sábado, 22 de novembro de 2008

Agatha Christie

Nascida Agatha Mary Clarissa Miller em Torquay, condado de Devonshire, Inglaterra, a 15 de setembro de 1890. Filha de uma casal tipicamente vitoriano, mesmo sendo o pai, Frederick Miller, americano, foi criada segundo a melhor tradição européia. Seus pais tudo fizeram para que ela seguisse uma carreira de cantora lírica ou pianista. Mas Agatha Christie preferia passar o tempo escrevendo poemas e contos.

Ela foi educada em casa, onde estudou piano e canto, até que se casou em 1914, com o coronel Archibald Christie, cujo sobrenome adotaria até o final da vida. Quando começa a Primeira Guerra Mundial, ela se alista como voluntária no Exército da Cruz Vermelha. Atuando como enfermeira na Inglaterra, aceita um desafio da irmã: escrever uma história policial em que o leitor não pudesse descobrir a identidade do assassino antes do final da narrativa. Daí surgiu O Misterioso Caso de Styles, que tinha como protagonista um belga chamado Hercule Poirot, inspirado nos vários políticos belgas que se refugiaram na Inglaterra naquela época. Hercule Poirot seria ainda protagonista de uma série de outros livros, se consagrando como um dos maiores detetives já criados.

Mas só em 1926 ela conseguiu chamar a atenção do público com O Assassinato de Roger Ackroyd. Algum tempo depois do lançamento deste, Agatha Christie desapareceu misteriosamente. Como em suas histórias, deixou rastros efêmeros, pistas difusas, confundindo toda a polícia inglesa, e provocando sérias suspeitas de estar à procura de promoção de publicidade para uma carreira mal começada.

Em 1930, já divorciada e romancista de sucesso, casa-se novamente. Desta vez com Max Mallowan, arqueólogo, com quem viaja pelo Oriente. É dessas viagens que ela tira inspiração para vários livros de sucesso como: Morte no Nilo, Intriga em Bagdá e outros.

Criou também outros personagens, como Miss Jane Marple, uma simpática velhinha profunda conhecedora da natureza humana, moradora da pequena Saint Mary Mead. A estréia de Miss Marple ocorreu no livro Assassinato na Casa do Pastor.

Seus mais de 80 livros publicados venderam mais de 1 trilhão de cópias em todo o mundo, fazendo de Agatha Christie a maior escritora de romances policiais de todos os tempos. Agatha Christie morreu no dia 12 de Janeiro de 1976 e seu marido 2 anos depois.

Curiosidade: O livro Cai o pano foi escrito em 1940 e publicado em 1975.

Obra

O Misterioso Caso de Styles (1920) , O Inimigo Secreto (1922), Assassinato no Campo de Golfe (1923); O Homem do Terno Marrom (1924), Poirot Investiga (1924), O Segredo de Chimneys (1925), O Assassinato de Roger Ackroyd (1926), Os Quatro Grandes (19270, O Mistério do Trem Azul (1928), O Mistério dos Sete Relógios (1929), Sócios no Crime (1929), Assassinato na Casa do Pastor (1930), O Misterioso Sr. Quin (1930), O Mistério de Sittaford (1931), A Casa do Penhasco (1932), Os Treze Problemas (1932), Treze à Mesa (1933), Por Quê Não Pediram à Evans? (1934), Assassinato no Expresso do Oriente (1934), O Detetive Parker Pyne (1934), Tragédia em Três Atos (1935), Morte nas Nuvens (1935), Os Crimes ABC (1936), Morte na Mesopotâmia (1936), Cartas na Mesa (1936), Poirot Perde uma Cliente (1937), Morte no Nilo (1937), Assassinato no Beco (1937), Encontro com a Morte (1938), O Natal de Poirot (1938), É Fácil Matar (1939), O Caso dos Dez Negrinhos (1939), Um Acidente e Outras Histórias (1939), Cipreste Triste (1940), Uma Dose Mortal (1940), Morte na Praia (1941), M ou N? (1941), Um Corpo na Biblioteca (1942), A Mão Misteriosa (1942), Os Cinco Porquinhos (1943), Hora Zero (1944), E no Final a Morte (1945), Um Brinde de Cianureto (1945), A Mansão Hollow (1946), Os Trabalhos de Hércules (1947), Seguindo a Correnteza (1948), A Casa Torta (1949), Os Três Ratos Cegos e Outras Histórias (1949), Convite Para um Homicídio (1950), Intriga em Bagdá (1951), A Morte da Sra. McGinty (1952), Um Passe de Mágica (1952), Cem Gramas de Centeio (1953), Depois do Funeral (1953), Um Destino Ignorado (1954), Morte na Rua Hickory (1955), A Extravagância do Morto (1956), A Testemunha Ocular do Crime (1957), Punição Para a Inocência (1958), Um Gato Entre os Pombos (1959), A Aventura do Pudim de Natal (1960), O Cavalo Amarelo (1961), A Maldição do Espelho (1962), Os Relógios (1963), Mistério no Caribe (1964), O Caso do Hotel Bertram (1965), A Terceira Moça (1966), Noite sem Fim (1967), Um Pressentimento Funesto (1968), Noite das Bruxas (1969), Passageiro para Frankfurt (1970), Nêmesis (1971), Os Elefantes não Esquecem (1972), Portal do Destino (1973), Os Primeiros Casos de Poirot (1974), Cai o Pano (1975), Um Crime Adormecido (1976)

Outros livros de Agatha Christie da coleção Record/Altaya:

A Morte do Almirante (1931), A Ratoeira e Os Dez Indiozinhos (1954/1944), Encontro com a morte e O Refúgio (1945/1952), Testemunha da Acusação e A Hora H (1954/1944), Desenterrando o Passado (1946), Veredicto e Retorno ao Assassinato (1958/1960), A Mina de Ouro (1971), O Mundo Misterioso de Agatha Christie (1975), Autobiografia (1977), O Cadáver Atrás do Biombo e Um Furo Jornalístico (1983).

O Defunto

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.

Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia

De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.

E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!

Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do "cadáver" que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?

E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.

- Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão! - Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos; - oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja

E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado' numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, - e sente uma a uma ensangüentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!

Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria..

Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.

Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, - assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.

Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.

Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. - E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos, - nem viv'alma! Apenas sombras. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: - Marcha! Marcha! - As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva - o defunto caminhava.

De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma idéia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. - Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo - e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contacto, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. - Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se "ele" ali estava oculto contemplando a felicidade do outro "ele"! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse, também seguir-lhes o vôo!... Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra - e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... - Mas ele era cadáver e na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria ! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo - coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...

Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.

* * *

Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.

Pensou, então, no seu sonho - e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.

Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...

* * *

Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol - único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.

Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro - longo como um deserto; a noite inteira - vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber

Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!

O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara ! A fome que ela fizera crescer ! - E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as - e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.

Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.

Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita - e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...


por Thomaz Lopes

Os Olhos que Comiam Carne

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.

Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.

E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.


Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...


por Humberto de Campos
Humberto de Campos (H. de C. Veras), jornalista, político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934. Eleito em 30 de outubro de 1919 para a Cadeira n. 20, sucedendo a Emílio de Menezes, foi recebido em 8 de maio de 1920, pelo acadêmico Luís Murat.

Foram seus pais Joaquim Gomes de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de Campos Veras. Perdendo o pai aos seis anos, Humberto de Campos deixou a cidade natal e foi levado para São Luís. Dali, aos 17 anos, passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na Folha do Norte e, pouco depois, na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, a coletânea de versos intitulada Poeira, primeira série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou para O Imparcial, na fase em que ali trabalhava um grupo de escritores ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador de Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário. Ali também José Eduardo de Macedo Soares renovava a agitação da segunda campanha civilista. Humberto de Campos ingressou no movimento. Logo depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual. Fez essa transição com o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava contos e crônicas, hoje reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Em 1923, substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do Correio da Manhã.

Em 1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. A revolução de 1930 dissolveu o Congresso e ele perdeu seu mandato. O presidente Getúlio Vargas, que era grande admirador do talento de Humberto de Campos, procurou minorar as dificuldades do autor de Poeira, dando-lhe os lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em 1931, viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que se tornou o mais célebre de sua obra, Memórias, crônica dos começos de sua vida. O seu Diário secreto, de publicação póstuma, provocou grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a contemporâneos.

Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. Poeira é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à análise nem ao tempo.

Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos do capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2 vols. (1954) -Gentileza Academia Brasileira de Letras http://www.academia.org.br/

O Diabo e o Relojoeiro


Vivia na paróquia de S. Bennet Fynk, perto da Bolsa Real, uma viúva pobre e honesta, a qual, tendo perdido o marido, aceitou inquilinos em sua casa, isto é, alugou algumas peças desta a fim de reduzir a despesa do aluguel.

Entre outras, cedeu a água-furtada a um fabricante de maquinarias de relógio, ou que fazia peças do gênero, e, segundo o hábito da época, trabalhava para as relojoarias.

Certo dia, um homem e uma mulher subiram para falar com o relojoeiro sobre alguma coisa relacionada a sua profissão. Chegando perto da escada, e vendo a porta inteiramente aberta, conseguiram enxergar o pobre infeliz (o fazedor de relógios ou de seus mecanismos) enforcado numa viga que saía da parede, um pouco abaixo do teto. Surpreendida com o espetáculo, a mulher parou e gritou para o homem que a seguia pela escada para que corresse e cortasse a corda do infeliz.

Naquele momento, de um canto do quarto, que da escada não era possível ver, corre outro homem, trazendo na mão um banco dobradiço, como quem vinha com muita pressa, e coloca-o no chão debaixo do pobre enforcado, e, apressado sempre, sobe ao banco, tira do bolso uma faca e, segurando a corda com uma das mãos, acena com a cabeça para o casal que se achava na porta, como para dizer-lhes que parassem, que não subissem, e mostra-lhes a faca na outra mão, como se estivesse a ponto de cortar a corda do enforcado.

Nisso a mulher estacou, mas o homem que estava no banco dobradiço continuava a remexer na corda com a mão e com a faca, como procurando o nó, mas sem dar o corte. Então a mulher gritou outra vez, e o homem que vinha atrás dela falou:

— Vamos subir – disse ele – supondo que havia algum obstáculo – e ajudar o homem que está no banco.

Mas o homem que estava no banco fez-lhe de novo sinais para ficarem quietos e não subirem, como a dizer: — Faço isso num instante. Deu dois cortes com a faca como se cortasse a corda e parou outra vez. Entretanto, o pobre continuava enforcado e, consequentemente, morrendo. Nisso a mulher pergunta:

— Que há? Por que não corta a corda duma vez?

E o homem que estava atrás dela, esgotada a paciência, empurrou-a para o lado e disse-lhe:

— Deixe que resolvo isso!

E sobe correndo e invade o quarto.

Mas, quando ali chegou, vejam, o mísero lá estava enforcado, porem não se via nenhum homem com faca, nem banco dobradiço, nem outra coisa qualquer. Tudo isso não passara de espectro e ilusão, destinados, sem dúvida, a deixar perecer e expirar o pobre infeliz que se tinha enforcado.

O homem ficou tão surpreso e aterrado que, não obstante a coragem de que dera mostra, caiu no chão como morto. E a mulher viu-se na obrigação de cortar a corda ao enforcado com uma tesoura, só o conseguindo com grande esforço.

Como não tenho motivo para duvidar da veracidade desta história, que soube por pessoas em cuja honestidade posso confiar, penso que não nos será nada difícil saber quem podia ser o homem do banco: era o Diabo, que lá se pusera a fim de acabar o assassínio do homem, a quem, na sua condição de Diabo, havia tentado e levado a ser o carrasco de si mesmo. O fato, aliás, corresponde tão bem a natureza do Diabo e ao seu ofício, o de assassino, que nunca o pus em dúvida. Nem me parece injustiça com o Diabo acusá-lo desse crime.

O Elixir da Longa Vida

Num suntuoso palácio de Ferrara, por uma noite de inverno, Dom Juan Belvidero obsequiava um príncipe da Casa de Este. Naquela época, uma festa era um espetáculo maravilhoso, que somente extraordinárias riquezas ou o poderio de um senhor se podiam dar o luxo de oferecer.

Sentadas ao redor de uma mesa iluminada por velas perfumadas, sete alegres mulheres trocavam leves conceitos, por entre admiráveis obras-primas, cujos mármores brancos se destacavam nas paredes de estuque vermelho e contrastavam com ricos tapetes da Turquia.

Vestidas de cetim, faiscantes de ouro e cobertas de pedrarias que brilhavam menos que seus olhos, todas elas relatavam paixões violentas, mas variadas, como o eram suas belezas. Não diferiam nem pelas palavras nem pelas idéias; a expressão, o olhar, alguns gestos ou a inflexão de voz serviam às suas palavras de comentários libertinos, lascivos, melancólicos ou prazenteiros.

Uma parecia dizer: "Minha beleza sabe reaquecer o coração gelado dos velhos".

Outra: "Gosto de ficar deitada sobre coxins, para pensar com embriaguez naqueles que me adoram".

Uma terceira, noviça nessas festas, queria enrubescer: "No fundo do coração sinto remorso!", dizia. "Sou católica e tenho medo do inferno. Mas eu vos amo tanto, ah!, tanto e tanto, que posso vos sacrificar a eternidade!"

A quarta, bebendo um copo de vinho de Quio, exclamava: "Viva a alegria! Eu adquiro uma existência nova em cada aurora! Esquecida do passado, atordoada ainda pelos assaltos da véspera, todas as noites absorvo uma vida de felicidade, uma vida cheia de amor!"

A mulher sentada junto de Belvidero olhava para ele com olhos congestionados. Estava silenciosa: "Eu não confiaria nos bravi para matar o meu amante, se ele me abandonasse!" Em seguida, ela rira; mas sua mão convulsiva amassava uma caixinha de ouro, miraculosamente esculpida.

— Quando serás grão-duque? — perguntou a sexta ao príncipe, com uma expressão de alegria mortífera nos dentes, e de delírio báquico nos olhos.

— E tu, quando morrerá teu pai? — disse a sétima, rindo e jogando seu ramalhete a Dom Juan, com um gesto sedutor e pueril. Era uma inocente

donzela acostumada a brincar com todas as coisas sagradas.

— Ah! nem me faleis disso! — exclamou o jovem e belo Dom Juan Belvidero. — Existe apenas um pai eterno no mundo, e a desgraça quer que seja o meu!

As sete, cortesãs de Ferrara, os amigos de Dom Juan e o próprio príncipe soltaram um grito de horror. Duzentos anos depois, e sob Luis XV, as pessoas de bom gosto teriam rido dessa tirada. Mas será que no começo de uma orgia as almas teriam ainda bastante lucidez? Malgrado o fogo das velas, o grito das paixões, o aspecto dos vasos de ouro e de prata, o vapor dos vinhos, malgrado a contemplação das mais sedutoras mulheres, será que havia ainda, no fundo dos corações, um pouco dessa vergonha pelas coisas humanas e divinas, que luta até que a orgia a tenha mergulhado nas derradeiras vagas de um vinho cintilante? Não obstante, já as flores tinham sido esmagadas, os olhos se embruteciam, a embriaguez chegava, segundo a expressão de Rabelais, até as sandálias. Naquele momento de silêncio, uma porta se abriu; e, como no festim de Baltasar, Deus se fez reconhecer: apareceu sob a forma de um velho criado de cabelos brancos, andar trêmulo, sobrancelhas contraídas; entrou com expressão triste, fulminou com o olhar as coroas, as taças de prata dourada, as pirâmides de frutas, as luzes da festa, o arroxeado dos rostos surpresos e as cores das almofadas calcadas pelos braços brancos das mulheres; por fim, ele jogou um véu naquela loucura, dizendo estas palavras sombrias, em voz cava:

— Senhor, vosso pai está à morte.

Dom Juan se levantou, fazendo aos hóspedes um gesto que podia se traduzir por: "Desculpem-me, isso não acontece todos os dias".

A morte de um pai não surpreende freqüentemente os jovens, no meio dos esplendores da vida, no seio das loucas idéias de uma orgia? A morte é tão repentina nos seus caprichos, como um cortesão o é nos seus desdéns; mais fiel, contudo, ela jamais enganou alguém.

Depois que Dom Juan fechou a porta e caminhou por uma comprida galeria fria, tanto quanto escura, esforçou-se por assumir uma atitude teatral; porque, ao pensar em seu papel de filho, ele havia deixado sua alegria com o guardanapo. A noite estava escura. O silencioso servidor que conduzia o jovem para uma câmara mortuária iluminava muito mal seu patrão, de maneira que a MORTE, ajudada pelo frio, o silêncio, a obscuridade, por uma reação da bebedeira talvez, pôde infundir algumas reflexões na alma daquele dissipador; ele interrogou sua vida e tornou-se pensativo, como um homem processado que se encaminha para o julgamento.

Bartolomeu Belvidero, pai de Dom Juan, era um velho nonagenário, que passara a maior parte da vida nas transações comerciais. Tendo atravessado muitas vezes as talismãnicas regiões do Oriente, adquirira imensas riquezas e conhecimentos mais preciosos, dizia ele, que o ouro e os diamantes, com os quais, no momento, não se importava absolutamente. "Prefiro um dente a um rubi e o poder ao saber", exclamava às vezes, sorrindo. Esse bom pai gostava de ouvir Dom Juan relatar-lhe alguma travessura da juventude e dizia com ar motejador, prodigalizando-lhe ouro: "Meu caro filho não faças senão as tolices que te divertirem". Era o único velho que sentia prazer em ver um moço; o amor paterno disfarçava sua caduquice, pela contemplação de uma vida tão brilhante. Na idade de sessenta anos, Belvidero se apaixonara por um anjo de paz e de beleza. Dom Juan fora o único fruto desse amor tardio e passageiro. Havia quinze anos que o pobre homem deplorava a perda de sua cara Joana. Os numerosos servidores e o filho atribuíam a essa dor de velho os hábitos singulares que ele contraíra. Refugiado na ala mais incômoda do palácio, Bartolomeu só raramente saía, e o próprio Dom Juan não podia penetrar nos aposentos do pai sem permissão. Se esse voluntário anacoreta ia e vinha no palácio ou pelas ruas de Ferrara, parecia procurar uma coisa que lhe faltava; andava sempre sonhador, indeciso, preocupado como um homem que luta com uma idéia ou com uma lembrança. Enquanto o rapaz dava festas suntuosas e o palácio ressoava com as explosões de sua alegria, enquanto os cavalos escarvavam a terra nas estrebarias, enquanto os pajens brigavam, jogando dados nos degraus, Bartolomeu comia sete onças de pão por dia, e bebia água. Se precisava de um pouco de galinha, era para dar os ossos a um cãozinho de caça, negro, seu companheiro fiel. Jamais se queixava do ruído. Durante sua moléstia, se o som da trompa de caça e os latidos dos cães o surpreendiam no sono, contentava-se em dizer: "Ah! é Dom Juan que volta!" Nunca se encontrara sobre a terra um pai tão benévolo e tão indulgente; por isso o jovem Belvidero, acostumado a tratá-lo sem cerimônia, tinha todos os defeitos do filho mimado; vivia com Bartolomeu como vive uma caprichosa cortesã com um velho amante, fazendo desculpar uma impertinência com um sorriso, vendendo seu bom humor e deixando-se amar. Reconstruindo, pelo pensamento, o quadro de seus verdes anos, Dom Juan se apercebeu que lhe seria difícil encontrar uma falha na bondade do pai. Sentindo nascerem os remorsos no fundo do coração, no momento em que atravessava a galeria, quase perdoou a Belvidero ter vivido tanto tempo. Voltava aos sentimentos de piedade filial, como um ladrão se torna honesto pelo gozo possível de um milhão bem roubado. Bem depressa o rapaz franqueou as altas e frias salas que compunham os aposentos de seu pai. Depois de ter experimentado os efeitos de uma atmosfera úmida, respirado o ar espesso, o odor rançoso que se exalava de velhas tapeçarias e de armários cobertos de poeira, ele se encontrou no quarto antigo do velho, diante de um leito nauseabundo, junto de um fogo quase extinto. Uma lamparina colocada numa mesa deforma gótica lançava, a intervalos regulares, fachos de luz mais ou menos fortes sobre o leito, e mostrava assim a figura do velho sob aspectos sempre diferentes. O frio sibilava através das janelas mal fechadas; e a neve, chicoteando os vitrais, produzia um ruído surdo. Aquela cena formava um contraste com a que Dom Juan acabava de deixar e não pôde furtar-se a estremecer. Depois sentiu frio, quando, aproximando-se do leito, um súbito clarão, impelido por uma rajada de vento, iluminou a cabeça do pai: suas feições estavam descompostas, a pele, colada fortemente aos ossos, tinha cores esverdeadas que a brancura do travesseiro, sobre o qual o velho repousava, tornava ainda mais horríveis; contraída pelo sofrimento, a boca entreaberta e despojada de dentes deixava passar alguns suspiros, cuja energia lúgubre era estimulada pelos bramidos da tempestade. Apesar dos traços de destruição, revelava-senaquela cabeça um caráter de incrível pujança. Ali, um espírito superior combatia a morte. Os olhos, cavados pela doença, conservavam uma fixidez singular. Parecia que Bartolomeu procurava matar com seu olhar de agonizante um inimigo sentado ao pé do leito. Esse olhar, fixo e frio, era tanto mais pavoroso quanto a cabeça permanecia numa imobilidade semelhante à dos crânios colocados nas mesas dos médicos. O corpo inteiramente moldado pelos lençóis do leito indicava que os membros do velho conservavam ainda a mesma tensão. Tudo estava morto, menos os olhos. Os sons que lhe saíam da boca tinham, em suma, qualquer coisa de mecânico. Dom Juan sentiu certa vergonha de chegar junto ao leito do pai agonizante conservando ainda, no peito, um ramalhete de cortesã, levando para ali os perfumes de uma festa e os vapores do vinho.

— Tu te divertias! — exclamou o velho, percebendo a presença do filho.

No mesmo instante, a voz pura e ligeira de uma cantora que deliciava os convivas, reforçada pelos acordes da viola com a qual ela se acompanhava, dominou os uivos da tempestade e ressoou até aquela câmara fúnebre. Dom Juan nada quis ouvir daquela selvagem afirmação dada ao pai.

— Não te quero mal por isso, meu filho.

Essas palavras cheias de doçura fizeram mal a Dom Juan, que não perdoou ao pai a pungente bondade.

— Que remorsos para mim, meu pai! — disse-lhe hipocritamente.

— Pobre Juanino — replicou o agonizante com voz surda — tenho sido tão condescendente contigo que não saberias desejar a minha morte?

— Oh! — exclamou Dom Juan — se fosse possível chamar-vos à vida novamente, eu vos daria uma parte da minha! — "A gente pode sempre dizer essas coisas", pensava o dissipador, "é como se eu oferecesse o mundo à minha amada!" Mal acabara o seu pensamento, o velho cão de caça uivou. Aquela voz inteligente fez estremecer Dom Juan, que acreditou ter sido compreendido pelo cão.

— Eu bem sabia, meu filho, que podia contar contigo exclamou o moribundo. — Eu viverei. Vai, ficarás contente. Viverei, mas sem desperdiçar um único dos dias que te pertencem.

"Ele delira", disse Dom Juan a si mesmo. Depois acrescentou em voz alta: — Sim, meu querido pai, vivereis certamente, tanto quanto eu, pois vossa imagem estará sempre dentro do meu coração.

— Não se trata dessa vida — disse o velho senhor, reunindo suas forças para se soerguer no leito, pois ficou emocionado por uma dessas suspeitas que não nascem senão no leito de morte. — Ouve, meu filho — continuou ele com voz fraca, por causa daquele último esforço — , não tenho mais desejo de morrer do que tu de abandonar as amantes, o vinho, os cavalos, os falcões, os cães e o ouro.

"Acredito", pensou ainda o filho, ajoelhando-se à cabeceira do leito e beijando uma das mãos cadavéricas de Bartolomeu. — Mas — continuou em voz alta — , meu pai, meu querido pai, a gente precisa se submeter à vontade de Deus.

— Deus sou eu — replicou o velho, entre dentes.

— Não blasfemeis — exclamou o moço, vendo o ar ameaçador que assumiram as feições do pai. — Tomai cuidado, acabastes de receber a extrema unção, e eu não me consolaria de vos ver morrer em estado de pecado.

— Queres ouvir-me? — gritou o moribundo, cuja boca se crispou.

Dom Juan se calou. Reinou no aposento um horrível silêncio. Através dos silvos pesados da neve, os acordes da viola e a voz deliciosa chegavam ainda fracos como um dia que nasce. O moribundo sorriu.

— Agradeço-te por teres convidado cantoras, por teres trazido música! Uma festa, mulheres jovens e belas, alvas, de cabelos negros! todos os prazeres da vida; deixa-os ficar, vou renascer.

"O delírio está no auge", pensou Dom Juan.

— Descobri um meio de ressuscitar. Ouve! Procura na gaveta da mesa; poderás abri-la apertando um botão de metal oculto pelo puxador.

— Já o encontrei, meu pai.

— Isso, aí mesmo, pega um frasquinho de cristal de rocha.

— Ei-lo.

— Gastei vinte anos a... — Nesse momento o velho sentiu a aproximação da morte e reuniu toda a sua energia, para dizer: — Logo que eu tenha soltado o último suspiro, tu me esfregarás todo com essa água, e eu renascerei.

— Há muito pouca água — replicou o rapaz.

Se Bartolomeu não podia mais falar, tinha ainda a faculdade de ouvir e de ver, e a essas palavras, sua cabeça se voltou para Dom Juan com um movimento de apavorante brusquidão, o pescoço ficou torto como o de uma estátua de mármore que o pensamento do escultor condenou a olhar de lado, os olhos arregalados adquiriram uma horrorosa imobilidade. Estava morto, morto, a perder sua única, sua última ilusão. Ao procurar asilo no coração do filho, encontrou um túmulo mais profundo do que o que os homens costumam fazer para seus mortos. Seus cabelos se arrepiaram de horror, e seu olhar convulso falava ainda. Era um pai que se levantava irado do sepulcro, para pedir vingança a Deus!

— Muito bem! o coitado se acabou — exclamou Dom Juan.

Apressado em ver o misterioso cristal à luz da lamparina, como um bebedor consulta a garrafa no fim da refeição, ele não vira branquear os olhos do pai. O cão, boquiaberto, contemplava alternativamente seu dono morto e o elixir, da mesma forma que Dom Juan olhava ora para o pai, ora para o frasco. A lamparina produzia chamas indecisas. Era profundo o silêncio, a viola emudecera. Belvidero estremeceu, crendo ver seu pai mexer-se. Intimidado com a expressão tensa de dois olhos acusadores, ele os fechou, como teria cerrado uma persiana batida pelo vento, durante uma noite de outono. Manteve-se de pé, imóvel, perdido num mundo de pensamentos. De repente, um ruído rascante, parecido com o atrito de molas enferrujadas, rompeu o silêncio. Dom Juan, surpreendido, quase deixou cair o vidro. Um suor mais frio que o aço de um punhal brotava de seus poros. Um cuco de madeira pintada surgiu acima do relógio e cantou três horas. Era uma dessas engenhosas máquinas com o auxílio das quais os sábios daquele tempo se faziam despertos à hora marcada para os seus trabalhos. A aurora tingia já as vidraças. Dom Juan tinha passado dez horas a refletir. O velho relógio era mais fiel em seu serviço, que ele no cumprimento de seus deveres para com Bartolomeu. Aquele mecanismo compunha-se de madeira, polias, cordas, engrenagens, enquanto ele tinha o mecanismo particular ao homem, chamado coração. Para não mais se arriscar a perder o misterioso licor, o cético Dom Juan o recolocou na gaveta da mesinha gótica. Nessa hora grave, ouviu nas galerias um surdo tumulto: Eram vozes convulsas, risos abafados, passos ligeiros, frufru de sedas, enfim, o ruído de um grupo jovem que trata de se recolher. A porta se abriu, e o príncipe, os amigos de Dom Juan, as sete cortesãs, as cantoras apareceram, numa desordem bizarra, como dançarinas surpreendidas pela claridade da manhã, quando o sol luta com a chama opalescente das velas. Vinham para oferecer ao jovem herdeiro as consolações de praxe.

— Oh! oh! então o pobre Dom Juan levaria a sério essa morte? — disse o príncipe ao ouvido de Brambilla.

— Mas o pai dele era um homem muito bom — respondeu ela.

Contudo, as meditações noturnas de Dom Juan tinham imprimido em seus traços uma expressão tão chocante, que impôs silêncio àquele grupo. Os homens permaneceram imóveis. As mulheres, cujos lábios ainda estavam ressecados pelo vinho, cujas faces estavam ainda marcadas pelos beijos, ajoelharam-se e se puseram a rezar. Dom Juan não pôde deixar de estremecer, ao ver os esplendores, as jóias, os risos, os cantos, a juventude, a beleza, o poder, toda a vida personificada, prosternando-se assim diante da morte. Mas, naquela adorável Itália, a devassidão e a religião se acasalavam tão bem, que a religião era um deboche e o deboche, uma religião! O príncipe apertou afetuosamente a mão de Dom Juan; depois, todos os rostos, tendo esboçado simultaneamente um mesmo trejeito, misto de tristeza e indiferença, aquela fantasmagoria desapareceu, deixando a sala vazia. Era bem a imagem da vida! Ao descer as escadas, o príncipe disse a Rivabarella:

— Hein! quem teria acreditado, Dom Juan, um fanfarrão de impiedade? Ele gosta do pai.

— Reparaste no cachorro preto? — perguntou Brambilla.

— Ei-lo imensamente rico — replicou, suspirando, Bianca Cavatolino.

— Que me importa?! — exclamou a altiva Varonese, a que tinha quebrado a caixinha.

— Como, que te importa? — exclamou o duque. — Com os seus escudos, ele é tão príncipe quanto eu.

A princípio, agitado por mil pensamentos, Dom Juan flutuou entre várias resoluções. Depois de ter tomado conhecimento da fortuna acumulada por seu pai, ele voltou, ao cair da noite, à câmara mortuária, com a alma encoscorada por um terrível egoísmo. Encontrou no aposento todo o pessoal de sua casa, ocupado cm reunir os ornamentos da essa sobre a qual o falecido senhor ia ser exposto no dia seguinte, em meio a uma soberba câmara-ardente, curioso espetáculo que toda Ferrara devia vir admirar. Dom Juan fez um sinal, e a criadagem estacou, interdita, trêmula.

— Deixai-me sozinho aqui — disse ele com voz alterada — não deveis voltar senão no momento em que eu sair.

Quando os passos do velho servidor que se ia por último apenas ressoaram debilmente nos ladrilhos, Dom Juan fechou precipitadamente a porta, e, seguro de estar só, exclamou: — Tentemos!

O corpo de Bartolomeu estava deitado sobre uma grande mesa. Para escamotear a todos os olhos o horrível espetáculo de um cadáver, que uma extrema decrepitude e a magreza tornavam parecido com um esqueleto, os embalsamadores tinham estendido sobre o corpo uma mortalha que o envolvia inteiramente, menos a cabeça. Aquela espécie de múmia jazia no meio do quarto; e a mortalha, naturalmente mole, desenhava, vagamente, as formas, porém mais agudas, tensas e magras. O rosto já estava marcado de grandes manchas roxas, que indicavam a necessidade de concluir o embalsamamento. Malgrado o ceticismo com o qual vinha armado, Dom Juan tremeu ao destampar o mágico frasco de cristal. Quando chegou perto da cabeça, foi mesmo constrangido a esperar um momento, tanto tremia. Mas esse jovem desde cedo fora muito subitamente corrompido pelos costumes de uma corte dissoluta; uma reflexão digna do duque de Urbino veio assim lhe dar a coragem que aguilhoava um vivo sentimento de curiosidade; parecia mesmo que o demônio tinha soprado estas palavras que ressoaram no coração: "Embebe um olho!" Pegou um pano e, depois de o ter parcimoniosamente molhado no precioso líquido, passou-o ligeiramente sobre a pálpebra direita do cadáver. O olho se abriu.

— Ah! Ah! — disse Dom Juan, segurando o frasco na mão, como agarramos em sonho o ramo pelo qual estamos suspensos acima de um precipício.

Via um olho cheio de vida, um olho de criança, numa cabeça de morto, a luz tremia ali no meio de um fluido jovem; e, protegida por belos cílios negros, ela cintilava semelhante a esses clarões únicos que o viajor percebe num campo deserto, nas tardes de inverno. Aquele olho flamejante parecia querer se atirar sobre Dom Juan, e pensava, acusava condenava, ameaçava, julgava, falava, gritava, mordia. Todas as paixões humanas ali se agitavam. Eram as súplicas mais ternas: uma cólera de rei, depois o amor de uma menina pedindo graça aos seus carrascos; por fim, o olhar profundo que lança um homem sobre os homens, escalando o último degrau do patíbulo. Transbordava tanta vida naquele fragmento de vida, que dom

Juan, apavorado, recuou, andou pelo quarto, sem ousar olhar para o olho, que ele revia no assoalho, nas tapeçarias. O quarto estava salpicado de pontas de fogo, de vida, de inteligência. Por toda parte brilhavam olhos que gritavam atrás dele!

— Ele seria bem capaz de viver cem anos — exclamou involuntariamente no momento em que, levado diante do pai por uma influência diabólica, contemplava aquela centelha luminosa.

Súbito, a pálpebra inteligente se fechou e se reabriu bruscamente, como a de uma mulher que consente. Se uma voz tivesse gritado: "Sim!", Dom Juan não teria ficado mais horrorizado.

"Que fazer?", pensou ele. Teve coragem de tentar fechar a pálpebra branca. Foram inúteis os esforços.

"Furá-lo? Seria um parricídio?", perguntou-se a si mesmo.

"Sim", disse o olho por meio de uma piscada, de uma espantosa ironia.

— Ah! Ah! — exclamou Dom Juan — há feitiçaria por aí. — E aproximou-se do olho para esmagá-lo. Uma grossa lágrima rolou nas faces cavadas do cadáver e caiu na mão de Belvidero.

— Está escaldante — exclamou ele, sentando-se.

Aquela luta o havia fatigado, como se ele tivesse combatido, a exemplo de Jacó, contra um anjo.

Levantou-se, por fim, dizendo: — Tomara que não saia sangue! — Depois, juntando o que lhe faltava de coragem para ser infame, esmagou o olho, calcando-o com um pano, mas sem olhar para ele. Um gemido inesperado, mas terrível, se fez ouvir. O pobre cãozinho expirava, uivando.

"Saberia o segredo?", perguntou-se Dom Juan, olhando o fiel animal.

Dom Juan Belvidero passou por um filho piedoso. Mandou construir um monumento de mármore branco sobre o túmulo do pai, e confiou a execução das esculturas aos mais célebres artistas do tempo. Não ficou perfeitamente tranqüilo, senão no dia em que a estátua paternal, ajoelhada diante da Religião, impôs seu enorme peso sobre aquele fosso, no fundo do qual enterrou o único remorso que tinha aflorado em seu coração nos momentos de lassidão física.

Ao inventariar as imensas riquezas acumuladas pelo velho orientalista, Dom Juan tornou-se avarento: não tinha ele que prover de dinheiro duas vidas humanas? Seu olhar profundamente perscrutador penetrou no princípio da vida social e devassou tanto mais o mundo, quanto o via através de uma tumba. Analisou os homens e as coisas, para acabar de uma vez com o Passado, representado pela História; com o Presente, configurado pela Lei; com o Futuro, revelado pelas Religiões. Pegou a alma e a matéria, lançou-as num cadinho, nada encontrou aí, e desde então ele se tornou Dom Juan!

Mestre das ilusões da vida, jovem e belo, lançou-se à vida, desprezando o mundo, mas apoderando-se do mundo. Sua felicidade não podia ser essa felicidade burguesa que se sustenta com um cozido periódico, com um bom aquecedor no inverno, com um lume para a noite e chinelas novas em cada trimestre. Não, ele se apoderou da existência, como um macaco que agarra uma noz, e, sem se divertir por muito tempo, despojou sabiamente os vulgares envoltórios do fruto, para degustar a polpa saborosa. A poesia e os sublimes transportes da paixão humana não lhe subiram além do calcanhar. Não cometeu nenhum dos erros dos homens poderosos que, imaginando às vezes que as pequenas almas crêem nas grandes, aconselham a trocar os altos pensamentos do porvir pela moedinha dos nossos ideais transitórios. Bem poderia, como eles, andar com os pés na terra e a cabeça nos céus, mas preferia sentar-se, e secar sob seus beijos mais de um lábio de mulher carinhosa, fresca e perfumada; porque, semelhante à morte, por onde passava devorava tudo sem pudor, querendo um amor possessivo, um amor oriental, de prazeres longos e fáceis. Não amando senão a mulher nas mulheres, fez da ironia uma outra natureza da sua alma. Quando suas amantes se serviam de um leito para subir aos céus, onde iam se perder no seio de um êxtase embriagador, Dom Juan as seguia grave, expansivo, sincero, tanto quanto sabe ser um estudante alemão. Mas ele dizia EU, quando a amante, louca desvairada, dizia NÓS! Sabia admiravelmente bem deixar-se prender por uma mulher. Era sempre bastante forte para lhe fazer crer que tremia como um jovem ginasiano que diz à sua primeira dama, num baile: "Gostais de dançar?" Mas sabia também enrubescer a propósito, tirar sua espada poderosa e humilhar os comendadores. Havia ridículo em sua simplicidade e riso em suas lágrimas, porque ele sempre soube chorar tanto quanto uma mulher que diz ao marido: "Dá-me uma carruagem, senão morro tuberculosa".

Para os negociantes o mundo é um pacote de mercadorias ou um maço de notas em circulação; para a maior parte dos moços é uma mulher; para algumas mulheres é um homem; para certos espíritos é um salão, uma salinha, um quarteirão, uma cidade; para Dom Juan, o universo era ele!

Modelo de graça e de nobreza, de um espírito sedutor, aportou sua barca a todas as praias; mas, deixando-se conduzir, não ia senão até onde queria ser levado. Quanto mais viveu, mais duvidou. Examinando os homens, adivinhou muitas vezes que a coragem era a temeridade; a prudência, a covardia; a generosidade, a astúcia; a justiça, crime; a delicadeza, frivolidade; a probidade, organização; e, por uma singular fatalidade, percebeu que as pessoas verdadeiramente honestas, delicadas, justas, generosas, prudentes e corajosas não obtinham nenhuma consideração entre os homens. "Que tola palhaçada!", disse consigo. "Não vem de um deus." E assim renunciando a um mundo melhor, jamais se descobriu ao ouvir pronunciar um nome, e considerou os santos de pedra nas igrejas obras de arte. E compreendendo o mecanismo das sociedades humanas, nunca hostilizava demais os preconceitos, pois não era tão poderoso quanto o carrasco. Mas contornava as leis sociais com essa graça e esse espírito tão bem representados na sua cena com o senhor Domingo. Foi, com efeito, o tipo do Dom Juan, de Molière, do Fausto, de Goethe, do Manfredo de Byron, e do Melmoth, de Maturin. Grandes imagens traçadas pelos maiores gênios da Europa, e aos quais os acordes de Mozart não fariam tanta falta quanto a lira de Rossini, talvez! Imagens terríveis que o princípio do Mal, existente em cada homem, eterniza, e do qual algumas cópias se reencontram de século em século: quer esse tipo entre em entendimentos com os homens encarnando-se em Mirabeau, quer se contente de agir em silêncio, como Bonaparte, ou de sobrecarregar o universo de ironia, como o divino Rabelais; ou ainda que se ria dos seres em lugar de insultar as coisas, como o Marechal de Richelieu; e, melhor, talvez, que moteje dos homens e das coisas, como o mais célebre dos nossos embaixadores. Mas o gênio profundo de Dom Juan Belvidero resumiu antecipadamente todos esses gênios. Caçoou de tudo. Sua vida era um sarcasmo que atingia homens, coisas, instituições, idéias. Quanto à eternidade, tinha conversado familiarmente uma meia hora com o papa Júlio II, e, no fim da conversação, disse-lhe, rindo: — Se é absolutamente necessário escolher, prefiro crer em Deus a crer no Diabo; o poder unido à bondade oferece sempre mais fontes de recursos do que tem o gênio do Mal.

— Sim, mas Deus quer que se faça penitência neste mundo...

— Então pensais sempre em vossas indulgências? — respondeu Belvidero.

— Pois bem, tenho, para me arrepender das faltas da minha primeira vida, uma existência completa em reserva.

— Ah! se tu compreendes assim a velhice — exclamou o papa — tu te arriscas a ser canonizado.

— Depois da vossa elevação ao papado, pode-se crer em tudo.

E eles foram ver os operários ocupados em construir a imensa basílica consagrada a São Pedro.

— São Pedro foi o homem de gênio que estabeleceu o nosso duplo poder — disse o papa a Dom Juan; — merece esse monumento. Mas às vezes penso, à noite, que um dilúvio passará a esponja sobre isso e será preciso recomeçar.

Dom Juan e o papa puseram-se a rir, tinham-se compreendido. Um tolo teria ido no dia seguinte divertir-se com Júlio II, em casa de Rafael, ou na deliciosa Vila Madame; mas Belvidero foi vê-lo oficiar pontificalmente, a fim de se convencer de suas dúvidas. Em um debate, La Rovère poderia se desmentir e comentar o Apocalipse.

Entretanto, essa lenda não foi empreendida para fornecer materiais aos que quiserem escrever memórias sobre a vida de Dom Juan; ela destina-se a provar à gente honesta que Belvidero não morreu no seu duelo com uma pedra, como querem fazer crer algumas litografias.

Quando Dom Juan Belvidero atingiu a idade de sessenta anos veio se fixar na Espanha. Aí, nos seus dias de velhice desposou uma jovem e sedutora andaluza. Mas, por cálculo, não foi nem bom pai, nem bom marido. Observara que nunca somos ternamente amados senão pelas mulheres com as quais absolutamente não nos importamos. A Sr.ª Elvira, santamente criada por uma tia idosa, no interior da Andaluzia, num castelo a algumas léguas de San Lúcar, era toda devotamento e toda graça. Dom Juan adivinhou que essa moça seria mulher que combateria muito tempo uma paixão, antes de ceder; esperou assim poder conservá-la virtuosa até a sua morte. Foi uma brincadeira séria, uma partida de xadrez que quis se reservar, para jogar em sua velhice.

Fortalecido por todas as faltas cometidas por seu pai Bartolomeu, Dom Juan resolveu imolar as menores ações de sua velhice ao triunfo do drama que deveria se cumprir em seu leito de morte. Assim, a maior parte de suas riquezas permaneceu enfurnada nas caves do seu palácio em Ferrara, aonde ia raramente. Quanto à outra metade da fortuna, foi colocada em bens vitalícios, a fim de interessar na duração de sua vida sua mulher e seus filhos, espécie de safadeza que seu pai deveria ter feito; mas essa especulação de maquiavelismo não lhe foi muito necessária. O jovem Filipe Belvidero, seu filho, tornou-se um espanhol tão conscienciosamente religioso, quanto o pai era ímpio, em virtude, talvez, do provérbio: De pai avarento, filho pródigo. O abade de San Lúcar foi escolhido por Dom Juan para dirigir a consciência da duquesa de Belvidero e de Filipe. O eclesiástico era um santo homem, de belo talhe, admiravelmente proporcionado, com belos olhos negros, a cabeça de Tíbério, fatigada pelos jejuns, branca pelas macerações, e cotidianamente tentado, como são todos os solitários. O velho senhor esperava talvez poder matar um monge, antes de acabar seu primeiro turno de vida. Mas, ou porque o abade fosse tão forte quanto o próprio Dom Juan podia ser, ou porque a Sr.ª Elvira tivesse mais prudência ou virtude que a Espanha concede às mulheres, Dom Juan foi constrangido a passar seus últimos dias como um velho pároco de aldeia, sem escândalo em casa. Por vezes, sentia prazer em encontrar o filho ou a mulher em falta nos seus deveres religiosos, e queria imperiosamente que eles executassem todas as obrigações impostas aos fiéis pela corte de Roma. Enfim, nunca era tão feliz como quando ouvia o galante abade de San Lúcar, a Sr.ª Elvira e Filipe, ocupados em discutir um caso de consciência. Contudo, malgrado os cuidados prodigiosos que o senhor Dom Juan Belvidero dava à sua pessoa, os dias da decrepitude chegaram; com essa idade de dor,vieram os gritos de impotência, gritos tanto mais dilacerantes quanto mais ricas eram as lembranças da sua fervente juventude e da sua voluptuosa maturidade. Esse homem, no qual o último grau da impertinência era levar os outros a crerem nas leis e nos princípios de que ele próprio zombava, adormecia à noite com um talvez! Aquele modelo do bom-tom, o duque vigoroso numa orgia, soberbo nas cortes, gracioso junto às mulheres, cujo coração tinha sido dobrado por ele, como um camponês dobra varas de vime, aquele homem de gênio tinha uma rinite teimosa, uma ciática importuna, uma gota brutal. Via os dentes abandoná-lo como no fim de uma noitada as damas mais brancas, as quais bem enfeitadas, se vão, uma a uma, deixando o salão deserto e despojado. Finalmente, suas mãos ousadas tremeram, as pernas esbeltas afrouxaram, e uma tarde a apoplexia lhe apertou o pescoço, com mãos recurvas e geladas. Desde esse dia fatal ele se tornou moroso e rígido. Acusava o devotamento do filho e da mulher, pretendendo às vezes que seus cuidados comoventes e delicados não lhe eram tão ternamente prodigalizados senão porque tinha colocado toda a sua fortuna em rendas vitalícias. Elvira e Filipe derramavam então lágrimas amargas e redobravam de carícias junto ao malicioso velho, cuja voz enfraquecida se tornava afetuosa para dizer:

— Meus amigos, minha querida mulher, vós me perdoais, não é? Atormento-vos um pouco. Ah! Grande Deus, por que te serves de mim para experimentar essas duas criaturas celestes? Eu, que devia ser sua alegria, sou a sua tortura.

Foi assim que os amarrou à cabeceira do seu leito, fazendo-os esquecer meses inteiros de impaciência e de crueldade por uma hora em que, para eles, recobrava os tesouros sempre novos de sua graça e de sua falsa ternura. Sistema paternal que lhe rendeu infinitamente mais que aquele de que tinha usado outrora o seu pai para com ele. Finalmente, a doença agravou-se tanto que, para pô-lo no leito, era preciso manobrá-lo como um grande barco por entre um canal perigoso. Depois, chegou o dia da morte. Aquela brilhante e cética personagem, de quem somente a lucidez sobrevivia à mais espantosa de todas as destruições, viu-se entre um médico e um confessor, suas duas antipatias. Mas foi jovial com eles. Não havia para ele uma luz cintilante atrás do véu do porvir? Sobre esse véu, de chumbo para os outros e diáfano para ele, as suaves, sedutoras delicias da juventude flanavam como sombras.

Foi numa bela noite de verão que Dom Juan sentiu a aproximação da morte. O céu de Espanha era de uma admirável pureza, as laranjeiras perfumavam o ar, as estrelas desprendiam vivas e frescas luminárias, a natureza parecia lhe dar penhores seguros da sua ressurreição, um filho piedoso e obediente o contemplava com amor e respeito. Cerca das onze horas, quis permanecer sozinho com aquele ente cândido.

— Filipe! — disse-lhe, com voz tão terna e tão afetuosa, que o rapaz estremeceu e chorou de felicidade. Jamais esse pai inflexível tinha pronunciado assim um "Filipe!" — Ouve, meu filho — continuou o moribundo. — Sou um grande pecador, Por isso, pensei, durante toda a minha vida, em minha morte. Fui em outros tempos amigo de um grande Papa, Júlio II. O ilustre pontífice temia que a excessiva irritação de meus sentidos me fizesse cometer algum pecado mortal, entre o momento em que eu expirasse e aquele em que tivesse recebido os santos óleos; fez-me presente de um frasco que contém a água santa, jorrada outrora de rochedos do deserto. Guardei o segredo dessa dilapidação do tesouro da Igreja, mas estou autorizado a revelar o seu mistério ao meu filho, in articulo mortis. Encontrarás o frasco na gaveta dessa mesa gótica, que nunca deixou a cabeceira da minha cama... O precioso cristal poderá servir-te ainda, meu bem-amado Filipe. Juras-me, pela tua eterna salvação, executar literalmente minhas ordens?

Filipe olhou para o pai. Dom Juan conhecia bastante a expressão dos sentimentos humanos para não morrer em paz, confiante naquele olhar, como seu pai havia morrido no desespero, com a expressão do seu.

— Merecias outro pai — continuou Dom Juan. — Tenho a ousadia de confessar-te, meu filho, que, no momento em que o respeitável abade de San Lúcar me administrava o viático, eu pensava na incompatibilidade de dois poderes tão extensos quanto os do Diabo e de Deus...

— Oh! Meu pai!

— Eu me dizia que, quando Satanás fez as suas pazes, deveria, sob pena de ser um grande miserável, estipular o perdão de seus adeptos. Esse pensamento me persegue. Eu iria assim para o inferno, meu filho, se tu não cumprisses minhas vontades!

— Oh! dizei-as depressa, meu pai!

— Logo que eu tiver fechado os olhos — replicou Dom Juan — dentro de alguns minutos talvez, tu tomarás meu corpo, quente ainda, e o estenderás sobre uma mesa no meio deste quarto. Depois apagarás esse lume; o clarão das estrelas te bastará. Tu me despojarás das roupas; e enquanto recitares padre-nossos e ave-marias, elevando tua alma a Deus, terás o cuidado de umedecer com esta água santa, primeiro, os meus olhos, meus lábios, toda a cabeça, depois, sucessivamente, os membros e o corpo; mas, meu caro filho a onipotência de Deus é tão grande que será preciso não te espantares de nada!

Aqui, Dom Juan, que sentiu chegar a morte, acrescentou com voz terrível:

— Segura bem o frasco.

Depois, expirou docemente nos braços do filho, cujas lágrimas abundantes correram sobre sua face irônica e blasfema.

Era cerca da meia-noite quando dom Filipe Belvidero colocou o cadáver de seu pai na mesa. Depois de lhe ter beijado a fronte ameaçadora e os cabelos grisalhos, apagou o lume. O suave clarão produzido pelo luar, cujos reflexos curiosos iluminavam o campo, permitiu ao piedoso Filipe entrever indistintamente o corpo do pai como alguma coisa de branco no meio da sombra. O jovem embebeu o pano no líquido e, mergulhado na prece, umedeceu fielmente aquela cabeça sagrada, em meio a um profundo silêncio. Ouvia bem uns estremecimentos indescritíveis, mas atribuía-os aos caprichos da brisa nos cimos das árvores. Quando tinha molhado o braço direito, sentiu o pescoço fortemente agarrado por um braço jovem e vigoroso, o braço de seu pai! Deu um grito dilacerante e deixou cair o vidro, que se quebrou. O líquido se evaporou. Os criados do castelo acorreram, armados de tochas. Aquele grito os tinha apavorado e surpreendido, como a trombeta do Juízo Final teria abalado o universo. A multidão de gente, trêmula, deu com dom Filipe desfalecido, mas retido pelo braço poderoso do pai, que lhe apertava o pescoço. Depois, coisa sobrenatural, a assistência viu a cabeça de Dom Juan tão jovem, tão bela, como a de Antínoo; uma cabeça de cabelos negros, olhos brilhantes, boca vermelha e que se agitava medonhamente, sem remover o esqueleto ao qual pertencia. Um velho servidor gritou: "Milagre!", e todos aqueles espanhóis repetiram: "Milagre!" Piedosa demais para admitir os mistérios da magia, a Sra. Elvira mandou procurar o abade de San Lúcar.

Quando o prior contemplou com seus próprios olhos o milagre, resolveu aproveitar o caso, como homem de espírito como abade, que nada mais desejava se não aumentar os seus lucros. Declarando logo que o senhor Dom Juan seria infalivelmente canonizado, indicou a cerimônia da apoteose no seu convento, que daquele dia em diante se chamaria, disse ele, San Juan de Lúcar. A essas palavras, a cabeça fez uma careta bastante chistosa.

O gosto dos espanhóis por essas espécies de solenidade é tão conhecido, que não deve ser difícil crer nas maravilhas religiosas pelas quais o abade de San Lúcar celebrou a translação do bem-aventurado Dom Juan Belvidero para sua igreja. Alguns dias depois da morte do ilustre senhor o milagre de sua imperfeita ressurreição estava tão difundido na aldeia, numa área de cinqüenta léguas ao redor de San Lúcar, que foi já uma comédia ver os curiosos pelos caminhos: chegavam de todos os lados, tangidos por um te-déum cantado à luz de tochas.

A antiga mesquita do convento de San Lúcar, maravilhoso edifício construído pelos mouros, e cujas colunas ouviam há três séculos o nome de Jesus Cristo, que substituiu o de Alá, não pôde conter a multidão que acorrera para ver a cerimônia. Comprimidos como formigas, fidalgos com casacos de veludo e armados com suas boas espadas mantinham-se de pé em torno dos pilares, sem encontrar lugar para dobrar os joelhos, que não se dobravam senão ali. Sedutoras camponesas, cujo casaquinho desenhava as formas amorosas, davam o braço a velhos de cabelos brancos. Jovens de olhos de fogo se encontravam ao lado de velhas senhoras enfeitadas. Depois eram os casais frementes de alegria, noivas curiosas levadas por seus bem-amados; recém-casados; meninos segurando-se tímidos pela mão.

Toda aquela gente achava-se rica de cores, brilhante de contrastes, carregada de flores, embelezada, fazendo um suave tumulto no silêncio da noite.

As grandes portas da igreja se abriram. Os que chegavam atrasados ficavam do lado de fora, observavam de longe, pelos três portais abertos, uma cena de que as decorações vaporosas das nossas óperas não saberiam dar uma fraca idéia. Devotos e pecadores, aflitos por ganharem as boas graças de um novo santo, acendiam em sua honra milhares de círios na vasta igreja — chamas interessadas que deram aspectos mágicos ao monumento. As negras arcadas, as colunas e seus capitéis, as capelas profundas e brilhantes de ouro e prata, as galerias, os cortes sarracenos, os mais delicados traços daquela escultura delicada, delineavam-se àquela luz superabundante, como figuras caprichosas que se formam num braseiro vermelho. Era um oceano de fogo, dominado no fundo da igreja pelo coro dourado, onde se elevava o altar-mor, cuja glória rivalizava com a do sol nascente. Com efeito, o esplendor das luminárias de ouro, dos candelabros de prata, estandartes, passamanes, santos e ex-votos, tudo empalidecia diante do caixão em que se encontrava Dom Juan. O corpo do ímpio faiscava de pedrarias, de flores, de cristais, de diamantes, de ouro, de plumas tão brancas quanto as asas de um serafim, e substituía no altar um quadro de Cristo. Em torno dele brilhavam os numerosos círios que lançavam aos ares ondas flamejantes.

O bom abade de San Lúcar, paramentado com os hábitos pontificais, tendo a mitra enriquecida de pedras preciosas, a sobrepeliz de mangas estreitas, o bastão pastoral de ouro refestelava-se, rei do coro, numa poltrona de luxo imperial, no meio de todo o clero, composto de impassíveis velhos de cabelos prateados, revestidos de alvas finas, e que o cercavam, semelhante aos santos confessores que os pintores agrupam em torno do Eterno. O grão-cantor e os dignitários do capítulo, ornamentados com as brilhantes insígnias de suas vaidades eclesiásticas, iam e vinham no seio de nuvens formadas pelo incenso, parecidos com os astros que rolam no firmamento.

Quando chegou a hora do triunfo, os sinos despertaram o eco nas campinas e aquela imensa assembléia lançou a Deus o primeiro grito de louvores pelo qual começa o te-déum. Grito sublime! Eram vozes puras e ligeiras, vozes de mulheres em êxtase, misturadas às vozes graves e fortes dos homens, milhares de vozes tão poderosas que o órgão não lhes dominou o conjunto, apesar do bramido de seus tubos. Somente as notas penetrantes da voz jovem dos meninos do coro e os tons quentes de alguns baixos suscitaram idéias graciosas, representaram a infância e a força, naquele admirável concerto de vozes humanas, confundidas num mesmo sentimento de amor.

— Te Deum laudamus!

Do seio daquela catedral, negra de mulheres e de homens ajoelhados, partiu esse canto, semelhante a uma luz que cintila de repente na noite, e o silêncio foi quebrado como que por um estrondo de trovão. As vozes subiram com as nuvens de incenso que lançavam véus diáfanos e azulados, sobre as fantásticas maravilhas da arquitetura. Tudo era riqueza, perfume, luz e melodia.

No instante em que essa música de amor e gratidão se lançou para o altar, Dom Juan, polido demais para não agradecer, espirituoso demais para não apreender a ironia, respondeu com um riso terrível e afetou uma atitude solene e altiva em seu caixão. Mas o Diabo, tendo-o feito pensar no perigo que corria de ser tomado por um homem comum, por um santo, um Bonifácio, um Pantaleão, perturbou aquela melodia de amor com um urro, ao qual se juntaram as mil vozes do inferno. A terra bendizia, o céu amaldiçoava. A igreja tremeu sobre seus fundamentos antigos.

— Te Deum laudamus! — dizia a assembléia.

— Vão para o diabo, bestas, brutos que são! Deus! Deus! Carajos demonios, animais, são todos uns estúpidos com o seu Deus velho! E uma torrente de imprecações rolou como um regato de lavas ardentes, numa erupção do Vesúvio.

— Deus sabaoth, sabaoth! — gritavam os cristãos.

— Insultais a majestade do inferno! — respondeu então Dom Juan, que rangia os dentes.

Logo o braço vivo pôde passar por cima do caixão e ameaçou o povo com gestos impregnados de desespero e ironia.

— O santo nos abençoa! — disseram as velhas, as crianças e os noivos, gente crédula.

Eis como somos enganados muitas vezes em nossas adorações. O homem superior zomba dos que o cumprimentam e cumprimenta algumas vezes aqueles de quem zomba no fundo do coração.

No momento em que o abade, prosternado diante do altar, cantava: "Sancte Johanes, ora pro nobis!", ouviu distintamente: — O coglione!

— Que se passa lá em cima? — exclamou o vice-prior, vendo o caixão se mover.

— O santo pinta o diabo — respondeu o abade.

Então, aquela cabeça viva se desligou violentamente do corpo que não vivia mais e caiu sobre o crânio amarelo do oficiante.

— Lembra-te da Sr.ª Elvira: — gritou a cabeça, devorando a do abade.

Este último soltou um grito medonho, que perturbou a cerimônia. Todos os sacerdotes acorreram e cercaram seu soberano.

— Imbecil, diz agora que há um Deus! — gritou a voz, no momento em que o abade, mordido no cérebro, expirava.


por Honoré de Balzac