tempo, não conheci ninguém que sustentasse fantasia tão singular, como essa de que o universo (ou este mundo, se gostar mais) tivesse uma vez um começo. Lembro-me de que uma vez, uma vez apenas, ouvi algo de remotamente vago, de um homem de muito saber, a respeito da origem da raça humana, e esse homem empregava essa mesma palavra Adão (ou Terra Vermelha), de que o senhor fez uso. Empregava-a, porém, em sentido genérico, com referência à germinação espontânea do limo da terra (da mesma maneira por que são geradas milhares de criaturas dos mais baixos genera), a geração espontânea digo eu, de cinco vastas hordas de homens, simultaneamente brotada em cinco distintas e quase iguais divisões do globo.

Aqui, todos os presentes encolheram os ombros e um ou dois de nós tocou na fronte, com ar bastante significativo.

O Sr. Buckingham, depois de lançar ligeiro olhar para o occipício e depois para o sincipício de Allamistakeo, disse o seguinte:

A longa duração da vida humana no seu tempo, e ainda mais a prática ocasional de passá-la, como o senhor explicou, a prestações, deve ter contribuído, na verdade, bastante poderosamente, para o desenvolvimento geral e acumulação do saber. Suponho, por conseqüência, que devemos atribuir a acentuada inferioridade dos velhos egípcios, em todos os ramos da ciência, quando comparados com os modernos e, mais especialmente, com os ianques, inteiramente à solidez mais considerável do crânio egípcio.

Confesso novamente - respondeu o Conde, com bastante mansidão - que estou um tanto em dificuldade para compreendê-lo; por obséquio, a que ramos de ciência alude o senhor?

Aqui, todo o grupo, unindo as vozes, pormenorizou prolixamente, as aquisições da frenologia e as maravilhas do magnetismo animal.

Tendo-os ouvido até o fim, o Conde começou a contar algumas anedotas, que demonstraram terem florescido e fenecido no Egito, há tanto tempo, a ponto de terem sido quase esquecidas, tipo de Gall, Spurheim, de que os processos de Mesmer não passavam realmente de desprezíveis artifícios, quando comparados com os positivos milagres dos sábios tebanos, que criavam piolhos e muitos outros seres dessa espécie.
Nisto perguntei ao Conde se o seu povo era capaz de calcular eclipses. Ele sorriu, com certo desdém, e disse que era.

Isto me perturbou um pouco, mas comecei a fazer outras perguntas, a respeito de seu saber astronômico, quando um membro do grupo, que ainda não abrira a boca, cochichou a meu ouvido que, para informação a respeito do assunto, melhor seria que eu consultasse Ptolomeu (quem era esse tal de Ptolomeu?), bem como um tal Plutarco, no capítulo de facie lunae.

Interroguei depois a Múmia, a respeito de lentes convexas e doutra espécie, e, em geral, acerca da manufatura de vidro. Nas ainda não terminara eu minha pergunta e já o companheiro silencioso, de novo me tocava de mansinho o cotovelo e pedia-me, pelo amor de Deus, que desse uma olhadela em Diodoro Sículo. Quanto ao Conde, perguntou-me simplesmente, a modo de réplica, se nós modernos, possuímos microscópios, que nos permitissem gravar camafeus, no estilo dos egípcios. Enquanto pensava na maneira de responder a esta pergunta, o miúdo Doutor Ponnonner se pôs a falar de maneira verdadeiramente extraordinária.

Veja a nossa arquitetura! - exclamou ele, com grande indignação dos dois viajantes que o beliscavam, mas sem resultado.

Veja - gritou ele, com entusiasmo - a Fonte do Jogo de Bola de New York! Ou se o espetáculo é por demais imponente, contemple por um instante o Capitólio, em Washington, D. C.! - e o bom doutorzinho se pôs a pormenorizar, com toda a prolixidade, as proporções do edifício a que se referia. Explicou que só o pórtico estava adornado de não menos de vinte e quatro colunas, de cinco pés de diâmetro, e dez pés de distância uma das outras.

O Conde disse que lamentava não poder lembrar-se, justamente naquele momento, das dimensões precisas de qualquer dos principais edifícios da cidade de Aznac, cuja fundação se perdia na noite do Tempo, mas cujas ruínas estavam ainda de pé, na época do seu sepultamento, numa vasta planície arenosa, a oeste de Tebas. Lembrava-se, porém, (a propósito de pórticos) que um havia, pertencente a um palácio inferior, numa espécie de subúrbio chamado Carnac, e formado de cento e quarenta e quatro colunas, de trinta e sete pés de circunferência e distantes umas das outras vinte e cinco pés. Chegava-se do Nilo a esse pórtico, através duma avenida de duas milhas de extensão, formada de esfinges, estátuas e obeliscos, de vinte, de sessenta e de cem pés de altura. O próprio palácio (pelo que podia lembrar) tinha, só numa direção, duas milhas de comprimento e ao todo poderia ter cerca de sete de circuito. Suas paredes estavam todas ricamente pintadas, por dentro e por fora, de hieróglifos. Não pretendia afirmar que mesmo cinqüenta ou sessenta dos Capitólios do Doutor pudessem ter sido construídos, dentro daquelas paredes, mas de nenhum modo achava impossível que duzentos ou trezentos deles pudessem ser lá dentro comprimidos, sem muita dificuldade. Aquele palácio de Carnac não passava afinal duma insignificância. Ele (o Conde), porém, não podia em consciência recusar-se a admitir a engenhosidade, a magnificência e a superioridade da Fonte do Jogo da Bola, tal como foi descrita pelo Doutor. Nada de semelhante, era forçado a convir, fora jamais visto no Egito, nem em qualquer outra parte.

Perguntei então ao Conde qual sua opinião a respeito de nossas estradas de ferro.

Nada de particular - respondeu ele.

Eram um tanto fracas, um tanto mal projetadas e toscamente construídas. Não podiam ser comparadas, por certo, com as estradas vastas, planas, retas e raiadas de ferro, sobre as quais os egípcios transportavam templos inteiros e sólidos obeliscos, de cento e cinqüenta pés de altura. Falei de nossas gigantescas forças mecânicas.
Concordou que alguma coisa conhecíamos nesse particular, mas indagou quanto teria eu de trabalhar, para levantar as cornijas sobre os dintéis, como do pequeno palácio de Carnac.

Resolvi não dar por ouvida esta pergunta e perguntei se ele tinha alguma idéia de poços artesianos, mas ergueu simplesmente as sobrancelhas, enquanto o Sr. Gliddon piscava fortemente para mim e dizia, em voz baixa, que fora descoberto um, recentemente, por engenheiros encarregados de canalizar água para o Grande Oásis.
Mencionei depois nosso aço, mas o estrangeiro levantou o nariz e perguntou-me se nosso aço podia ter executado o duro trabalho de insculpir os obeliscos, realizado totalmente com instrumentos cortantes de cobre.

Isto nos desconcertou tanto que achamos prudente mudar nosso ataque para a metafísica. Mandamos buscar um exemplar do livro, chamado o Relógio de Sol, e lemos um capítulo ou dois, a respeito dum assunto não bastante claro, mas que os bostonianos chamam de Grande Movimento do Progresso.

O Conde disse simplesmente que Grandes Movimentos eram coisas excessivamente comuns no seu tempo e quanto ao Progresso, foi, em certo tempo, uma completa calamidade, porém jamais progredira.

Falamos então da grande beleza e da importância da Democracia e muito nos esforçamos para fazer bem compreender ao Conde as vantagens de que gozávamos em viver num país onde havia sufrágio ad libitum, e não havia rei. Ele escutou com todo interesse e de fato mostrou-se não pouco divertido. Quando acabamos, disse ele que, há muitíssimo tempo, ocorrera algo bem semelhante. Treze províncias egípcias resolveram tornar-se imediatamente livres e dar assim um magnífico exemplo ao resto da humanidade.

Reuniram-se seus sábios e cozinharam a mais engenhosa constituição, que é possível conceber-se. Durante algum tempo, as coisas correram admiravelmente bem, somente que seu costume de ufanar-se era prodigioso. A coisa acabou, porém, com a consolidação dos treze estados, com mais quinze ou vinte outros, no mais odioso e insuportável despotismo de que jamais se ouviu falar na superfície da Terra.

Perguntei o nome do tirano usurpador.

Tanto quanto podia lembrar-se, era POPULAÇA.

Não sabendo que dizer a isso, ergui a voz e deplorei que os egípcios não conhecessem o vapor.

O Conde olhou para mim com bastante espanto, mas não deu resposta. O cavalheiro silencioso, porém, deu-me uma violenta cotovelada nas costelas dizendo-me que eu já me havia suficientemente comprometido duma vez, e perguntou se eu era tão maluco, realmente, para não saber que a moderna máquina a vapor deriva da invenção de Hero, através de Salomão de Caus.

Estávamos agora em eminente perigo de sermos derrotados, mas nossa boa sorte fez que o Doutor Ponnonner, tendo-se reanimado, voltasse em nosso auxílio e perguntasse se o povo do Egito pretendia seriamente rivalizar com os modernos, em todas as importantíssimas particularidade, do trajo.

Ouvindo isto, o Conde baixou a vista sobre as alças de suas calças e, depois, pegando a ponta de uma das abas de sua casaca, levou-a até bem perto dos olhos, examinando-a, durante alguns minutos. Deixando-a cair, por fim, sua boca escancarou-se gradualmente, duma orelha à outra, mas não me recordo se ele disse qualquer coisa à guisa de resposta.

Neste momento, recuperamos nossas energias e o Doutor, aproximando-se da Múmia, com grande dignidade, rogou-lhe que lhe dissesse, com toda a franqueza, e sob sua honra de cavalheiro, se os egípcios tinham compreendido em alguma época, a fabricação, quer das pastilhas de Ponnonner, quer das pílulas de Bandreth.

Aguardávamos, com profunda ansiedade, uma resposta, mas foi em vão. A resposta não chegava. O egípcio enrubesceu e baixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais consumado; jamais derrota alguma foi suportada de tão má vontade. De fato, não podia tolerar o espetáculo da mortificação da pobre Múmia. Peguei do chapéu, cumprimentei-a e despedi-me.

Ao chegar em casa, já passava das quatro horas e fui imediatamente para a cama. São agora dez horas da manhã. Estou de pé desde as sete, escrevendo estas notas, em benefício da minha família e da humanidade. Quanto à primeira, não mais a verei.

Minha mulher é uma víbora. A verdade é que estou nauseado, até o mais íntimo, desta vida e do século dezenove em geral. Estou convencido de que tudo vai de pernas viradas. Além disso, estou ansioso por saber quem será o Presidente, em 2045.

Portanto, logo que acabar de barbear-me e de tomar uma xícara de café, irei até a casa de Ponnonner fazer-me embalsamar por uns duzentos anos.



por Edgar Allan Poe


Fonte: Extraído do site Nox in Vitro