domingo, 2 de novembro de 2008

O Segredo da Guilhotina

Às 7 horas da noite de 5 de junho de 1864, o Dr. Edmundo Couty de La Pommerais, que fora transferido das prisões da Conciergerie à da Roquette, estava sentado na cela dos condenados à morte. Taciturno, imóvel, com os olhos parados, apoiava-se numa cadeira. A vela sobre a mesa iluminava seu rosto pálido, paralisado. A dois passos dele um carcereiro com os braços cruzados, encostado na parede, o vigiava.

Quase sempre, prisioneiros eram obrigados a trabalhar todos os dias e do soldo que recebiam era descontado pela administração, como prioridade, o custo de um caixão no caso de morte. Mas os condenados à morte não tinham trabalho obrigatório.

No rosto do prisioneiro não havia nem medo nem esperança. Tinha 34 anos, moreno, de estatura mediana, forte; nas têmporas os cabelos começavam a clarear; o olhar instável, a testa larga, mãos agitadas; a fisionomia calma e os modos distintos.

No Tribunal do Sena, a defesa do advogado Lachaud, apesar de brilhante, não alterara na consciência dos jurados a impressão transmitida pela acusação do senhor de Vallés. E La Pommerais, acusado de ter ministrado, com premeditação e fim delituoso, doses mortais de digitalina a uma senhora sua amiga - a Sra. De Pauw - ouviu a sentença de morte, conforme artigos 301 e 302 do Código Penal.

Naquela noite ele ainda ignorava a rejeição do recurso da pena e de qualquer audiência solicitada pelos seus familiares. Seu defensor foi atendido com displicência pelo imperador. O venerável abade de Crozes, que a cada execução suplicava branduras nas Tulherias, voltara sem nada conseguir. Comutar uma pena de morte poderia aparecer como uma abolição. Abrir-se-ia um precedente muito grave. O carrasco fora avisado que a execução seria no dia 9, às 5 horas da manhã.

Subitamente, um estrepitoso bater de coronhas de fuzil ressoou no corredor, a fechadura rangeu, a porta se abriu e o diretor da Roquette surgiu acompanhado de visitante que La Pommerais reconheceu como sendo Armand Velpeau, ilustre cirurgião. A um sinal o carcereiro saiu e o diretor, após formal apresentação entre os dois colegas, também se retirou.

* * *

Velpeau alcançava seus 60 anos. No apogeu da sua fama, herdeiro da cátedra de Larey no Instituto, primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris, era tido, pelos trabalhados executados, um luminar da patologia da época.

Depois de breve silêncio, ele disse:

- Entre médicos as condolências são inúteis. Por outro lado, uma moléstia - da qual morrerei nos próximos dois anos, ou, no máximo, dois e meio - me classifica, com alguns meses de distância do colega, na categoria dos condenados à morte. Vamos então ao que interessa.

- Então, segundo o colega e professor, a minha situação é sem esperança? - interrompeu La Pommerais.

- Teme-se - respondeu, simplesmente, Velpeau.

- Assim, a minha hora está marcada?

- Eu ignoro. Como ainda não está nada concretizado, o colega pode contar com alguns dias.

La Pommerais enxugou a fronte pálida com a manga da sua roupa de prisioneiro.
- Seja o que for, estou pronto. Quanto antes acontecer, melhor.

- Se o seu recurso não foi até agora rejeitado - prosseguiu Velpeau - a proposta que venho fazer é condicionada. Se for salvo, tanto melhor, caso contrário...

- Caso contrário?...

Sem responder, Velpeau apoiou o dedo médio no pulso do jovem condenado.

- Senhor La Pommerais, - disse - sua pressão revela tratar-se de um homem muito calmo, de uma firmeza rara. O que pretendo propor ao colega, que deve ficar em segredo, pode parecer, dirigida desta maneira a um médico cheio de energia e bastante destemido, uma extravagância ou mesmo uma intenção maldosa. Mas, mesmo que ela possa consterná-lo, no primeiro instante, espero que o colega a leve em consideração.

- Tem toda a minha atenção - respondeu La Pommerais.

- O amigo não ignora - continuou Velpeau - que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna é saber se algum resto de memória, reflexão, sensibilidade, persiste no cérebro do homem, depois que a cabeça lhe é decepada.

Ante tal preâmbulo, o condenado assustou-se, mas recompôs-se em seguida:

- Quando o professor entrou, - respondeu - eu imaginei mesmo alguma coisa nesse sentido, mas que pudesse ser interessante para mim.

- O colega certamente está informado dos trabalhos escritos sobre tais problemas: de Sommering, de Sue, de Sédillot, e de Bichat, até os mais modernos.

- Certa vez assisti seu curso sobre dissecação no cadáver de um justiçado.

- Ah! E tem noções exatas, numa visão cirúrgica, sobre a guilhotina?

La Prommerais respondeu com frieza:

- Não.

- Hoje mesmo estudei detalhadamente a guilhotina - prosseguiu Valpeau, sem comoção. - É um instrumento perfeito. Age a um só tempo como foice e como clava, corta o pescoço do paciente num terço de segundo, exatamente. O decapitado, com a rapidez fulminante do golpe, não sente nenhuma dor, como a de um soldado que perde o braço na explosão duma granada. A sensibilidade, pela exigüidade do tempo, é nula.

- Talvez a dor venha depois...

- Bérard fez justiça a essa fantasia - interrompe prontamente Velpeau. - Estou plenamente convicto, baseado em numerosas experiências e observações generalizadas, que o rompimento instantâneo da cabeça resulta numa anestesia absoluta. Saber que a síncope, provocada pela repentina perda de quatro a cinco litros de sangue - freqüentemente com força de expansão de projeção circular de um metro de diâmetro - deveria tranqüilizar os mais medrosos.

Quanto às reações inconscientes da estrutura carnal, mesmo que subitamente sustada no seu processo, não são indícios de sofrimento como no frêmito de uma perna cortada, cujos músculos e nervos se contraem depois da amputação, sem sofrimento do indivíduo. Eu digo que a febre nervosa da incerteza, a preparação da solenidade da execução, o assombroso despertar no dia fatal, se apresentam como os terríveis sofrimentos. Sendo, portanto, imperceptível a amputação, a dor real é imaginária.

Um golpe assim violento na cabeça, não só não é sentido, como não lhe deixa a consciência do fato: a simples lesão das vértebras provoca absoluta insensibilidade. A rescisão da cabeça, o corte da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o coração e o cérebro, não seriam então suficientes para exterminar qualquer sensação, mesmo íntima ou vaga, da dor? Creio que sim.

- Pelo menos eu espero que sim, mais ainda do que o professor! - responde La Pommerais. - Ainda que haja qualquer sofrimento físico - apenas concebido pela desordem sensorial e o sufoco crescente da morte - não é isso que eu temo. E outra coisa...

- Pode me explicar? - perguntou Velpeau.

- Escute, - murmurou Velpeau, depois de um instante de silêncio. - Eu penso que os órgãos da memória e da vontade estejam isolados na passagem da lâmina! Temos experimentado muitos equívocos até hoje, para que se possa falar da inconsciência imediata de um decapitado. Quantos homens, questionados, têm se dedicado ao problema?... Memória dos nervos? Movimentos reflexos? Não. Recorda-se da cabeça daquele marinheiro que, na clínica Brest, um quarto de hora após sua decapitação, moveu seus maxilares, talvez voluntariamente, partindo em dois um tudo colocado entre eles?... Para não escolher apenas este exemplo entre tantos outros, a questão seria saber se existe ou não o ego deste homem, que contrai os músculos da cabeça exangue. Quem poderia revelar isso? Antes de oito dias eu vou saber, mas... também esquecerei!

- Depende mesmo do colega esclarecer a humanidade a respeito, definitivamente - respondeu calmamente Velpeau, olhos fixos no interlocutor. - E falemos claro, é exatamente por isso que estou aqui. Fui delegado por uma comissão dos mais eminentes colegas da Faculdade de Paris, junto ao colega, aqui, para fazer a última tentativa junto ao imperador.

- Explique... Não entendo... - respondeu perplexo La Pommerais.

- Senhor de La Pommerais! Em nome da ciência, que nos é muito importante e que não conta mais com inúmeros mártires magnânimos, venho reclamar - na hipótese de alguma experiência entre nós for possível - reclamar de todo seu ser toda a energia e a coragem que se possa conseguir de um ser humano. Se o seu recurso de graça for negado, o colega estará numa condição ímpar como médico, competente e lúcido, a sofrer uma suprema e fatal cirurgia. Assim, seria inestimável sua cooperação comunicação experimental, em busca de esclarecimentos sobre o corpo e as sensações. A ocasião deve ser aproveitada. No caso de um sinal de inteligência, identificado depois da execução, o colega vai deixar um nome cuja glória científica obscurecerá para sempre a lembrança da sua culpa social.

- Ah! - murmurou La Pommerais, pálido mas com um sorriso resoluto. - Começo a compreender!... E de que natureza seria a experiência? Choque elétrico? Excitação do nervo ciliar? Injeção de sangue arterial?

- Ao colega é dispensável salientar que, depois da triste cerimônia, o seu cadáver irá repousar em paz sob a terra e que nenhum dos nossos instrumentos serão usados nele - acrescentou Velpeau. - Ao cair da lâmina estarei de pé diante do colega, junto à guilhotina. O mais rápido possível, a sua cabeça passará das mãos do carrasco às minhas. Então, gritarei, claramente, ao seu ouvido: "Senhor de La Pommerais, pode neste momento abaixar três vezes a pálpebra do olho direito, conservando o outro aberto?"

Se então puder o colega, quaisquer que sejam as outras contrações faciais, puder fazer o tríplice piscar de olhos, me avisando que me ouviu e compreendeu, provando assim o uso da memória e da vontade através do seu músculo palpebral, do nervo zigomático e da conjuntiva - controlando todo o horror e a onde de impressões do seu ser - bastará para iluminar a ciência e elevar nossas convicções. E seu nome, esteja certo disso, será anunciado de maneira que o colega será lembrado no futuro, não como um delinqüente, mas como um herói.

Diante destas palavras, La Pommerais pareceu tão emocionado que, com suas pupilas dilatadas e fixas no cirurgião, permaneceu alguns minutos em silêncio, imóvel. Depois se ergueu e deu alguns passos, balançando a cabeça com ar tristonho:

- A horrível violência do golpe vai me fazer desmaiar. Realizar o que me pedes, fica acima de toda a vontade e esforço humano. Mas, diz-se que as chances de vida não são as mesmas para todos os guilhotinados. Então volte, professor, no dia da execução. Responderei se concordo ou não com a empreitada, ilusória e impressionante. Se eu não concordar, conto com a sua palavra que a minha cabeça sangrará totalmente, até a última gota, no vaso de barro.

- Está bem, senhor de La Pommerais - disse Velpeau, levantando-se - reflita bem sobre o caso. Em seguida o doutor Velpeau saiu da cela. O carcereiro reapareceu e o prisioneiro se deitou, resignado, para dormir ou sonhar.

* * *

Quatro dias depois, às cinco e meia da manhã, o diretor da Roquette, o abade Crozes, os senhores Claude e Potiers, este conselheiro da corte imperial, penetraram na cela.

O doutor de La Pommerais, ao saber da notícia fatal, se conservou de cabeça baixa, muito pálido. Depois se levantou e se vestiu rapidamente. Em seguida, conversou cerca de dez minutos com o abade Crozes, ao qual já agradecera a visita. Ao avistar o doutor Velpeau anunciou:

- Tenho trabalhado, veja!

E, durante toda a leitura da sentença, conservou fechada a sua pálpebra direita, olhando o cirurgião com o olho esquerdo bem aberto.

Ao final, Velpeau se inclinou demoradamente diante do colega, depois voltou-se para o carrasco, que entrava com seus ajudantes, e trocou com ele um sinal, como a confirmar um tratado.

O apresto foi rápido. O fenômeno dos cabelos que se branqueiam rapidamente ao corte da tesoura nos condenados à morte, não ocorreu. La Pommerais recusou o copinho de aguardente e o cortejo seguiu pelo corredor. Diante do pátio, estando na porta o colega, murmurou-lhe:

- Daqui a pouco... adeus!

* * *

De repente os grande portões de ferro do presídio, que davam para a rua, se abriram.

A aurora despontava. Via-se a praça, organizada por um duplo cordão de cavalarianos. No centro, num semicírculo de guardas a cavalo, surgia o patíbulo. A uma certa distância, além do grupo de jornalistas, não havia ninguém. Mais embaixo, atrás das árvores, ouviam-se os rumores bestiais da multidão, cansada da vigília. Nas coberturas das tavernas, nas janelas, jovens corrompidas, lívidas, em roupas excêntricas; outras, ainda trazendo nas mãos as garrafas de vinho - surgiam acompanhadas de tristes casacas pretas. Já as andorinhas, madrugadoras, voavam em círculos, sobre a praça.

O cadafalso parecia prolongar até o horizonte a sombra dos seus braços estendidos, entre os quais, lá em cima, muito mais distante, no clarão da alvorada, se via brilhar a última estrela.

Diante deste fúnebre espetáculo, o condenado teve um calafrio; depois se aprumou e caminhou direto ao palco, inclinando-se na posição de entrega. A lâmina triangular brilhava junto ao negro madeirame; cinco pessoas se perfilavam no patíbulo e o silêncio, naquele momento, se tornou tão profundo que o leve rumor de um ramo quebrado pelos pés de um curioso chegou até o trágico grupo.

Soando a hora em que lhe foi negado o último recurso, o doutor de La Pommerais pôde ainda ver, do outro lado, seu ilustre colega, que o observava. Fechou os olhos, concentrando-se.

A mola escapou bruscamente, o botão cedeu e o brilho da lâmina oscilou. Um choque violento sacudiu a plataforma e os cavalos se agitaram, como a sentir o cheiro de sangue; o eco do barulho ainda vibrava quando a cabeça ensangüentada da vítima parecia palpitar entre as mãos do doutor Velpeau, avermelhando-lhe os dedos, os punhos, a roupa.

Era um rosto terrivelmente branco, olhos escancarados, com os supercílios arqueados e a boca contraída; os dentes pareciam soltos e o mento, na extremidade da mandíbula, estava cortado.

Velpeau curvou-se sobre a cabeça e, junto à orelha direita, fez a pergunta combinada. Apesar de preparado para aquela contingência, sobressaltou-se, sentindo um frio percorrer-lhe a coluna: a pálpebra do olho direito se abaixou, enquanto o olho esquerdo fixou-o, escancarado.

-Em nome de Deus e do nosso ser, mais duas vezes este sinal! - gritou, confuso.

Os cílios separaram-se, como sob esforço interno, mas a pálpebra não mais se ergueu e a fisionomia se tornou, aos poucos, rígida, gélida e, por fim, imóvel. Era o fim. Então o doutor Velpeau entregou a cabeça exangue ao carrasco, que a colocou num cesto, segundo os costumes, entre as pernas do corpo quase rígido.

O célebre cirurgião lavou as mãos numa das vasilhas destinadas à lavagem da guilhotina. O público se dispersava, silencioso. Também em silêncio, o doutor enxugou as mãos e caminhou a passos lentos, preocupado, até o coche que o esperava junto ao portão.

Ao sair observou a lúgubre carreta que se afastava rapidamente, para o cemitério dos justiçados.

por Villiers de L'Isle-Adam

O Quarto Vermelho

“Posso assegurar-lhe”, disse eu, “que somente um fantasma bem tangível poderá me assustar”. E postei-me diante da lareira, com meu copo na mão.

“A escolha é sua”, disse o homem do braço mirrado e lançou-me um olhar de soslaio.

“Vinte e oito anos”, disse eu, “já vivi e nunca vi um fantasma.”

A velha senhora estava sentada, olhando fixamente para o fogo, os olhos opacos bem abertos. “É”, disse subitamente, “e há vinte e oito anos você vive e nunca viu uma casa como esta, é verdade. Há muitas coisas para ver quando ainda se está com vinte e oito anos.” Ela balançou vagarosamente a cabeça de um lado para o outro. “Muitas coisas para ver e lamentar.”

Eu tinha uma leve suspeita de que os dois velhos estavam tentando acentuar os horrores espirituais de sua casa mediante seu zunido insistente. Coloquei meu copo vazio na mesa e dei uma olhada à volta da sala; tive um vislumbre de mim mesmo, diminuído e disformemente alargado, no antigo e estranho espelho no extremo da sala. “Bem”, disse eu, “se eu vir algo esta noite, ficarei mais sábio. Pois, vim tratar do caso com espírito aberto.”

“A escolha é sua”, disse o homem do braço mirrado novamente.

Ouvi o som de um bengala e passos trôpegos nas lajes do corredor externo, e a porta rangeu nas dobradiças quando um segundo velho entrou, mais curvado, mais enrugado, mais idoso ainda do que o primeiro. Ele apoiava-se em uma única muleta, seus olhos estavam cobertos por uma sombra e seu lábio inferior, meio repuxado, pendia pálido e estriado de rosa de seus dentes estragados e amarelados. Ele dirigiu-se imediatamente para uma poltrona no lado oposto da mesa, sentou-se desajeitadamente e começou a tossir. O home do braço mirrado lançou ao recém-chegado um breve olhar de total aversão; a velha ignorou sua chegada e permaneceu com os olhos fixos no fogo.

“Eu disse: a escolha é sua”, disse o homem do braço mirrado, quando o outro velho parou de tossir por um momento.

“A escolha é minha”, respondi.

O homem da sombra pela primeira vez deu-se conta de minha presença e pendeu momentaneamente sua cabeça para trás e para os lados, para observar-me. Pude ver, por um instante, os seus olhos, pequenos, brilhantes e avermelhados. Então ele começou a tossir e a cuspir novamente.

“Ora, por que você não bebe alguma coisa?” disse o homem do braço mirrado, empurrando a cerveja em sua direção. O homem da sombra encheu um copo com um braço trêmulo que derramou a metade do líquido na mesa de pinho. Uma sombra monstruosa dele rastejava na parede e fazia troça de seus gestos enquanto se servia e bebia. Devo confessar que não imaginava encontrar esses curadores grotescos. Para mim, existe algo de inumano n senilidade, algo de rastejante e atávico; as qualidades humanas parecem abandonar imperceptivelmente os velhos dias após dia. Aqueles três fizeram-me sentir pouco à vontade, com seus silêncios sombrios, seus corpos encurvados, sua clara hostilidade tanto com relação a mim quanto entre si.

“Se”, disse eu, “você me levarem ao seu quarto mal-assombrado, eu me instalarei confortavelmente lá.”

O velho da tosse atirou a cabeça para trás, tão subitamente, que dei um salto, e lançou-me um outro olhar de seus olhos inflamados por debaixo da sombra; mas ninguém me respondeu. Esperei um minuto, fitando-os um a um.

“Se”, disse eu, um pouco mais alto, “se vocês me levarem a esse quarto mal-assombrado, eu os livrarei do trabalho de me fazerem sala.”

“Há um candeeiro na prancha do lado de fora da porta”, disse o homem do braço mirrado, olhando para meus pés enquanto falava. “Mas se você for ao quarto vermelho esta noite...”

“Justamente esta noite!”, disse a velha.

“Você irá sozinho.”

“Muito bem”, respondi. “E onde fica?”

“Vá pelo corredor”, disse ele. “até chegar a uma porta, e além dela há uma escada em caracol e na metade dela há uma plataforma e outra porta coberto com uma baeta. Atravesse-a e siga pelo corredor até o fim. O quarto vermelho fica à esquerda, logo adiante.”

“Entendi direito?”, disse eu repetindo as instruções. Ele em corrigiu em um ponto.

“E você vai mesmo?”, disse o homem da sombra, olhando novamente para mim, pela terceira vez, com aquele estranho, bizarro repuxo no rosto.

(“Justamente esta noite!”, disse a velha.)

“Foi para isso que vim”, disse eu e me dirigi para a porta. Enquanto o fazia, o velho da sombra levantou-se e cambaleou em volta da mesa, para aproximar-se dos outros e do fogo. Na porta, virei-me, olhei para eles e vi que haviam se juntado, escuros, contra o fogo da lareira, encarando-me sobre os ombros, com uma expressão concentrada em seus rostos envelhecidos.

“Boa noite”, disse eu, abrindo a porta.

“A escolha é sua”, disse o homem do braço mirrado.

Deixei a porta aberta até que a chama da vela ficasse bem acesa e então fechei-a e caminhei pelo corredor gelado e ressonante.

Devo confessar que a singularidade desses três velhos pensionistas a quem a proprietária encarregara de cuidar do castelo e a mobília antiquada da sala do zelador na qual eles haviam anteriormente se reunido afetou-me, a despeito de meus esforços em manter minha frieza de espírito. Eles pareciam pertencer a uma outra era, uma era remota, quando as coisas espirituais eram diferente das nossas, menos claras; uma era em que se acreditava em presságios e em bruxas – e acima de tudo em fantasmas.

Sua própria existência era espectral; o corte de suas roupas, estilos nascidos em cérebros mortos. Os ornamentos e objetos úteis da sala a sua volta eram fantasmáticos – pensamentos de homens desaparecidos, que ainda assombravam, mais do que dele participavam, o mundo de hoje. Mas com um esforço consegui despachar tias pensamentos. O corredor subterrâneo, comprido e atravessado de correntes de ar, era gelado e empoeirado, minha vela tremulava e fazia as sombras tremerem e se agitarem. Os ecos soaram acima e abaixo da escada em caracol, e uma sombra veio de baixo, velozmente em minha direção e outra correu à minha frente, para a escuridão acima. Cheguei ao patamar e parei ali por um instante, à escuta de um farfalhar que imaginei ter ouvido; então, convencido pelo silêncio absoluto, abri a porta com a baeta, detive-me no corredor.

O que vi não era bem o que eu esperava, pois o luar, entrando pela grande janela da escadaria imponente, realçava tudo com uma sombra nítida e negra ou com uma luz prateada. Tudo estava em seu lugar: parecia que a casa fora abandonada no dia anterior, em vez de dezoito meses atrás. Havia velas nos soquetes das arandelas e a pouca poeira que cobria os tapetes ou o soalho encerado distribuía-se de modo tão uniforme que era invisível ao luar. Quando estava prestes a entrar, parei abruptamente.

Um grupo de bronze estava em pé no patamar, oculto por mim pela aresta da parede, mas sua sombra caía com uma nitidez surpreendente sobre a almofada branca da porta e deu-me a impressão de alguém agachando-se para me acometer. Fiquei rígido e imóvel por uns segundos, talvez. Então, com a mão no bolso onde estava meu revólver, avancei e descobri um Ganimedes e uma água reluzindo no luar. Aquele fato, por uns momentos, devolveu meu equilíbrio, e um chinês de porcelana sobre uma mesa de marfim, cuja cabeça girou silenciosamente quando passei, pouco me assustou.

A porta do quarto vermelho e os degraus que levavam até ela estavam em um canto envolto na sombra. Movi minha vela de um lado para outro, para ver claramente em que tipo de nicho me encontrava antes de abrir a porta. Fora aqui, pensei, que encontraram meu predecessor, e a lembrança daquela história provocou em mim uma súbita pontada de apreensão. Olhei de relance sobre meu ombro para o Ganimedes ao luar e abri a porta do quarto vermelho com certa pressa, com o rosto meio virado para o silêncio descorado do patamar.

Entrei, fechei imediatamente a porta atrás de mim, girei a chave que encontrara na parte de dentro da fechadura e detive-me, a vela levantada acima de minha cabeça, a examinar o cenário de minha vigília, o grande quarto vermelho do Castelo Lorraine, no qual morrera o jovem duque. Ou antes, no qual ele começara a morrer, pois abrira a porta e caíra de ponta-cabeça nos degraus que eu acabara de galgar. Fora esse o fim de sua vigília, de sua galante tentativa de vencer a tradição espectral do lugar; e nunca, pensei, a apoplexia se prestara melhor aos objetivos da superstição. E havia outras histórias mais antigas ligadas ao quarto, até o início duvidoso de tudo, a história da esposa medrosa e o trágico fim que sobreveio à brincadeira de seu marido, que pretendia assustá-la. E, ao olha à volta do quarto amplo e penumbroso, com suas janelas de sacada envoltas em sombras, seus nichos e alcovas, era fácil entender as lendas que brotavam de seus cantos negros, suas trevas seminais.

Minha vela era apenas uma pequena chama na sua vastidão, insuficiente para penetrar no extremo oposto do quarto e deixava um mar de mistério e insinuações para além de sua ilha de luz. Decidi fazer imediatamente um exame sistemático do lugar e dissipar as insinuações fantasiosas de sua obscuridade antes que tomassem conta de mim. Após verificar se a porta estava realmente fechada, comecei a caminhar pelo quarto, examinando em volta de cada peça de mobília, enrolando os cortinados da cama e abrindo totalmente as cortinas. Empurrei as persianas e examinei os ferrolhos de várias janelas, antes de fechar as folhas, abaixei-me e olhei o negrume da grande chaminé e bati de leve nos lambris de carvalho escuro em busca de alguma passagem secreta. Havia dois espelhos grandes no quarto, cada um com u par de arandelas com velas, e sobre o aparador também havia mais velas em candeeiros de louça. Acendi todos eles, um a um. Havia lenha na lareira, uma inesperada gentileza da velha criada, e eu a acendi, para reprimir qualquer tendência a arrepios, e quando o fogo pegou, fiquei de pé, de costas para ele e observei novamente o quarto.

Eu empurrara uma poltrona coberta de chintz e uma mesa, para formar uma espécie de barricada diante de mim e sobre esta depositei meu revólver, logo à mão. Meu exame minucioso fizera-me bem, mas ainda achei as penumbras mais distantes do lugar e sua absoluta quietude demasiado estimulantes para a imaginação. Os ecos dos chiados e estalidos do fogo não eram de molde a me confortar. A sombra no extremo da alcova, especialmente, possuía aquela indefinível qualidade de uma presença, daquela estranha impressão de uma coisa viva e à espreita, que brota tão facilmente do silêncio e da solidão. Por fim, para me acalmar, dirigi-me para ela com uma vela e convenci-me de que não havia nada material lá. Coloquei a vela no soalho da alcova e deixei-a nessa posição.

A essa altura eu já estava em um estado de grande tensão nervosa, embora racionalmente não houvesse nenhum motivo para isso. Minha mente, contudo, estava perfeitamente lúcida. Convenci-me de que nada de sobrenatural poderia acontecer e, para passar o tempo, comecei a costurar alguns versos, à moda de Ingoldsby, da lenda original local. Uns poucos eu disse em voz alta, mas os ecos não eram agradáveis.

Pelo mesmo motivo também abandonei, depois de algum tempo, um diálogo comigo mesmo sobre a impossibilidade de fantasmas e de assombrações. Minha mente retrocedeu às três pessoas envelhecidas e contorcidas lá embaixo e tentei mantê-la ocupada com isso. Os vermelhos escuros e os negrumes do quarto me preocupavam; até mesmo com as sete velas o lugar estava apenas vagamente iluminado. A da alcova tremeluziu com um golpe de vento, e o bruxuleio do fogo fazia com que as sombras e a penumbra mudassem e se agitassem incessantemente.

Meditando em busca de um recurso, lembrei-me das velas que vira no corredor e, com um ligeiro esforço, saí em direção ao luar, carregando uma vela e deixando a porta aberta; retornei em seguida com dez delas. Coloquei-as em diversos badulaques de louça com os quais o quarta estava adornado aqui e ali, acendi-as e coloquei-as aonde as sombras eram mais densas, algumas no chão, outras nos nichos das janelas, até que por fim minhas dezessete estavam dispostas de forma que nenhum centímetro do quarto ficasse sem a luz direta de pelos menos uma delas.

Ocorreu-me que, quando o fantasma entrasse, eu poderia avisá-lo para não tropeçar nelas. O quarto estava agora envolto em uma luz brilhante. Havia algo de realmente alegre e tranqüilizador naquelas pequenas chamas flutuantes, e cheirá-las manteve-me ocupado e proporcionou-me uma sensação proveitosa de passagem do tempo. Mesmo assim, contudo, a expectativa da vigília tornou-se pesada. Foi após a meia-noite que a vela da alcova subitamente apagou, e a sombra negra retornou ao seu lugar. Não vi a vela apagar-se; simplesmente virei-me e vi que a escuridão estava lá, como alguém que se surpreendesse ao ver a presença inesperada de um estranho.

“Por Júpiter”, disse eu em voz alta, “aquela corrente de ar é forte!”; e pegando os fósforos da mesa, atravessei o quarto de modo despreocupado para iluminar novamente o canto. Não consegui acender o primeiro fósforo e quando consegui acender o segundo algo pareceu piscar na parede a minha frente. Virei a cabeça involuntariamente e vi que as duas velas sobre a mesinha ao lado da lareira haviam se apagado. Pus-me imediatamente em pé.

“Estranho!”, disse eu. “Eu mesmo fiz isso, sem me dar conta?”

Voltei, reacendi uma e quando o fiz vi a vela da arandela à direita de um dos espelhos tremular e apagar-se totalmente; quase imediatamente sua companheira seguiu-a. Não havia dúvidas quanto a isso. A chama sumiu, como se os pavios tivessem sido subitamente beliscados entre um dedo e um polegar, deixando o pavio, não em brasa ou fumegante, mas preto. Enquanto eu estava paralisado, ofegante, a vela ao pé da cama apagou, e as sombras pareceram dar um outro passo em minha direção.

“Assim não vai dar!”, disse eu, e uma e depois outra vela sobre o aparador se seguiram. “O que está acontecendo?”, exclamei, com uma voz que alcançava um tom agudo e estranho. Nesse instante a vela sobre o guarda-roupa apagou e a que eu reacendera na alcova seguiu-a.

“Fique firme!”, disse eu. “Essas velas são necessárias”, falando num tom de facécia semi-histérica, e riscando um fósforo sem para para os castiçais da cornija da lareira. Minhas mãos tremiam tanto que por duas vezes errei a superfície rugosa da caixa de fósforos. Quando a cornija emergiu novamente das trevas, duas velas no canto mais distante da janela estavam apagadas. Mas com o mesmo fósforo eu reacendi as velas maiores do espelho e as do chão próximas da porta, e com isso, por algum tempo, pareceu que eu vencera os apagamentos. Mas então, em um saraivada, apagaram-se quatro luzes ao mesmo tempo em diferentes cantos do quarto, e eu acendi outro fósforo, trêmulo na pressa, e parei hesitante, sem saber para onde levá-lo.

Enquanto estava ali indeciso, uma mão invisível pareceu golpear as duas velas sobre a mesa. Com um grito de terror, disparei para a alcova, depois para o canto e em seguida para a janela, reacendendo três, enquanto duas outras se extinguiam ao lado da lareira; então, divisando um meio melhor, larguei os fósforos sobre a escrivaninha no canto e agarrei o candelabro do quarto.

Com isso, evitei a demora em riscar fósforos; mas mesmo assim o curso uniforme de apagamento continuou, e as sombras que eu temia e contra as quais lutava retornaram e se arrastaram até mim, primeiro com um passo deste lado e depois daquele. Era como uma nuvem de tempestade esgarçada apagando as estrelas. De quando em quando, uma retornava por um instante de depois era perdida novamente.

A essa altura eu já estava quase desvairado de pavor das trevas a caminho, e meu autocontrole abandonou-me. Pulei ofegante e acorri de vela em vela, em um esforço inútil contra o avanço implacável. Machuquei minha coxa contra a mesa, virei uma cadeira, tropecei, caí e na queda puxei a toalha da mesa. Minha vela rolou para longe de mim, e eu agarrei uma outra quando levantei. Esta foi abruptamente, enquanto eu a tirava apressadamente da mesa, apagada pelo deslocamento de ar provocado pelo meu movimento súbito, e imediatamente as duas velas restantes a acompanharam. Mas ainda havia luz na sala, uma luz vermelha que afastava de mim as sombras. O fogo! É claro que eu ainda podia aproximar minha vela das toras e reacendê-la.

Fui até onde as chamas ainda dançavam entre os pedaços de carvão reluzentes e difundiam reflexos rubros sobre a mobília, dei dois passos em direção à grelha e nesse exato instante as chamas bruxulearam e se apagaram, e, enquanto eu enfiava a vela entre as toras, a escuridão fechou-se sobre mim como o baixar de pálpebras, envolvendo-me num abraço apertado, selando minha visão e esmagando os últimos vestígios de razão no meu cérebro. A vela caiu-me da mão. Estiquei os braços em um vão esforço para arremessar para longe de mim aquela escuridão poderosa e, levantando a voz, gritei com toda força – uma, duas três vezes. Depois, acho que deve ter me levantando, cambaleando. Lembro-me de ter pensado subitamente no corredor iluminado da luz do luar e, com a cabeça pendida e os braços sobre o rosto, consegui correr para a porta.

Mas eu esquecera a posição exata da porta, e bati com força contra o canto da cama. Zonzo, recuei, virei e ou fui golpeado ou dei de encontro com alguma outra peça volumosa da mobília. Tenho uma vaga lembrança de ter-me debatido assim, para cá e para lá na escuridão, de uma luta convulsiva e de meu próprio grito desvairado enquanto corria para cá e para lá, de um golpe forte, finalmente, em minha testa, uma horrível sensação de cair que durou séculos, de meu último esforço frenético para manter-me em pé, e de mais nada depois disso.

Abri os olhos com a luz do dia. Minha cabeça estava toscamente enfaixada, e o homem do braço mirrado observava meu rosto. Olhei a minha volta, tentando lembrar o que acontecera, e por um tempo não consegui. Girei os olhos e vi a velha, não mais absorta, derramando algumas gotas de remédio de um frasco azul para um copo. “Onde estou?”, perguntei; “acho que me lembro de vocês, mas não consigo lembrar quem são.”

Eles me disseram então, e ouvi falar do quarto vermelho mal-assombrado como quem ouve um conto de fadas. “Nós o encontramos ao amanhecer”, disse ele, “e havia sangue na sua testa e em sua boca.”

Apenas muito lentamente recobrei a memória de minha experiência. “Você acredita agora”, disse o velho, “que o quarto é mal-assombrado?” Ele não falava mais como alguém que cumprimenta um intruso, mas como quem lamenta um amigo alquebrado.

“Sim”, disse eu; “o quarto é mal-assombrado.”

“E você mesmo viu. E nós, que moramos aqui durante toda a vida, nunca o vimos. Por que nunca ousamos... Diga-nos, é mesmo o velho conde que...”

“Não”, disse eu; “não é.”

“Eu lhe falei”, disse a velha, com o copo na mão. “É a pobre condessa jovem que estava com medo...”

“Não é”, disse eu. “Não existe nem fantasma de conde nem fantasma de condessa naquele quarto, não existe nenhum fantasma lá; mas é muito pior, muito. Muito pior.”

“E então?”, disseram.

“A pior de todas as coisas que assombram o pobre mortal”, disse eu; ”E ela é, pura e simplesmente, o Medo! O medo de que não haja luz nem som, isso não se harmoniza coma razão, isso ensurdece, deprime e subjuga. Ele seguiu-me pelo corredor, lutou contra mim no quarto...”

Parei subitamente. Houve um intervalo de silêncio. Levei a mão às bandagens. Então o homem da sombra suspirou e falou. “É isso”, disse ele. “Eu sabia que era isso. Um poder das trevas. Pôr uma maldição dessas sobre uma mulher! Ele está sempre lá, à espreita. Podemos senti-lo até mesmo durante o dia, até mesmo em dia claro de verão, nos reposteiros, nas cortinas, ficando atrás de nós sempre que não estamos olhando. Na penumbra, ele rasteja pelo corredor e o segue, e nós não ousamos olhar para trás. Há medo naquele quarto dela – Medo negro e haverá... enquanto esta morada do pecado durar.”

por H. G. Wells

A Janela Vedada


Em 1830, a poucas ilhas do que é agora a grande cidade de Cincinnati, estendia-se uma imensa floresta quase inviolada. A região inteira era esparsamente habitada por gente da fronteira – almas inquietas que, tão logo houvessem extraído daquele ermo lares decentemente habitáveis e alcançado o grau de prosperidade que hoje em dia chamaríamos de penúria, abandonavam tudo, impelidos por algum impulso misterioso de sua natureza, e se lançavam adiante, rumo ao oeste, para enfrentar novos perigos e privações, sequiosos que estavam de recuperar o parco bem-estar do qual haviam voluntariamente abdicado.

Muitos destes já haviam trocado a região pelos povoados mais distantes, mas, entre os que ficaram, encontrava-se alguém que fora dos primeiros a chegar. Ele vivia sozinho numa habitação de madeira cercada de todos os lados pela vasta floresta a cuja escuridão e silêncio ele próprio parecia pertencer, pois ninguém jamais o vira sorrir nem o ouvira dizer uma palavra supérflua.

Suas escassas necessidades eram supridas, na aldeia ribeirinha, pela venda ou troca de peles de animais selvagens, uma vez que ele nada plantava na terra que, se preciso, poderia reivindicar por usucapião. Havia sinais de “melhoramentos” – alguns acres ao redor da casa tinham sido desmatados e os restos apodrecidos das árvores se erguiam semi-ocultos pela vegetação recente à qual se permitira remendar o que o machado devastara. Aparentemente, seu entusiasmo pela agricultura se consumira numa chama tíbia antes de apagar-se em cinzas lúgubres.

O casebre de madeira, com sua chaminé primitiva, seu telhado de ripas arqueadas dispostas sobre vigas cruzadas e calafetas com barro, tinha uma única porta no lado oposto ao da janela. Esta, contudo, estava vedada com tábuas e ninguém recordava quando é que não fora assim. Ninguém tampouco sabia o porquê da vedação. Decerto não era porque o ocupante sofresse de aversão à luz ou ao ar, já que, nas raras ocasiões em que o caçador cruzara aquele lugar solitário, o recluso, caso os céus lhe houvessem propiciado um bom tempo, fora frequentemente visto a tomar sol diante da casa. Creio que há poucas pessoas ainda vivas que saibam o segredo da janela, mas, como vocês verão, eu sou uma delas. Diziam que ele se chamava Murlock. Embora aparentasse setenta, tinha cerca de cinqüenta anos.

Outra coisa, além dos anos, contribuiu para seu envelhecimento. Seu cabelo e a longa barba cerrada eram grisalhos, tinha olhos castanhos, embaçados, fundos e um rosto singularmente sulcado de rugas que pareciam pertencer a dois conjuntos entrecruzados. Seu porte era alto e magro, com os ombros encurvados de quem carrega peso. Eu mesmo nunca o vi, e fui informado desses pormenores por meu avô, que foi quem, na minha infância, contou-me a história de Murlock. Ele o conhecera quando, naqueles dias remotos, viva em sua vizinhança.

Um dia Murlock foi achado morto em sua cabana. Como aquela não era uma época de legistas e jornais, concordou-se, suponho, que ele morrera de causas naturais, pois, caso contrário, teriam me dito e eu me lembraria. Tudo o que sei é que, talvez com um sentido do que era apropriado, o corpo foi enterrado perto da cabana, junto à sepultura de sua mulher, que, por ter morrido tantos anos antes, mal deixara na memória local um traço que fosse de sua existência.

Isso encerra o capítulo final deste história verdadeira, exceto, aliás, pelo fato de que anos e anos mais tarde, acompanhado de um espírito igualmente intrépido, aventurei-me no recanto e me aproximei da cabana o bastante para tirar nela uma pedra e sair correndo do fantasma que, como todo garoto bem informado sabia, assombrava o lugar. Há, porém, um capítulo anterior – aquele com que meu avô me presenteara.

Quando Murlock construiu sua cabana e se dedicou vigorosamente ao desmatamento com o intuito de lavrar uma roça, vivendo entrementes de seu rifle, era jovem, robusto e confiante. No país a leste do qual viera ele se casara, como era costume, com uma jovem que, em tudo merecedora de sua afeição sincera, compartilhava, de boa vontade e sem remorsos, os perigos e privações de seu destino. Não há, que se saiba, registro de seu nome. Sobre seus encantos espirituais e pessoais, tampouco há lembrança, e quem tiver dúvidas, que as tenha. Mas Deus me livre de endossá-las! Não faltaram, em cada dia vivido pelo viúvo, provas de sua felicidade e afeto mútuo; pois o que, senão o magnetismo de bênçãos relembradas, poderia ter acorrentado aquele espírito arrojado a tal sina?

Certo dia, voltando de uma parte remota da floresta aonde fora caçar, Murlock encontrou a mulher alquebrada, febril e delirando. Não havia médico num raio de muitos quilômetros, nem vizinho algum. Tampouco ela estava em condições de ser deixada a sós enquanto ele buscava auxílio. Ele tentou cuidar dela, esperando que se recuperasse, mas, ao final do terceiro dia, a mulher perdeu a consciência e, sem jamais, ao que parece, tê-la recuperado, faleceu.

Pelo que sabemos de temperamentos como o dele, podemos imaginar alguns dos detalhes do quadro cujos contornos meu avô delineara. Uma vez convencido da morte dela, Murlock manteve a lucidez necessária para se lembrar de que os mortos devem ser preparados para o enterro. Cumprindo esse dever sagrado, cometeu erros de quando em quando, fez algumas coisas incorretamente e repetiu outras várias vezes até acertar.

Sua incapacidade aqui e ali de executar uma ação comum o deixava atônito como alguém que, embriagado, não entende a suspensão de leis da natureza conhecidas. Que não chorasse, surpreendia-o e também meio que o envergonhava: decerto era insensível não chorar pelos mortos. “Amanhã”, disse em voz alta, “terei feito o caixão e cavado a sepultura; então sentirei falta dela, quando não puder mais vê-la; mas agora – ela está morta, é claro, mas está tudo bem – deve estar tudo bem, de algum modo. Nada é tão ruim quanto parece.”

De frente para o cadáver, à medida que escurecia, ele lhe arrumou o cabelo e deu os retoques finais a seu vestuário singelo. Fez tudo mecanicamente, com uma atenção despida de sentimentos. E, no entanto, uma sensação subjacente de certeza – de que tudo estava bem – perpassara-lhe a mente. Sem experiência prévia de dor, sua capacidade de senti-la não fora exercitada pelo uso. Seu coração era incapaz de abarcá-la por inteiro e sua imaginação, de imaginá-la. Ele ignorava a dureza do golpe que sofrera. Tal conhecimento viria depois e nunca mais o deixaria.

A dor é uma artista cujos poderes são tão diversos quanto os instrumentos nos quais toca seus lamentos para os mortos, despertando em alguns as notas mais agudas e penetrantes e em outros os acordes baixos e graves que palpitam repetidamente como as cadências lentas de um tambor distante. Alguns temperamentos, ela alarma; outros, entorpece. Há quem ela atinja feito uma flecha, excitando-lhe as suscetibilidades para uma vida mais ativa; há quem ela abata como uma clava que, num golpe, paralisa a vítima.

Murlock foi provavelmente afetado desta última maneira, pois (e isto é mais do que mera conjectura), assim que terminou suas piedosas tarefas, afundou na cadeira junto à mesa sobre a qual jazia o corpo e, observando quão branco o perfil se mostrava contra as trevas cada vez mais espessas, depôs os braços na borda da mesa e, sem lágrimas mas indizivelmente exausto, deixou cair neles seu rosto. Naquele preciso instante, um gemido prolongado, semelhante ao grito de uma criança perdido no fundo da floresta que escurecia, entrou pela janela aberta. Ele, porém, não se mexeu. Ainda mais próximo, o grito sobrenatural soou de novo enquanto ele desacordava. Talvez fosse uma fera, talvez um sonho. Pois Murlock adormecera.

Algumas horas mais tarde, ou assim lhe pareceu depois, a sentinela irresponsável acordou e, erguendo a cabeça deitada nos braços, ouviu atentamente – sem saber por quê. Lá, no breu escuro junto à morta, recordando tudo sem sobressalto, ele se esforçou para ver não sabia o quê. Todos os seus sentidos em estado de alerta e a respiração suspensa, seu sangue, como que colaborando com o silêncio, parara de correr. Quem ou o que o acordara, e aonde é que estava?

Súbito a mesa foi sacudida debaixo de seus braços e no mesmo instante ele escutou, ou julgou escutar, um passo leve, suave, e mais outro - sons de pés descalços pisando o chão!

Aterrorizado demais para gritar ou se mover, viu-se obrigado a aguardar – aguardar ali no escuro durante o que lhe pareceu serem séculos do maior pavor que se pode experimentar e ainda viver para contar. Ele tentou em vão pronunciar o nome da morta, tentou em vão estender a mão sobre a mesa para verificar se ela estava ali. Sua garganta estagnou, seus braços e mãos pesavam como chumbo.

Foi então que ocorreu algo assustador. Um corpo pesado parecia ter sido arremessado contra a mesa com tamanho ímpeto que esta foi empurrada contra seu peito tão bruscamente a ponto de quase derrubá-lo. Ao mesmo tempo, ouviu e sentiu algo cair no chão com um baque cujo impacto violento fez a casa inteira estremecer. Seguiram-se um embate e um tumulto barulhento impossíveis de descrever. Murlock se ergueu. O excesso de medo o privara do controle de suas faculdades. Ele lançou as mãos sobre a mesa.

Não havia nada lá! Há um ponto no qual o pavor se converte em loucura e a loucura instiga a ação. Sem intenção clara ou motivo, salvo o impulso caprichoso de um louco, Murlock alcançou com um salto a parede e, após tateá-la brevemente, pegou seu rifle carregado e, sem fazer mira, disparou. Graças ao clarão que iluminou vividamente a sala ele viu uma pantera imensa arrastando a morta ruma à janela, seus dentes cravados no pescoço dela! O que veio em seguida foi uma escuridão ainda mais negra e o silêncio. Quando ele recobrou os sentidos, o sol estava alto e a floresta melodiosa com o canto dos pássaros.

O corpo jazia perto da janela onde, espantada pelo clarão e pelo estampido do rifle, a fera o deixara. A roupa estava desarrumada; a longa cabeleira, revolta; os membros, contorcidos ao léu. Do pescoço horrendamente dilacerado jorrava uma poça de sangue ainda não de todo coagulado. A fita com a qual ele lhe atara os pulsos se rompera. As mãos estavam firmemente crispadas. Havia entre os dentes um pedaço da orelha do animal.


Valsinha Macabra

Romance de uma Caveira (valsa humorística, 1940) - Alvarenga, Ranchinho e Chiquinho Sales

Eram duas caveiras que se amava / e à meia-noite se encontrava pelo cemitério os dois passeava / e juras de amor então trocava.

Sentado os dois / em riba da lousa fria a caveira apaixonada / assim dizia que pelo caveiro de amor morria / e ele de amores por ela vivia.


Ao longe uma coruja cantava alegre / de ver os dois caveiro assim feliz / e quando se beijavam em tom fúnebre / a coruja batendo as asa pedia bis.



Mas um dia chegou de "pé junto" / um cadáver, um defunto /
E a caveira pr' ele se apaixonou / e o caveiro antigo abandonou.

O caveiro tomou uma bebedeira / e matou-se de modo romanesco /

por causa dessa ingrata caveira / que trocou ele por um defunto fresco.

Soturna Cantiga

Perdão, Emília (modinha, 1889)
- José Henrique da Silva e Juca Pedaço

Paraguassu


Já tudo dorme, vem a noite em meio, a turva lua se surgindo além: / Tudo é silêncio; só se vê nas campas, piar o mocho no cruel desdém. / Depois, um vulto de roupagem preta, no cemitério com vagar entrou. / Junto ao sepulcro, se curvando a medo, com triste frase nesta voz falou:

"Perdão, Emília, se roubei-te a vida, se fui impuro, fui cruel, ousado... / Perdão, Emília, se manchei teus lábios. / Perdão, Emília, para um desgraçado." / "Monstro tirano, por que vens agora, lembrar-me as mágoas que por ti passei? / Lá nesse mundo em que vivi chorando, desde o instante em que te vi e amei.

Chegou a hora de tomar vingança, mas tu, ingrato, não terás perdão... / Deus não perdoa as tuas culpas todas, / Castigo justo tu terás, então. / Perdi as flores da capela virgem, / Cedi ao crime, que perdão não tinha, mas, tu, manchaste a minha vida honesta, / Depois, zombaste da fraqueza minha...

Ai, quantas vezes, aos meus pés, curvado, davas-me prova de teu puro amor. / Quando eu julgava que fosses um anjo, não via fundo nesse olhar traidor. / Mas vês agora, que o corpo em terra tombou, de chofre, sobre a lousa fria."

E quando a hora despontou, na lousa um corpo inerte a dormitar se via: / "Perdão, Emília, se manchei-te a vida, se fui impuro, fui cruel, ousado... / Perdão, Emília, se manchei teus lábios. / Perdão, Emília, para um desgraçado."....


Primeira modinha gravada em 1902 pela Casa Edison. Almirante no programa "O Pessoal da Velha Guarda" de 13 de março de 1952 afirmava: "Entre as velhas e mais plangentes modinhas do Brasil figura a célebre “Perdão Emília”, soturna cantiga que foi [flor?] pelo Brasil afora no tempo das serenatas. Jamais se apurou quem a escreveu. Aproveitando-se dessas circunstâncias, um cantor paulista apossou-se dela, gravando-a em discos com o seu nome. É uma desfaçatez, que foi uma nódoa na decência da profissão de autores e de cantores nessa terra.

“Perdão Emília”, segundo informação de antigos ouvintes, informações a que dão curso sem apoiar ou desapoiar, foi composta por um português chamado José Henrique da Silva, que residiu longo tempo em São João da Barra. Foi escrita há 63 anos, em 1889, quando o seu autor contava 24 anos de idade. Isso, repito, é a informação de um ouvinte que nos deu por carta, e que jamais pudemos apurar."