sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Muralhas do Pavor

"Edgar Allan Poe é, indubitavelmente, o maior escritor de horror de todos os tempos, e qualquer tentativa de explicar o que faz jus a tão expressivo adjetivo é completamente inútil, basta analisarmos a sua inovadora e filosófica obra literária, jamais igualada por qualquer outro escritor. E, apoiando-se em bases tão sólidas quanto estas, é fácil imaginar porque os diretores e roteiristas sempre buscaram em Poe alguma inspiração.

Foi assim em 1932, quando o diretor Robert Florey resolveu filmar o grande clássico policial e precursor do gênero na literatura Os Assassinatos da Rua Morgue, com Bela Lugosi, e impulsionando a filmagem de outras obras do mestre, como O Gato Preto (1933) e O Corvo (1935), filmes estrelados por Bela Lugosi e Boris Karloff, atores que acabavam de sair das bem sucedidas adaptações de Drácula e Frankenstein (ambos de 1931).

Nas décadas posteriores o genial escritor novamente inspirou diretores e roteiristas, mas apenas Roger Corman soube extrair o verdadeiro terror que emanava das obras de Allan Poe, criando filmes baratos mas que alcançaram rápido sucesso entre os amantes do velho e bom horror gótico, no verdadeiro estilo europeu do século XIX.

Roger Corman, que além de dirigir também produzia os seus próprios filmes, descobriu esta fonte rica e inesgotável ao lançar A Queda da Casa de Usher (1960), que alcançou sucesso imediato, levando o diretor a criar outras obras-primas como O Poço e o Pêndulo (61), Muralhas do Pavor (62), O Corvo (63), A Máscara Mortal (64) e The Tomb of Ligeia (64); todos baseados em Poe, mas que apresentavam as características mudanças que o roteirista oficial da American International Pictures (AIP), Richard Matheson, geralmente fazia, sem contudo, prejudicar o clima gótico descrito pelo escritor, ao contrário, a mitológica parceria Corman-Matheson-Price fizeram as mais criativas pérolas do horror da história do cinema.

Muralhas do Pavor (Tales of Terror) é um caso à parte em termos de inovação. Neste filme o roteirista Matheson condensou quatro contos de Poe em três histórias fantásticas, demonstrando que o dinheiro se torna fútil quando se tem criatividade e talento.

A primeira história do filme é baseada no conto Morella e o clima gótico apresentado é grandioso mas cheio de clichês, com direito a castelo-macabro-na-beira-de-precipício. Mostra a estranha conduta do senhor Locke (Vincent Price), um homem excêntrico e recluso em sua velha mansão, e cuja rotina diária consiste em remoer e lamentar amargas lembranças do passado. Sua rotina, porém, muda completamente quando a sua filha Lenore (Maggie Pierce) retorna depois de 26 anos e traz consigo lembranças ainda mais amargas, já que era considerada por Locke a assassina de sua mãe Morella (Leona Gage), cujo corpo era mantido embalsamado em uma cama. Lenora tenta se reconciliar com o pai, que apesar de parecer duro e inflexível, se dobra ante as suas lamentações. Mas quando tudo parecia voltar ao normal, Morella, usando o corpo da própria filha, volta para vingar-se de ambos. "E os ventos do firmamento uivavam os únicos sons em meus ouvidos, mas as ondas do mar murmuravam... Morella".

A segunda história é na verdade uma criativa e bem humorada adaptação de Matheson, que condensou e uniu os contos O Gato Preto e O Barril de Amontilado e os narrou de forma excelente. Novamente brilha o gênio de Vincent Price, agora contracenando com outro mito, o cômico Peter Lorre, e sem dúvida nenhuma o grande momento dessa história é justamente o encontro deles em uma taverna onde ocorre uma convenção de vendedores de vinho; e a disputa entre eles para saber quem é o melhor conhecedor de vinhos é fantástica, numa verdadeira e bem humorada cena com trocas mútuas de canastrice (no bom sentido!).

O “pequeno gigante” Peter Lorre, numa das caracterizações de bêbado mais perfeitas que eu já vi, mostra todo o seu talento ao interpretar Montresor Herringbone, um bêbado inveterado que vinga-se de seu amigo-rival Fortunato Luchresi (Price) e de sua infiel esposa Annabel (Joyce Jameson, a mesma de Farsa Trágica - 63) por traição. Ele empareda ambos, “nas muralhas do pavor”, só que comete o pequeno deslize de emparedar junto o gato preto que ele tanto odiava; e este mesmo gato, com rugidos macabros e fantasmagóricos, o denuncia futuramente durante uma inspeção da polícia em sua casa. "Emparedara o monstro negro bem dentro do túmulo. "

A terceira e última história é baseada no conto O Estranho Caso do Sr. Valdemar; e é a mais sombria e mórbida, e apresenta novamente Vincent Price no papel principal, contracenando agora com outro monstro sagrado do horror, o excêntrico Basil Rathbone, que faz o papel do Dr. Carmichael, o médico de Valdemar.

Na minha opinião, O Estranho Caso do Sr. Valdemar forma, juntamente com A Queda da Casa de Usher os mais sombrios e fantásticos contos de Poe, e talvez de toda a literatura macabra. O clima pesado e gótico dessa história mostra que o autor a escreveu em seu momento de maior inspiração, revelando de forma assustadora como poderia ser se uma pessoa fosse colocada em transe hipnótico-magnético exatamente no momento em que exala o seu último suspiro. É uma história tão fantástica que em alguns momentos parece ser real! E creio que Richard Matheson conseguiu perceber esse clima, e adaptou de forma extraordinária esta obra-prima da literatura fantástica, modificando-a em detalhes quase imperceptíveis, apena spara se encaixar nos padrões cinematográficos.

A belíssima Debra Paget (que voltaria a trabalhar com Price em 1963 no clássico O Castelo Assombrado, também de Corman) interpreta a esposa do Sr. Valdemar e tenta impedí-lo de deixar que o Dr. Carmichael prossiga com suas macabras experiências mesméricas. Mas quando o Sr. Valdemar estava em seu leito de morte, o doutor finalmente realiza sua experiência e consegue êxito, impedindo que o velho moribundo descanse em paz. Mas este, no final, volta-se contra a conduta egoísta e traiçoeira do Dr. Carmichael, já que as consequências não foram muito boas, e o mata para sair de seu inferno podre e inacabável e descansar para sempre no sono da morte.

Muralhas do Pavor apresenta tudo que um fã do horror clássico poderia pedir: clima gótico apurado e eficiente; a presença impagável de atores cujo nome não é necessário citar e história baseada no mais sombrio escritor de todos os tempos, Edgar Allan Poe... Quer mais?! Então morra!!!!" (E. R. Corrêa)



Ficha Técnica

Muralhas do Pavor (Tales of Terror, EUA, 1962, 86 minutos).
Direção:Roger Corman
Roteiro: Richard Matheson, baseado em contos de Edgar Allan Poe
Produção: Roger Corman
Produção Executiva: Samuel Z. Arkoff; James H. Nicholson
Música: Les Baxter
Fotografia: Floyd Crosby
Edição: Anthony Carras
Efeitos Especiais: Pat Dinga
Efeitos Visuais: Ray Mercer
Desenho de Produção: Bartlett A. Carre; Daniel Haller

Elenco

Vincent Price (Fortunato/Valdemar/Locke); Maggie Pierce (Lenora Locke); Leona Gage (Morella Locke); Edmund Cobb; Peter Lorre (Montresor Herringbone); Joyce Jameson (Annabel Herringbone); John Hackett; Lennie Weinrib; Wally Campo; Alan DeWitt; Basil Rathbone; Debra Paget; David Frankham; Scott Brown.

Sinopse

Um clássico baseado na obra de Edgar Allan Poe, contendo 4 contos interpretado pelo mestre no gênero Vicent Price. O filme tem 3 episódios; "Morella", sobre o cadáver de uma mulher morta há 26 anos; a segunda e a junção de dois contos, "O Gato Preto" e "O Barril de Amontilado", onde um velho bêbado trava amizade com um degustador de vinhos; o terceiro e último é "Fatos Estranhos do Sr. Valdemar" sobre um médico que hipnotiza um moribundo para se comunicar com sua mulher no além.

Fontes: MovieMago - Muralhas do Pavor; Boca do Inferno - Muralhas do Pavor

O Sepultamento Prematuro

Há certos temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horríveis para os fins da legítima ficção. O simples romancista deve evitá-los se não deseja ofender ou desgostar. Só devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a imponência da verdade os santificam e sustentam.

Estremecemos, por exemplo, com o mais intenso "pesar agradável", diante das narrativas da Passagem do Beresina, do Terremoto de Lisboa, da Peste em Londres, do Massacre de São Bartolomeu, ou da asfixia dos cento e vinte três prisioneiros da Caverna Negra em Calcutá. Mas nessas narrativas é o fato, é a realidade, é a história o que excita. Como invenções, olhá-las-íamos com simples aversão.

Mencionei algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a história registra. Mas nelas existe a extensão, bem como o caráter, de calamidade, que tão vivamente impressiona a fantasia. Não é necessário lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso catálogo das misérias humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais repletos de sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres generalizados. A verdadeira desgraça, na verdade, o derradeiro infortúnio, é particular e não difuso. Demos graças a um Deus misericordioso pelo fato de serem os espantosos extremos da agonia suportados pelo homem-unidade e nunca pelo homem-massa!

Ser enterrado vivo é, fora de qualquer dúvida, o mais terrífico daqueles extremos que já couberam por sorte aos simples mortais. Que isso haja acontecido freqüentemente, e bem freqüentemente, mal pode ser negado por aqueles que pensam. Os limites que separam a Vida da Morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde uma acaba e a outra começa? Sabemos que há doenças em que ocorre total cessação de todas as aparentes funções de vitalidade, mas, de fato, essas cessações são meras suspensões, propriamente ditas. Não passam de pausas temporárias no incompreensível mecanismo. Certo período decorre e alguns princípios misteriosos e invisíveis põem de novo em movimento os mágicos parafusos e as encantadas rodas. A corda de prata não estava solta para sempre, nem o globo de ouro irreparavelmente quebrado. Mas, entrementes, onde se achava a alma?

De parte, porém, a inevitável conclusão, a priori, de que causas tais devem produzir tais efeitos, de que a bem conhecida ocorrência de tais casos de interrompida animação deve, naturalmente, dar azo, de vez em quando, a enterros prematuros, de parte esta consideração temos o testemunho direto da experiência médica e da experiência comum a provar que grande número de semelhantes enterros se tem realmente realizado.

Se fosse necessário, poderia referir-me imediatamente a uma centena de casos bem autenticados. Um dos mais famosos, e cujas circunstâncias podem estar ainda frescas na memória de alguns de meus leitores, ocorreu, não faz muito, na vizinha cidade de Baltimore, onde causou uma excitação penosa, intensa e de vasto alcance. A esposa de um dos mais respeitáveis cidadãos, advogado eminente e membro do Congresso, foi atacada de súbita e estranha moléstia que zombou completamente do saber de seus médicos. Depois de muitos sofrimentos veio a falecer, ou supôs-se que houvesse falecido. Ninguém suspeitava, na verdade, nem tinha razão de suspeitar, que ela não estivesse realmente morta. Apresentava todos os sinais habituais de morte. O rosto tomara o usual contorno cadavérico. Os lábios tinham a habitual palidez marmórea. Os olhos estavam sem brilho. Não havia calor. A pulsação cessara. Durante três dias o corpo foi conservado insepulto, adquirindo então uma rigidez de pedra. Afinal, o enterro foi apressado, por causa do rápido avanço do que se supunha ser a decomposição.

A mulher fora depositada no jazigo da família, que não foi aberto nos três anos subseqüentes. Ao expirar esse prazo, abriram-no para receber um ataúde; mas, ai!, que pavoroso choque esperava o marido que abrira em pessoa a porta. Ao se escancararem os portais, certo objeto branco caiu-lhe ruidosamente nos braços. Era o esqueleto de sua mulher, ainda com a mortalha intacta.

Cuidadosa investigação tornou evidente que ela recuperara a vida dois dias depois de seu enterro; que sua luta dentro do ataúde fizera-o cair de uma saliência ou prateleira, no chão, onde se quebrara, permitindo-lhe escapar. Uma lâmpada que fora, por acaso, deixada cheia de óleo dentro do jazigo foi encontrada vazia; contudo, poderia ter sido esgotada pela evaporação. No alto dos degraus que levavam à câmara mortuária, havia um grande fragmento do caixão, com o qual, parecia, tinha ela tentado chamar a atenção batendo na porta de ferro. Enquanto assim fazia, provavelmente desfaleceu ou possivelmente morreu tomada de terror completo e, ao cair, sua mortalha ficou presa a algum pedaço de ferro saliente no interior. E assim ela permaneceu e assim apodreceu, ereta.

No ano de 1810, um caso de inumação viva aconteceu na França, cercado de circunstâncias que provam plenamente a afirmativa de que a verdade é, de fato, mais estranha do que a ficção. A heroína da história era Mademoiselle Vitorina Lafourcade, moça de ilustre família, rica e de grande beleza pessoal. Entre seus numerosos pretendentes havia um tal Julien Bossuet, pobre literato ou jornalista de Paris. Seu talento e sua amabilidade tinham atraído a atenção da herdeira, por quem parecia ter sido verdadeiramente amado; mas o orgulho de seu nascimento decidiu-a, por fim, a repeli-lo e a casar-se com um certo Monsieur Renelle, banqueiro e diplomata de certa importância.

Depois do casamento, porém, esse cavalheiro a desprezou e, talvez mesmo mais positivamente, maltratou-a. Tendo passado a seu lado alguns anos infelizes, ela morreu; pelo menos, seu aspecto se assemelhava tão de perto à morte que enganava a qualquer que a visse. Foi enterrada, não num jazigo, mas num sepulcro comum, na vila onde nascera. Cheio de desespero e ainda inflamado pela lembrança de sua profunda afeição, o apaixonado viajou da capital para a longínqua província em que se achava a aldeia, no romântico propósito de desenterrar o cadáver e apossar-se de suas fartas madeixas. Chegou ao túmulo. À meia-noite desenterrou o caixão, abriu-o e, ao cortar-lhe o cabelo, foi detido pelos olhos abertos de sua amada.

De fato, a mulher tinha sido enterrada viva. A vitalidade ainda não desaparecera de todo e ela foi despertada pelas carícias de seu amado do letargo que fora tomado como morte. Ele a levou, nervosamente, para seus aposentos na aldeia. Empregou certos poderosos analépticos sugeridos por seus não pequenos conhecimentos médicos. Por fim, ela reviveu. Reconheceu seu salvador. Permaneceu com ele até que, gradativamente, recobrou por completo a primitiva saúde. Seu coração de mulher não tinha a dureza dos diamantes e essa última lição de amor bastou para abrandá-lo. Concedeu-o a Bossuet. Não voltou à companhia do marido; mas, ocultando dele a sua ressurreição, fugiu com seu amante para a América. Vinte anos depois, ambos voltaram à França, persuadidos de que o tempo tinha alterado tão grandemente o aspecto da mulher que seus amigos seriam incapazes de reconhecê-la. Enganaram-se, porém, porque, ao primeiro encontro, Monsieur Renelle reconheceu logo e reclamou sua mulher, Ela se opôs a essa reclamação e um tribunal de justiça apoiou-a, decidindo que as circunstâncias peculiares e o longo lapso de anos haviam extinguido, não só eqüitativa, mas legalmente, a autoridade do marido.

O Jornal de Cirurgia de Lipsia, periódico de alta autoridade e mérito, que alguns livreiros americanos fariam bem em traduzir e republicar, relembra num dos últimos números um acontecimento bem penoso dessa mesma espécie.

Um oficial de artilharia, homem de gigantesca estatura e vigorosa saúde, tendo sido atirado de um cavalo indomável, recebeu fortíssima contusão na cabeça que o tornou imediatamente insensível. O crânio ficou levemente fraturado, mas não se temia imediato perigo. A trepanação foi executada com pleno êxito. Sangraram-no e puseram-se em execução vários outros meios comuns de alívio. Gradualmente, porém, foi ele mergulhando, cada vez mais, num estado de desesperado torpor e, finalmente, pensou-se que havia morrido.

O tempo era de calor, e enterraram-no, com pressa censurável, num dos cemitérios públicos. Seu enterro realizou-se na quinta-feira. No domingo seguinte o cemitério, como de costume, encheu-se de visitantes e, ao meio-dia, produziu-se intensa excitação quando um camponês declarou que, tendo-se sentado sobre o túmulo do oficial, sentira distintamente um movimento da terra, como se ocasionado por alguém que lutasse ali embaixo. A princípio, pouca atenção foi dada à afirmativa do homem, mas seu evidente terror e a teimosia obstinada com que persistia em sua história produziram, afinal, natural efeito sobre a multidão. Procuraram-se, às pressas, pás e o túmulo, que era vergonhosamente pouco profundo, foi em poucos minutos tão depressa escavado que a cabeça do seu ocupante apareceu; ele estava, então, aparentemente morto, mas sentara-se quase ereto dentro do caixão cuja tampa, na sua luta furiosa, havia parcialmente soerguido.

Foi imediatamente transportado ao mais próximo hospital e ali declarou-se que ele estava ainda vivo, embora em estado de asfixia. Depois de algumas horas, reviveu, reconheceu pessoas de sua amizade e, em frases entrecortadas, narrou as agonias que sofrera na sepultura.

Pelo que ele relatou ficou patente que devera ter estado consciente de perder os sentidos. A sepultura fora descuidada e frouxamente cheia de uma terra excessivamente porosa, e assim algum ar podia, necessariamente, penetrar. Ele ouviu o tropel de passos da multidão por cima de sua cabeça e procurou fazer-se ouvir, por sua vez. Foi o barulho dentro do cemitério, disse ele, que pareceu despertá-lo de um profundo sono, mas logo que despertou sentiu-se plenamente cônscio do horror pavoroso de sua situação.

Este paciente, conta-se, estava indo bem e parecia achar-se em franco caminho de completo restabelecimento, mas foi vítima do charlatanismo das experiências médicas. Aplicaram-lhe uma bateria elétrica e ele, de repente, expirou num daqueles extáticos paroxismos que ela ocasionalmente provoca.

A menção da bateria elétrica, aliás, traz-me à memória um caso bem conhecido e extraordinário, em que sua ação provou-se eficaz em fazer voltar à vida um jovem procurador londrino que estivera enterrado durante oito dias. Isto ocorreu em 1831, e causou, em seu tempo, profundíssima sensação em toda a parte em que se tornasse o assunto da conversa.

O paciente, Sr. Eduardo Stapleton, tinha morrido, parece, de tifo, com certos sintomas anômalos que haviam excitado a curiosidade de seus médicos assistentes. A respeito dessa morte aparente, solicitou-se de seus amigos que permitissem um exame post mortem, mas eles se negaram a consentir nisso. Como acontece muitas vezes quando se fazem tais recusas, os profissionais resolveram desenterrar o corpo e dissecá-lo, com vagar, por sua conta. Realizaram-se facilmente os preparativos, com os numerosos grupos de desenterradores de cadáveres, então muito encontradiços em Londres e, na terceira noite depois do funeral, o suposto cadáver foi desenterrado duma cova de dois metros e quarenta de profundidade e depositado na sala de operações de um dos hospitais particulares.

Uma incisão de certo tamanho fora já feita no abdômen, quando a aparência fresca e incorrupta do paciente sugeriu que se fizesse aplicação duma bateria. As experiências se sucederam e sobrevieram os efeitos costumeiros, sem nada que, de algum modo, os caracterizasse, exceto, numa ou duas ocasiões, certo grau um pouco incomum de vivacidade na ação convulsiva.

Fazia-se tarde. O dia estava prestes a raiar e achou-se, afinal, que era conveniente proceder, sem demora, à dissecação. Um estudante, porém, estava especialmente desejoso de provar certa teoria sua e insistiu em que se aplicasse a bateria num dos músculos peitorais. Deu-se um grosseiro talho e aplicou-se apressadamente um fio; então o paciente, num movimento ligeiro, mas não convulsivo, ergueu-se da mesa, andou até o meio do soalho, olhou inquieto por instantes em redor de si e depois... falou. Não se podia entender o que dizia, mas as palavras eram ditas e a formação das sílabas distinta. Depois de falar, caiu pesadamente no soalho.

Por alguns instantes todos ficaram paralisados de terror, mas a urgência do caso em breve os fez recuperar a presença de espírito. Via-se que o Sr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Com aplicações de éter reviveu e, sem demora, recuperou a saúde, voltando ao convívio de seus amigos, dos quais, porém, todo conhecimento de sua ressurreição fora oculto, até passar o perigo de uma recaída. Podem imaginar-se sua admiração e seu arrebatador espanto.

A mais emocionante particularidade desse incidente, contudo, consiste no que o próprio Sr. Stapleton afirma. Declara ele que em nenhuma ocasião esteve totalmente insensível; que vaga e confusamente tinha consciência de tudo quanto lhe acontecia, desde o momento em que foi declarado morto pelos médicos, até aquele em que desmaiou no soalho do hospital. "Eu estou vivo" foram as palavras incompreendidas que, ao reconhecer que se achava numa sala de dissecação, tinha tentado pronunciar, naquela hora extrema.

Seria coisa fácil multiplicar histórias como esta, mas abstenho-me disso porque, na verdade, não temos necessidade de tal coisa para demonstrar que, efetivamente, ocorrem enterros prematuros. Quando refletimos, dada a natureza do caso, quão raramente nos é possível descobri-los, devemos admitir que eles possam ocorrer freqüentemente sem que o saibamos. É raro, na verdade, que um cemitério seja revolvido, alguma vez, com qualquer propósito e em grande extensão, e não se encontrem esqueletos em posições que sugerem as mais terríveis suspeitas.

Terrível, na verdade, a suspeita, porém mais terrível é tal destino! Podemos asseverar, sem hesitação, que nenhum acontecimento é tão horrivelmente capaz de inspirar o supremo desespero do corpo e do espírito como ser enterrado vivo. A insuportável opressão dos pulmões, os vapores sufocantes da terra úmida, o contato dos ornamentos fúnebres, o rígido aperto das tábuas do caixão, o negror da noite absoluta, o silêncio como um ar que nos afoga, a invisível, porém sensível, presença do Verme Conquistador, tudo isso, com a idéia do ar e da relva lá em cima, a lembrança dos queridos amigos que acorreriam a nos salvar se informados de nosso destino, e a consciência de que eles jamais poderão ser informados desse destino, e de que nossa desesperada sorte é a do realmente morto, essas considerações, digo, acarretam ao coração que ainda palpita um grau tal de horror espantoso e intolerável que a mais ousada imaginação recua diante dele.

Nada conhecemos de maior agonia sobre a terra. Não podemos imaginar nem a metade de coisa tão horrível nas regiões do mais profundo inferno. E, por isso, qualquer narrativa a respeito tem interesse profundo; interesse, porém, que, através do sagrado terror do próprio assunto, bem própria e caracteristicamente depende de nossa convicção da verdade do caso narrado. O que tenho agora a contar é do meu real conhecimento, da minha própria, positiva e pessoal experiência.

Durante vários anos estive sujeito a ataques da estranha moléstia que os médicos concordaram chamar catalepsia, na falta de denominação mais definida. Embora tanto as causas imediatas e predisponentes como o verdadeiro diagnóstico desta doença ainda sejam misteriosos, seu caráter claro e evidente já está bastante compreendido. Suas variações parecem ser, principalmente, de grau.

Às vezes, o paciente jaz, durante um dia só, ou mesmo durante curto período, numa espécie de exagerada letargia. Perde a sensibilidade e os movimentos, mas a pulsação do coração é ainda fracamente perceptível; alguns restos de calor permanecem; ligeiro colorido se mantém no centro da face; e, aplicando um espelho à boca, pode-se descobrir uma lenta, desigual e vacilante ação dos pulmões. Outras vezes, a duração do transe é de semanas ou mesmo de meses, e a mais severa investigação, as mais rigorosas experiências médicas não conseguem estabelecer qualquer distinção material entre o estado do paciente e o que concebemos como morte absoluta.

Freqüentes vezes é ele salvo do enterro prematuro apenas por saberem seus amigos que fora anteriormente sujeito a ataques catalépticos, pela conseqüente suspeita suscitada e, acima de tudo, pela aparência incorrupta. Os progressos da doença são, felizmente, gradativos. As primeiras manifestações, além de típicas, são inequívocas. Os acessos se tornam, sucessivamente, cada vez mais distintos, prolongando-se cada um mais do que o anterior. Nisto jaz a principal garantia contra a inumação. O infeliz cujo primeiro ataque for de caráter extremo, como ocasionalmente se vê, estará quase sem remédio condenado a ser enterrado vivo.

Meu próprio caso não diferia, em pormenores importantes, dos mencionados nos livros médicos. As vezes, sem nenhuma causa aparente, eu mergulhava, pouco a pouco, num estado de semi-síncope ou semidesmaio; e neste estado, sem dor, sem possibilidade de mover-me ou, estritamente falando, de pensar, mas com uma nevoenta e letárgica consciência da vida e da presença dos que cercavam minha cama, eu permanecia até que a crise da doença me fizesse recuperar, de súbito, a completa sensação. Outras vezes, era rápida e impetuosamente surpreendido pelo ataque. Sentia-me doente, entorpecido, frio, aturdido e caía logo prostrado. Depois, durante semanas, tudo era vácuo, negror, silêncio, e num nada se transformava o universo. Não poderia haver mais total aniquilação. Destes últimos ataques eu despertava, porém, com lentidão gradativa na proporção da subitaneidade do acesso. Da mesma forma por que o dia alvorece para o mendigo, sem lar e sem amigos, que vaga pelas ruas, através da longa e desolada noite de inverno, assim também tardia, assim também cansada, assim também alegre, voltava a luz à minha alma.

Exceto aquela predisposição para o ataque, meu estado geral de saúde apresentava-se bom; nem eu podia perceber que todo ele se achava afetado por uma doença predominante, a menos que, realmente, certa reação em meu sono comum pudesse ser olhada como mais um sintoma. Logo ao despertar, nunca podia de imediato assenhorar-me de meus sentidos e sempre permanecia, durante muitos minutos, em grande confusão e perplexidade, com as faculdades mentais em geral, e especialmente a memória, num estado de absoluto torpor.

Em tudo isso que eu experimentava não havia sofrimento físico, mas infinita angústia moral. Minha imaginação se tornava macabra. Falava de "vermes, de covas e epitáfios". Perdia-me em devaneios de morte e a idéia do enterro prematuro se apossava de contínuo de meu cérebro. O horrendo perigo a que estava sujeito assombrava-me dia e noite. De dia, a tortura da meditação era excessiva; de noite, suprema. Quando a disforme Escuridão inundava a terra, com todo o horror do pensamento eu tremia, tremia como as plumas palpitantes que adornam os carros fúnebres. Quando a natureza não podia mais suportar a insônia, era com relutância que eu consentia em dormir, pois me abalava o pensar que, ao despertar, poderia achar-me como habitante de um túmulo. E quando, finalmente, mergulhava no sono, era apenas para precipitar-me imediatamente num mundo de fantasmas acima do qual, com asas enormes, lúridas, tenebrosas, pairava, dominadora, a fixa idéia sepulcral.

Das inúmeras imagens de tristeza que assim me oprimiam em sonhos escolho, para ilustrar, apenas uma visão solitária. Creio que estava imerso num transe cataléptico de duração e intensidade maiores que as habituais. De repente, senti uma mão gelada pousar-se na minha fronte e uma voz, impaciente e inarticulada, sussurrou-me ao ouvido a palavra: "Levanta-te!"

Sentei-me. A escuridão era total. Não podia distinguir o vulto de quem me havia despertado. Não podia recordar-me do momento em que caíra em transe, nem do lugar em que então jazia; enquanto permanecia parado, ocupado em procurar coordenar o pensamento, a fria mão agarrou-me, feroz, pelo punho, sacudindo-o com aspereza, ao mesmo tempo que a voz inarticulada dizia novamente:

— Levanta-te! Não te ordenei que te levantasses?

— Quem és tu? — perguntei.

— Não tenho nome nas regiões onde habito — respondeu a voz, fúnebre. — Eu era mortal, mas sou agora demônio. Eu era implacável, mas agora sou compassivo. Deves sentir que estou tremendo. Meus dentes matraqueiam enquanto falo, embora não seja por causa da frialdade da noite, da noite sem fim. Essa hediondez, porém, é insuportável. Como podes tu dormir tranqüilo? Não posso repousar por causa do clamor dessas grandes agonias. Esse espetáculo é superior às minhas forças. Põe-te de pé! Sai comigo para a noite e deixa que eu te escancare os túmulos. Não é esta uma visão de horror? Contempla!

Olhei, e o vulto invisível que ainda me agarrava pelo punho fez com que se abrissem todos os túmulos da humanidade, e de cada um saiu o fraco palor fosfórico da podridão; e então eu pude ver, dentro dos mais absconsos recessos, pude ver os corpos amortalhados nos seus tristes e solenes sonos com o verme. Mas, ai!, os que dormiam verdadeiramente eram muitos milhões menos do que aqueles que não dormiam absolutamente; e debatiam-se, sem força; havia uma agitação geral e confrangedora; e das profundezas das covas incontáveis se elevava o ruído roçagante e melancólico das mortalhas dos sepultos. E entre aqueles que pareciam tranqüilamente repousar vi que grande número havia mudado, em maior ou menor proporção, a rígida e incômoda posição em que tinham sido primitivamente enterrados. E a voz de novo me disse, enquanto eu contemplava:

— Não é isto, oh!, não é isto uma visão lastimável?

Mas antes que eu pudesse encontrar palavras para replicar, o vulto largou-me o punho, as luzes fosfóricas se extinguiram e as tumbas se fecharam com súbita violência, enquanto delas se erguia um tumulto de clamores desesperados; e ele disse de novo: "Não é isto, meu Deus!, não é isto uma visão lastimável?"

Fantasias como estas que se apresentavam à noite estendiam sua terrífica influência muito além de minhas horas de vigília. Meus nervos se relaxaram inteiramente e me tornei presa de perpétuo horror. Hesitava em cavalgar, em passear ou em praticar qualquer exercício que me afastasse de casa. Na realidade, não ousava mais afastar-me da imediata presença daqueles que sabiam de minha propensão à catalepsia, temendo que, ao cair num de meus costumeiros ataques, viesse a ser enterrado antes de que minha verdadeira condição fosse certificada.

Duvidava do cuidado, da fidelidade de meus mais queridos amigos. Receava que, em algum transe de maior duração que a habitual, fossem eles induzidos a considerá-lo como definitivo. Eu mesmo cheguei a ponto de temer que, por causar muito incômodo, ficassem eles satisfeitos em considerar qualquer ataque muito demorado como suficiente escusa para se verem livres de mim de uma vez por todas. Era em vão que eles procuravam tranqüilizar-me com as mais solenes promessas. Exigi os mais sagrados juramentos de que em nenhuma circunstância eles me enterrariam sem que a decomposição estivesse materialmente adiantada, que se tornasse impossível qualquer ulterior preservação. E mesmo assim meus terrores mortais não queriam dar ouvidos à razão, não queriam aceitar consolo.

Iniciei uma série de cuidadosas precauções. Entre outras coisas, mandei remodelar o jazigo de família, de modo a facilitar o ser prontamente aberto de dentro. A mais leve pressão sobre uma comprida manivela, que avançava bem dentro do túmulo, causaria a abertura dos portais de ferro. Havia também dispositivos para a livre admissão do ar e da luz e adequados recipientes para comida e água, dentro do imediato alcance do caixão preparado para receber-me. O caixão estava quente e maciamente acolchoado e provido de uma tampa construída de acordo com o sistema da porta do jazigo, com o acréscimo de molas tão engenhosas que o mais fraco movimento do corpo seria suficiente para abri-lo. Além de tudo isto, havia, suspenso do teto do túmulo, um grande sino, cuja corda, como determinei, deveria ser enfiada por um buraco do caixão e amarrada a uma das mãos do cadáver. Mas, ah!, de que vale a vigilância contra o Destino do homem? Nem mesmo aquelas tão engenhosas seguranças bastaram para salvar das extremas agonias de ser enterrado vivo um desgraçado condenado de antemão a essas mesmas agonias!

Chegou uma época – como muitas vezes havia chegado antes – em que me achei emergindo de total inconsciência para o início de um fraco e indefinido senso da existência. Vagarosamente, numa gradação tardígrada, aproximou-se a nevoenta madrugada do dia psicológico. Um torpor incômodo. Um sofrimento apático de obscura dor. Nenhuma atenção, nenhuma esperança, nenhum esforço. Em seguida, após longo intervalo um zumbido nos ouvidos; depois disso, após um lapso de tempo ainda mais longo, um comichão ou sensação de formigueiro nas extremidades; depois, um período aparentemente eterno de aprazível quietude, durante o qual os sentimentos despertos lutam dentro do pensamento; depois, um breve e novo mergulho no nada; depois, uma súbita revivescência.

Afinal, o rápido tremer de uma pálpebra, e, imediatamente após, um choque elétrico de terror, mortal e indefinido, que arroja o sangue em torrentes das têmporas para o coração. E agora, o primeiro positivo esforço para pensar. E agora, a primeira tentativa de recordar. E agora, um êxito parcial e evanescente. E agora, a memória já recuperou de tal modo seu domínio que, até certa medida, estou consciente de meu estado. Sinto que não estou despertando de um sono comum. Lembro-me de que estive sujeito à catalepsia. E agora, afinal, como que inundado por um oceano, meu espírito trêmulo é dominado pelo Perigo horrendo, por aquela espectral e tirânica idéia fixa.

Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço necessário para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu coração que me sussurrava que ela era fatal. O desespero – como o de nenhuma outra desgraça que jamais salteou o ser humano – só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer as pesadas pálpebras de meus olhos. Ergui-as. Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a crise de minha doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora, completamente, em pleno uso de minhas faculdades visuais. E, contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão intensa e extrema da Noite que dura para sempre.

Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob o peso de uma esmagadora montanha, arfavam e palpitavam com o coração a cada difícil e penosa respiração.

O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem alto, mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre mim, a uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que repousava dentro de um caixão.

E então, entre todas as minhas infinitas aflições, senti aproximar-se suavemente o anjo da Esperança, pois pensei nas precauções que havia tomado. Retorci-me e fiz esforços espasmódicos para abrir a tampa: não se movia. Tateei os punhos à procura da corda do sino: não foi encontrada. E então o anjo confortador voou para sempre e um desespero ainda mais agudo reinou triunfante, porque clara se tornava a ausência das almofadas que eu tinha tão cuidadosamente preparado, e depois, também, chegou-me subitamente às narinas o forte e característico odor da terra úmida. A conclusão era irresistível. Eu não estava dentro do jazigo. Fora vítima dum de meus ataques enquanto me achava fora de casa e então alguns estranhos, quando ou como não me podia recordar, me enterraram como a um cachorro, trancado dentro de um caixão comum e lançado no fundo, bem no fundo e para sempre, de alguma cova ordinária e sem nome.

Quando essa terrível convicção se fixou à força nos recessos mais íntimos de minha alma, esforcei-me mais uma vez por gritar bem alto. E essa segunda tentativa deu resultado. Um longo, selvagem e contínuo grito, ou bramido de agonia, ressoou através dos domínios da Noite subterrânea.

— Ei! Ei! Olha aqui! — respondeu uma voz grosseira.

— Que diabo é isso agora? — disse um segundo.

— Acabe com isso! — gritou um terceiro.

— Que pretende você berrando desse jeito, como um danado? disse um quarto.

E nisto fui agarrado e sacudido sem cerimônia durante muitos minutos por uma turma de sujeitos mal-encarados Não me despertaram de meu sono, porque eu estava bem desperto quando gritei, mas me fizeram recobrar a plena posse de minha memória.

Esta aventura ocorreu perto de Richmond, na Virgínia. Acompanhado por um amigo eu tinha avançado, seguindo uma expedição de caça, algumas milhas ao longo das margens do rio Jaime. A noite se aproximou e fomos surpreendidos por uma tempestade. O camarote duma pequena chalupa, ancorada no rio e carregada de terra pastosa para jardim, oferecia-se como o único abrigo disponível.

Arranjamo-nos o melhor que pudemos para passar a noite a bordo. Adormeci em um dos dois únicos beliches da embarcação. Os beliches duma chalupa de sessenta ou setenta toneladas quase não precisam ser descritos. Aquele que eu ocupava não tinha colchão de espécie alguma. Sua largura extrema era de dezoito polegadas. A distância até o tombadilho, por cima da cabeça, era precisamente a mesma. Fora com excessiva dificuldade que me apertara dentro dele. Apesar de tudo, adormeci profundamente, e toda aquela minha visão, porque não era sonho, nem pesadelo, surgiu naturalmente das circunstâncias de minha posição, do meu habitual pensamento impressionado e da dificuldade, a que já aludi, de recuperar os sentidos e especialmente a memória durante muito tempo depois de despertar de um sono. Os homens que me sacudiram eram da tripulação da chalupa e alguns trabalhadores contratados para descarregá-la. Da própria carga é que provinha aquele cheiro de terra. A ligadura em torno de meus queixos era um lenço de seda em que havia enrolado minha cabeça, na falta de meu costumeiro barrete de dormir.

As torturas experimentadas, porém, eram, sem dúvida, completamente idênticas, no momento, às de uma verdadeira sepultura. Eram pavorosas, eram inconcebivelmente hediondas. Mas do Mal se origina o Bem, porque aqueles paroxismos operaram inevitável revulsão no meu espírito. Minha alma adquiriu tonalidade, adquiriu têmpera. Viajei para o estrangeiro. Fiz vigorosos exercícios. Aspirei o ar livre do Céu. Pensei em outras coisas que não na Morte. Descartei-me de meus livros de medicina. Queimei Buchan. Não li mais os Pensamentos Noturnos, nem aranzéis a respeito de cemitérios, nem histórias de fantasmas como esta. Em resumo, tornei-me um novo homem e vivi vida de homem. Desde aquela memorável noite afugentei para sempre minhas apreensões sepulcrais e com elas esvaneceu-se a doença cataléptica, da qual, talvez, tivessem sido menos a conseqüência que a causa.

Há momentos em que, mesmo aos olhos serenos da Razão, o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno, mas a imaginação do homem não é Carathis para explorar impunemente todas as suas cavernas. Ah! A horrenda legião dos terrores sepulcrais não pode ser olhada de modo tão completamente fantástico, mas, como os Demônios em cuja companhia Afrasiab fez sua viagem até ao Oxus, eles devem dormir ou nos devorarão, devem ser mergulhados no sono ou nós pereceremos.

por Edgar Allan Poe

Memórias de uma Forca

Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas Memórias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida.

Árvore, ninguém sabia tão bem o mistério da natureza; forca, ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda — a não ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos são estes que copio — resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia! É tempo de sabermos, enfim, qual é a opinião que a vasta natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível. Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente, e que são as Memórias de um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

Diz assim o fragmento que eu copio — e que é simplesmente o prólogo das Memórias:

“Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte — que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boémios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

“Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços: ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós, para ir ser tábua de esquife! — Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

“Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetação. Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida, retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a não perceber; e ia, de rastos, por entre a erva, acolher-se à vasta mãe Água! Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo chorava em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram que o triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água! Pobre rouxinol! Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto!

“Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos os caminhos do Céu!

''Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!

“Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação, veio arrancar-me à árvore. Não sabia eu o que me queriam. Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silêncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia-me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das árvores. Eram vozes amigas que me chamavam!

“Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam-me com olhos ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu só conhecia as cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que uma grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas do Sol!

“Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois, cantando. Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia-me que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética fermentação da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e, tomando entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na augusta transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

“Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são amadas, vestidas, lavadas; encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, são os pedestais da paixão humana, têm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos das crianças, ais namorados, confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmurações da água, o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos — toda essa graça escorre sobre elas, que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz da alma.

“Eu tinha ouvido falar também das árvores de bom destino, que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas, através do infinito, entre surpresas radiosas — como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a viagem do Céu!

“Que iria eu ser?... — Chegámos. Tive então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!

“Fiquei inerte, dissolvida na aflição. Ergueram-me. Deixaram-me só, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mãos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouçar-se os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!

“Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!

“O meu orvalho seria de sangue. Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores errantes, as agonias soluçantes, os gemidos de sufocação! As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a árvore do silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo pescoço, para os corvos o esfarraparem!

“E isto ia ser! Fiquei hirta e impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.

“Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de névoa.

“Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar-se o povo. Depois, através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres. Entre dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente, como nas aparências inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibração eléctrica, depois a melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!

“Voltou-me a consciência.

“Estava só. O povo dispersava-se e descia para os povoados. Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a última água duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei-me!

“Eu sentia o frio e a lenta ascensão da podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém!

“O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver, a corda rangia.

“Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só. O vento levar-me-ia, atirando-me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com justiça, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela água e pelo sol, trabalho suado da natureza, forma resplandecente da intenção de Deus, e levá-los para as impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religiões, já não serviam senão para executar as penalidades humanas? Serviam só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? Não podia ser.

“Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetação, achariam grotesco que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço da forca para abençoar os carrascos!

“E depois de sustentarem os ramos de verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende a terra —fossem sustentar as cordas da forca, que são as fitas infames, por onde o homem se prende à podridão! Não! se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos — faziam estalar de riso a sepultura!

“Assim falava eu na solidão. A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento. Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima de mim. Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roçar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

“Um pousou no cadáver e pôs-se a roer-lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadáveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! — soluçava eu ainda — eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava, não quero aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser a aliada do coveiro! Eu não posso e não sei ser a Justiça. A vegetação tem uma augusta ignorância: a ignorância do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva. Ó meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade, toda a graça, toda a saúde: — não queiras que, em compensação, eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!

“Mas Deus dormia, entre os seus paraísos de luz. Vivi três anos nestas angústias.

“Enforquei um homem — um pensador, um político, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.

“Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Platão chama mistério, e Jesus chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atracção das almas, e corrigiu Deus com a forca!

“Enforquei também um ladrão. Este homem era também operário. Tinha mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol-posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo, puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

“Enforquei vinte. Os corvos conheciam-me. A natureza via a minha dor íntima; não me desprezou; o Sol alumiava-me com glorificação, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava-me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetação saudava-me com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava-me o orvalho, frescura que prometia o perdão natural.

“Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetação, que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os corvos não voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando-me só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda de mim, como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar-me. Eu sentia chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei-me cair tristemente no chão, entre a relva e a humidade, e pus-me silenciosamente a morrer.

“Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu comecei a sentir-me dissolver na matéria enorme, com uma doçura inefável.

“O corpo esfria-me: eu tenho a consciência da minha transformação lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como uma confusão de ideias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio de sangue! As eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não é verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem o inventário do corpo humano? ó matéria, absorve-me! Adeus! para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem chora assim? Eu sinto-me desfeita na vida formidável da terra! ó mundo escuro, de lama e de ouro, que és um astro no infinito — adeus! adeus! — deixo-te herdeiro da minha corda podre!”

Gazeta de Portugal, 23 de Dezembro de 1867

por Eça de Queiroz
Prosas Bárbaras, 1903


Fonte: Alguns textos...

O Tesouro

I

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro.

Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os irmãos de Medranhos encontravam, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne, e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera; a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacaríam o ouro nos alforjes, e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até a fivela do cinturão.

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...

II

Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

- Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu compra um gibão novo!

- Vês tu? - gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

- E para que? - prosseguia Rui. - Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até as outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos como compete, a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...

- Pois que morra, e mora hoje! - bradou Rostabal.

- Queres?

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:

- Logo adiante, ao fim do trilho, hé um sítio bom, nos silvados. E hás de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é a justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números.

- Malvado!

- Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhe seguira o vôo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e na vinho que o outro trazia nos alforjes.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

Olé! olé!
Sale la cruz de la iglesia
Toda vestida de negro...

Rui murmurou: - "Na ilharga! Mal que passe!" O chuto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - Rostabal, caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

- A chave! - gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarelada, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III

Agora eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforjes, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido, mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os de Medranhos - a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforjes - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas, a ave loura, que recendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas, porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforjes. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... Mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

- Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas; e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo horror:

- É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforjes, correra cantando a uma viela, por de trás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos dentre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.

por Eça de Queiroz

A Mulher Vampiro

O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo antes. O solar da família era situado numa das mais pitorescas regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embelezá-lo custosamente.

O conde resolveu reproduzir ali tudo o que durante as suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência e bom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo a embelezar, ou para melhor dizer, a reconstruir o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério.

Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou-se completamente a esta ocupação.

E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela idéia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras, a fim de desposar a melhor, a mais bela e a mais nobre de todas.

Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai.

Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou-se logo de que o pai se lhe referia sempre com uma mistura da mais profunda indignação e certo receio. Sem explicar o perigo que havia na convivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam em pedir-lhe explicações, o conde respondia que havia coisas em que era melhor não falar.

O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera envolvida e em conseqüência do qual se havia separado do marido e fora obrigada a retirar-se para o campo. Todavia o príncipe perdoara-lhe.

Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação da pessoa detestada pelo pai apesar de desconhecer as razões dessa aversão. Os deveres da hospitalidade, que se respeitam principalmente no campo, impunham-lhe, porém, a necessidade de receber a importuna visita.

A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma produzira no conde repugnância tão manifesta.

Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendiado, mas logo baixou os olhos, e pediu-lhe desculpa da sua visita nos termos mais aviltantes de rasteira humildade. Lastimou que o pai do conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas maldosamente pelos seus inimigos, a tivesse odiado de maneira tão acirrada. Apesar de ter caído em profunda miséria, chegando quase a padecer de fome, o conde nunca a socorrera. Ia agora refugiar-se numa cidade da província, tendo acabado de receber inesperadamente uma pequena quantia. Rematou dizendo que não pudera resistir ao desejo de ver o filho do homem, a cujo ódio irreconciliável sempre correspondera com profunda estima.

Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade, conseguiram comover o conde, para o que também muito contribuiu a presença da graciosa e encantadora menina que acompanhava a baronesa. Calou-se esta finalmente, mas o conde pareceu não reparar em tal, e ficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu-lhe então desculpa duma falta em que o embaraço a fizera incorrer e apresentou-lhe a sua filha Aurélia.

Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o conde suplicou-lhe que lhe permitisse reparar os agravos do pai, devidos certamente a uma inadvertência, oferecendo-lhe hospitalidade no castelo. Ao certificar-lhe as suas boas disposições, pegou-lhe na mão e estremeceu de terror. Sentiu-lhe os dedos gelados, sem vida, ao mesmo tempo que o vulto descarnado da baronesa, que fixava nele uns olhos embaçados, tomava o aspecto dum cadáver vestido de brocado.

- Valha-me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! - exclamou Aurélia.

E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua desgraçada mãe tinha às vezes ataques de catalepsia, mas que estas sincopes passavam de pronto sem auxílio de remédios.

O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava nervosamente, e, no arroubamento dum amor nascente, pegou na de Aurélia cobrindo-a de beijos.

Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela primeira vez uma forte paixão, tornando-se impossível dissimular o que sentia, tanto mais que era animado pela graça encantadora com que Aurélia lhe acolhia as amabilidades.

A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se recordar do que lhe tinha acontecido. Afirmou ao conde que se sentia honrada com aquele convite, e que este procedimento lhe apagava para sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.

Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente. Chegava a crer que um favor especial do destino lhe trouxera a única pessoa que podia, como esposa, dar-lhe a suprema ventura.

A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria, reservada, deixava a propósito transparecer uma alma cheia de paz e de bons sentimentos. O conde acostumara-se àquele rosto singularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e atribuía tudo à má saúde da sua hóspede e ao gosto que ela tinha por sombrios passatempos. Com efeito os criados contaram-lhe que a baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do cemitério.

Sentiu-se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo, pelas prevenções do pai, e o tio velho despendeu em vão a inesgotável eloqüência, exortando-o a renunciar ao sentimento que o dominava e a relações que um dia poderiam desgraçá-lo. Convencido de que Aurélia o amava, pediu-a em casamento. É fácil de imaginar o quanto a baronesa ficou encantada com esta proposta, que a arrancava à miséria e lhe assegurava uma existência feliz.

A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma expressão de invencível pesar, e as delícias do amor deram-lhe aos olhos suave brilho e às faces frescura e colorido.

Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos desejos do conde. Na manhã do dia da boda, encontraram a baronesa estendida e sem movimento no parque, a pouca distância do cemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de levantar-se e pusera-se à janela, pensando com embriaguez na felicidade que ia gozar, quando trouxeram a baronesa para o castelo. Pensou que se tratava dum ataque cataléptico, como era costume, mas todos os meios empregados para a chamar à vida foram inúteis. Estava morta!

Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia consternada e atônita por causa deste imprevisto golpe do destino, mas não verteu uma única lágrima.

O conde, temendo melindrá-la, observou-lhe, com precaução e delicadeza infinitas, que era necessário pôr de parte as conveniências e apressar o mais possível o casamento não obstante a morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi-lo, Aurélia deitou-lhe os braços ao pescoço e, derramando muitas lágrimas, exclamou:

- Sim, pela minha salvação, consinto!

O conde atribuiu esta exaltação à desconsoladora idéia de que, órfã e sem asilo, Aurélia não tinha para onde ir e que o decoro lhe não permitia ficar no castelo. Teve o cuidado de colocar junto de Aurélia, até ao dia fixado para a cerimônia, uma aia, matrona respeitável.

No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente mais da angústia cruciante que a perseguia incessantemente, do que do desgosto causado pela morte da mãe.

Um dia, quando conversava amorosamente com o conde, ergueu-se de súbito, pálida, num mortal terror, e banhada em lágrimas refugiou-se nos seus braços como se quisesse fugir a um perseguidor invisível. Exclamou:

- Não, nunca, nunca!

Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum contratempo, é que a perturbação e a ansiedade de Aurélia pareceram dissiparem-se.

Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração de sua esposa existisse alguma causa desconhecida, que a atormentava. Contudo, foi bastante delicado para não a interrogar enquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntou-lhe o que produzira aquela extraordinária disposição de espírito. Aurélia significou-lhe que ia com vivo prazer patentear o coração ao esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a perturbação de Aurélia provinha do procedimento criminoso da mãe.

- Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo-nos obrigados a aborrecer, e odiar a nossa própria mãe?

Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não se haviam enganado, e que a baronesa captara este último por meio de requintada hipocrisia.

O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe parecia mercê da Providência, mas Aurélia declarou-lhe que fora precisamente a morte da mãe que a enchera de pressentimentos sombrios, e que o receio de que não poderia ainda triunfar, lhe dizia que a mãe havia de ressuscitar algum dia, para vir precipitá-la num abismo, depois de arrancá-la dos braços do seu amado esposo.

E falou das recordações que tinha conservado da sua infância.

Eram estas.

Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem. Abriam-se e fechavam-se as portas com estrondo, ouviam-se gritos soltos por vozes desconhecidas. Quando o sossego se restabeleceu, a ama de Aurélia pegou-lhe ao colo e levou-a para uma vasta sala onde estava muita gente. Sobre uma grande mesa, no meio da casa, viu estendido um homem, que brincava sempre muito com ela e lhe dava bolos, e a quem a pequena chamava papá. Estendeu-lhe os braços para o beijar, mas aqueles lábios, que tinha conhecido quentes e cheios de vida, estavam gelados. Desatou a chorar sem saber porquê. Dali a ama levou-a para uma casa desconhecida, onde ficou por muitos dias. Passado tempo a mãe foi buscá-la de carruagem e levou-a para a capital.

Completava Aurélia dezesseis anos, quando se apresentou em casa da baronesa um homem a quem ela recebeu com alegria e familiaridade, como antigo conhecimento.

Multiplicaram-se as visitas e dentro em pouco operou-se considerável mudança na vida da baronesa. Em vez de morar numa água-furtada, de vestir pobremente, de passar mal, foi habitar uma casa esplêndida no melhor bairro da cidade, passou a ter fatos magníficos, e mesa lauta, sendo seu inseparável comensal o desconhecido, e, finalmente, não faltava a nenhum divertimento público.

Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil de conhecer, provinha do desconhecido. Não vestia melhor do que dantes e estava sempre fechada no quarto, ao passo que a mãe ia às festas com o tal homem.

Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia muito mais novo. Bonito de semblante e esbelto de figura, nem por isso deixava de repugnar a Aurélia, porque às vezes era ordinário e desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que tinha a homem amável e afidalgado.

Por este tempo, começou a deitar à menina certos olhares, que lhe infundiam inexplicável horror.

Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara-se a dizer-lhe o seu nome e que o barão era um parente afastado, possuidor de colossal fortuna. Outra vez, gabou-lhe os dotes físicos e perguntou à filha que tal o achava, e, como esta não ocultasse a repugnância que tinha por ele, chamou-a de tola e dardejou-lhe um olhar de meter medo, mas passou depois a tratá-la com agrado, deu-lhe bons vestidos, e levou-a aos divertimentos. O intitulado barão manifestava tanta solicitude e um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe tornou verdadeiramente insuportável, tanto mais que ela um dia presenciou, cheia de mágoa, uma cena escandalosa, que lhe tirou todas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este, meio ébrio, apertou-a nos braços, mostrando-lhe claramente as suas intenções abomináveis. O desespero deu forças à donzela, que repeliu o miserável com vigor, fazendo-o cair para trás, e correu a fechar-se no quarto.

A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que se deixasse de esquisitices fora de propósito, pois era o titular quem fazia todas as despesas da casa. Como não estava para recair na miséria de outros tempos, aconselhou-a a ceder à vontade do barão, o qual, em caso de recusa, já ameaçara deixá-las. Longe de se impressionar com as lágrimas e queixumes de Aurélia, a velha recebeu-os às gargalhadas e com zombaria provocante. Gabou-lhe impudicamente uma ligação, que lhe ofereceria todas as voluptuosidades mundanas, servindo-se de termos tão abomináveis e desbragados que Aurélia ficou aterrorizada.

Julgando-se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou meio de apanhar a chave da porta da rua, e à meia noite, depois de fazer uma trouxa com as coisas mais indispensáveis, encaminhou-se para a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que a mãe estaria dormindo e já ia sair, quando alguém subiu precipitadamente a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelos grisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a descoberto os braços e o peito, a baronesa entrou na antecâmara e foi cair aos pés de Aurélia. O suposto barão perseguia-a, armado com uma bengala nodosa, e bradando:

- Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do inferno, espera que já vou dar-te a refeição de núpcias!

E, arrastando-a pelos cabelos para o meio da casa, começou a maltratá-la cruelmente, espancando-a com a bengala.

A baronesa desatou a gritar desapoderadamente, e Aurélia, quase desfalecida, abriu a vidraça e clamou por socorro. Por acaso ia passando uma patrulha policial e acudiu logo.

- Prendam-no! - bradou aos soldados a baronesa, louca de aflição e de raiva. Prendam-no! Olhem para o ombro, que está a descoberto! É Urian!

Assim que ela pronunciou este nome, o sargento comandante da patrulha soltou um grito e disse:

- Olá! Apanhei-te finalmente!

Os guardas agarraram o desconhecido e levaram-no, a despeito da resistência que empregava para desenvencilhar-se.

Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa percebeu o que a filha estivera prestes a fazer. Agarrou-a brutalmente por um braço, empurrou-a para o quarto e fechou a porta à chave, sem dizer palavra.

No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto Aurélia, ali encerrada não viu nem ouviu pessoa alguma, e padeceu as torturas da fome e da sede. Nos dias seguintes não recebeu muito melhor tratamento. A mãe deitava-lhe por vezes uns olhos cintilantes de cólera e parecia meditar qualquer projeto sinistro. Afinal recebeu, certa noite, uma carta que pareceu alegrá-la, e disse a Aurélia:

- Foste tu, criatura disparatada, a causa de tudo isto, mas agora, felizmente, tudo vai bem e Deus queira que evites o terrível castigo, que o demônio te reservava.

Dali por diante tornou-se mais complacente, e Aurélia, que desde que Urian se fora já não pensava em fugir, passou a gozar de mais ampla liberdade.

Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu um grande barulho na rua.

A criada de quarto entrou precipitadamente e disse-lhe que a polícia levava preso o filho do carrasco de **. O facínora, acusado do crime de roubo à mão armada, fôra, tempos antes marcado a ferro em brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à escolta. Desta vez não lograria escapar, certamente.

Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela. Adivinhara. Era o suposto barão que ia passando algemado e amarrado a uma carroça. Transferiam-no para outra prisão, a fim de cumprir a pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo furioso olhar que o malvado ergueu para ela, ao mesmo tempo que lhe fazia um gesto de ameaça, Aurélia sentiu-se esmorecer e foi cair numa poltrona.

A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao abandono, pensando tristemente nas desventuras que ainda lhe estariam iminentes.

A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena noturna, e, sabendo que o ladrão tivera relações íntimas com a ama, disse um dia a Aurélia que lastimava sinceramente a senhora baronesa, por ter sido enganada tão indignamente por aquele infame. Aurélia bem sabia o que havia de pensar a este respeito. Parecia-lhe impossível que os guardas, que tinham prendido Urian em casa da baronesa, não ficassem cientes das verdadeiras relações que existiam entre ambos, pois que ela lhes dissera o nome do criminoso e indicara o sinal infamante que ele tinha no ombro.

Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava-se muito àquele respeito. Andava de boca em boca o fato de que a justiça fizera uma severa sindicância e que ameaçara a baronesa com a prisão, porque o filho do carrasco tinha revelado casos verdadeiramente extraordinários.

A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da mãe, visto que, depois daquele terrível acontecimento ela continuava ainda a residir na capital.

A baronesa viu-se enfim reduzida à necessidade de sair de uma cidade onde estava exposta a infames suspeitas, aliás muito bem fundadas, e de fugir para lugar distante. Durante esta viagem é que tinha ido ter ao castelo do conde.

Aurélia considerava-se sumamente venturosa e ao abrigo de receios, mas qual não foi o seu espanto quando, num dia em que manifestava à mãe a alegria que o céu lhe concedera, esta, com os olhos cintilantes, exclamou desabridamente:

- Foste a causa da minha desgraça, criatura abjeta e maldita; mas ainda que a morte me leve repentinamente, a vingança virá surpreender-te no meio da tua imaginária felicidade. É nestes acessos nervosos, cuja origem remonta ao teu nascimento, que os artifícios de Satanás...

A mulher do conde calou-se de repente, e, abraçando-se ao marido, pediu-lhe que a dispensasse de repetir as palavras que a mãe pronunciara numa crise de furor insensato. Sentia o coração esfacelar-se, ao recordar as medonhas ameaças daquela possessa do demônio, ameaças que excediam todos os horrores imagináveis. O conde consolou a esposa o melhor que pôde, sem contudo esquivar-se a ter medo.

Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que os crimes da baronesa, apesar de ela já ter falecido, haviam lançado uma sombra funesta numa existência que ele futurará cheia de felicidade.

Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A palidez do rosto e o olhar extinto pareciam indicar doença, mas ao mesmo tempo os seus modos extraordinários e inquietos faziam suspeitar novo mistério. Afastava-se de todos, até do marido; fechava-me no quarto ou buscava os sítios mais solitários do parque; quando aparecia, trazia os olhos vermelhos de chorar, o rosto desfigurado, denunciando o pesar que a devorava.

Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham a mulher naquele estado. Aurélia caiu em profundo abatimento, de que saiu tão somente depois de consultar uma celebridade médica.

O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade nervosa da condessa e os seus incômodos de saúde podiam fazer conceber a esperança de que ia ter fruto aquele casamento venturoso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia.

Esta, a princípio, não deu atenção à conversa do doutor com o conde, mas aplicou depois o ouvido, quando ouviu falar nos singulares caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a que não podiam resistir sem prejuízo da sua saúde e até da saúde do filho. Fez então ao médico perguntas sobre perguntas, e este não se cansou de lhe citar muitos fatos, alguns altamente burlescos.

- Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos desregrados, que levaram diversas mulheres a ações verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulher dum ferreiro sentia irresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços baldados para se dominar, mas um dia em que o viu entrar em casa embriagado, atirou-se a ele com uma faca, e feriu-o tão cruelmente, que o desgraçado expirou poucas horas depois.

Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa desmaiou, e as convulsões que se seguiram ao desmaio acalmaram-se com grande dificuldade. O médico reconheceu que andara mal contando semelhante aventura na presença duma senhora tão impressionável.

Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no estado da condessa, dando-lhe algum sossego, mas pouco depois caía ela novamente num acesso de profunda melancolia.

Brilhavam-lhe os olhos com estranho fulgor e seu rosto cobria-se de palidez mortal, sempre crescente. O conde tornou a inquietar-se com a saúde da esposa. Havia no seu estado uma coisa inexplicável: não tomava o mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas as iguarias, especialmente pela carne. Quando se servia qualquer prato desta substância, era obrigada a levantar-se da mesa, dando evidentes sinais de nojo.

Foi inútil toda a ciência do médico, porque Aurélia não quis nunca tocar em remédios, apesar das súplicas do marido.

Passaram-se semanas e meses sem que a condessa tomasse alimento algum. O mistério continuava impenetrável e o médico era de opinião que havia ali qualquer coisa que frustrava o saber humano. Afinal despediu-se, apresentando um vago pretexto, mas o conde percebeu claramente que o estado da esposa parecera muito perigoso e enigmático ao hábil clínico e que ele não quisera tratar por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava absolutamente impossível de curar.

Imaginem-se as desagradáveis disposições em que estaria o infeliz. A desgraça, porém, ainda havia de ir mais longe. Um criado velho aproveitou um momento, em que o encontrou sozinho, para o avisar de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de madrugada. O conde estremeceu e lembrou-se de que, havia tempos, ao soar a meia noite, se apossava dele uma extraordinária sonolência. Atribuiu-a a qualquer narcótico, que a condessa lhe ministrasse sem ele dar por isso, para poder sair clandestinamente do quarto de cama, que tinham em comum infringindo o estabelecido na sua classe. Aguilhoado pelas mais terríveis suspeitas, Hipólito recordou-se da sogra e do espírito mau de que ela estivera possuída, e que talvez houvesse passado para a filha. Lembrou-se também do filho do carrasco e suspeitou de qualquer ligação adultera.

A noite seguinte ia desvendar-lhe o mistério abominável, causa única do estado singular de Aurélia.

Tinha ela por hábito ir deitar-se depois de fazer o chá, que só o conde bebia. Teve este o cuidado de não o tomar naquela noite, meteu-se na cama, leu como de costume, e não sentiu a sonolência habitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu que dormia profundamente. A condessa levantou-se então, sem fazer o mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido, examinou-o por momentos, e saiu devagarinho do quarto.

Todo a tremer, o conde ergueu-se, embuçou-se numa capa e seguiu a mulher cautelosamente. Esta já ia longe, mas como fazia luar, avistava-se distintamente o seu vestido branco. Atravessou o parque e dirigiu-se para o cemitério, desaparecendo por trás do muro Hipólito segui-a, quase de corrida; achou aberta a porta e entrou.

Viu à claridade do luar um espetáculo medonho.

A curta distância, aparições hediondas acocoravam-se no chão, formando círculo. Eram velhas seminuas, de cabelos desgrenhados, dilacerando com os dentes, como feras, o cadáver dum homem.

E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e profundo horror o desgraçado fugiu àquela cena infernal! Correu ao acaso pelas alas do parque, e só caiu em si quando, de madrugada, se encontrou em frente da porta do castelo. Subiu rápida e maquinalmente a escadaria, atravessou as salas e entrou no quarto de cama. A condessa parecia dormir serenamente.

Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que estava ainda úmida do orvalho a capa. Ainda assim tentou persuadir-se de que tinha sido joguete duma alucinação.

Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a cavalo. A beleza da manhã, os aromas dos bosques, o gorjeio das aves fizeram-lhe esquecer os fantasmas noturnos.

Voltou mais tranqüilo ao castelo e sentou-se à mesa com a mulher. Quando, porém, serviam um prato de carne cosida e a condessa quis retirar-se mostrando repugnância, o conde reconheceu a realidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com violência:

- Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que provém a tua aversão pelo comer dos homens. É nas sepulturas que te vais banquetear!

Mal ouviu estas palavras, Aurélia atirou-se a ele rugindo, e mordeu-o no peito, com a fúria duma hiena. O marido repeliu violentamente a possessa, que morreu no meio de atrozes convulsões.

Veio a enlouquecer o desgraçado.

por E. T. A. Hoffmann

Fonte: Literatura Internacional: http://planeta.clix.pt/letras/