segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O mastro de navio da casa de Ponte d’Uchoa

Recife: nossa Veneza americana
Acostumaram-se os recifenses moradores da linha que outrora se chamou a “Principal” — a do trem que ia dos sobrados do centro às matas suburbanas de Dois Irmãos — a ver diante do casarão gótico de Ponte d’Uchoa — casarão gótico que, reformado, é hoje o palacete do médico e milionário luso-pernambucano Manuel Batista da Silva — um alto mastro de antigo navio a vela.

Durante longos anos aí esteve o mastro misterioso.

Do casarão se diz que o levantou velho comandante inglês de navio, enriquecido no comércio uns dizem que de bacalhau, outros que de farinha de trigo. Sentimental como todo bom inglês, quando resolveu residir no Recife — cidade que sempre teve seu it  para ingleses, um dos quais deixou-a, há pouco, choroso como um desesperado que deixasse sua Pasárgada — não foi capaz de separar-se do mastro do navio a vela. O mastro do navio que durante anos comandara por mares do Norte e águas do Sul.

De modo que diante da casa bizarramente gótica — tão bizarra que os cronistas do meado do século XIX registraram com espanto o seu aparecimento no meio do arvoredo caboclo — ergueu o inglês aquele mastro, como se ali houvesse encalhado para sempre seu navio: navio bom e romântico do tempo da navegação a vela.

E ali ficou o mastro até que o transferiram para o Country Club, onde ainda está.

Contou-me há anos velho “inglês” — inglês já de água doce, pois, nascido no Brasil e casado com brasileira, falava inglês com sotaque pernambucano — que, por algum tempo, o mastro teve fama de mal-assombrado. Quem passasse tarde da noite pelo casarão ermo via no alto do mastro angulosa figura que alguns supunham de marinheiro. E sendo de marinheiro, devia ser de marinheiro inglês, pois inglês fora o navio de que a saudade do antigo comandante arrancara o mastro.

Na mesma área do Recife onde se ergueu durante anos esse mastro de navio velho, no qual mais de um recifense antigo cuidou ver, noite de escuro, fantasma de inglês saudoso do seu barco, apareceu, anos depois, a uma meninota brasileira chamada Lurdinha, um vulto esbranquiçado que lhe pareceu fantasma; e fantasma também de inglês, todo de dólmã branco, sapatos como os dos ingleses jogarem tênis. Fantasma de um mister B., que se soube depois ter morado na casa onde morava a família de Maria de Lurdes.

O fantasma que a moça garantiu à família ter visto com olhos de pessoa acordada era, com efeito, britanicamente correto. 

Desapareceu logo que descobriu estar assombrando uma simples menina. Não pediu missa: mesmo porque parece que Mr. B. fora em vida protestante. Não apontou para móvel ou parede alguma: nem era natural que o fizesse, pois devia ter suas economias em banco solidamente inglês. Não fez um gesto. Não fez um ruído. 

Simplesmente apareceu à menina chamada Lurdes. Ali nessa mesma casa, a outra família, a família F. L. — dizem ter aparecido um fantasma de bebezinho brincalhão. Talvez inglês como Mr. B.

Só fazia brincar. Não assustava ninguém. Espécie de irmão do fantasmazinho de menino feliz de outra casa de Boa Vista do qual mais adiante se falará.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O rastro de Charles Ashmore

Ambrose Bierce
A família de Christian Ashmore consistia em sua mulher, sua mãe, duas filhas crescidas e um filho de dezesseis anos. Moravam todos em Troy, Nova York, eram pessoas de bom nível, respeitadas, e tinham muitos amigos, alguns dos quais, lendo estas linhas, ouvirão falar pela primeira vez da história extraordinária ocorrida com o rapaz. 

Os Ashmores se mudaram de Troy para Richmond, Indiana, em 1871 ou 1872, seguindo, um ou dois anos depois, para os arredores de Quincy, Illinois, onde o Sr. Ashmore comprou uma fazenda e se instalou. A pouca distância da sede da fazenda havia uma fonte de água limpa e fresca, que a família usava para suprir suas necessidades durante o ano inteiro.

Na noite de 9 de novembro de 1878, lá pelas nove horas, o jovem Charles Ashmore deixou a família reunida em casa e, levando uma pequena jarra, saiu em direção à fonte. Como demorava a voltar, a família ficou inquieta, e o pai, indo até a porta por onde o rapaz saíra, chamou por ele sem obter resposta. Acendeu então uma lanterna e, junto com a filha mais velha, Martha, que insistiu em acompanhá-lo, saiu à procura.

Naquela noite havia caído um pouco de neve, que cobria o caminho mas deixava evidente a trilha feita pelo rapaz. Cada pegada era perfeitamente visível. Quando eles já haviam percorrido pouco mais do que a metade do caminho — cerca de sessenta metros —, o pai, que ia na frente, estacou e, erguendo a lanterna, ficou espiando a escuridão à sua frente.

"O que houve, pai?", perguntou a moça.

O que havia era o seguinte: a trilha do jovem terminava de repente e dali para a frente a neve fofa estava intocada. As últimas pegadas eram tão visíveis quanto as anteriores, sendo possível mesmo distinguir a marca da ponta dos dedos. O Sr. Ashmore olhou para cima, usando o chapéu de anteparo para que a luz da lanterna não o ofuscasse. As estrelas brilhavam.

Ficou assim afastada a hipótese que chegara a lhe ocorrer, por mais improvável que fosse, de que houvesse caído neve outra vez, e só dentro de um limite tão bem definido. Seguindo um caminho maior e rodeando o local onde estavam as últimas pegadas, de forma a deixá-las intocadas para voltar a examiná-las mais tarde, ele foi até a fonte, enquanto a moça seguia atrás, sentindo-se fraca e apavorada. Nenhum dos dois disse uma só palavra sobre o que tinham visto. A fonte estava coberta de gelo, obviamente endurecido havia muitas horas.

Voltando para casa, observaram a neve de ambos os lados, ao longo de todo o caminho. Não havia qualquer marca de pegadas afastando-se da trilha.

A luz do dia não trouxe qualquer nova evidência. Por toda parte havia neve, não muito profunda. E sempre macia, sem marcas, intocada.

Quatro dias depois, a mãe, arrasada, foi até a fonte em busca de água. Ao voltar, contou que, quando passava pelo local onde tinham sido vistas as últimas pegadas, ouvira a voz do filho e saíra, desesperada, chamando por ele, andando a esmo pelo lugar, já que a cada momento tinha a impressão de ouvir a voz vindo de uma diferente direção. Até que não agüentara mais, vencida pelo cansaço e pela emoção.

Quando lhe perguntaram o que a voz falava, não conseguiu dizer, embora asseverasse que as palavras eram perfeitamente audíveis. Imediatamente, toda a família foi até o local, mas ninguém ouviu nada e a conclusão foi a de que tudo não passara de uma alucinação causada pela ansiedade da mãe e por seus nervos destroçados.

Acontece que nos meses seguintes, com intervalos irregulares de alguns dias, a voz foi ouvida por todos os membros da família, e também por outras pessoas. Todos declararam estar absolutamente certos de que era a voz de Charles Ashmore, e todos concordaram que o som parecia vir de muito longe, fraco, mas articulado de forma perfeitamente audível. E, contudo, ninguém foi capaz de precisar de que direção vinha o som ou de repetir as palavras ditas. Os intervalos de silêncio foram aos poucos tornando-se mais longos, e a voz ficando mais fraca e distante, até que, no verão, parou de ser ouvida.

Se alguém conhece o destino de Charles Ashmore, esse alguém provavelmente é sua mãe. Ela está morta.





Ambrose Bierce nasceu em Ohio, EUA, a 24 Junho de 1842. Depois da Guerra Civil Americana, em que participou do lado da União, Bierce partiu para a Califórnia, onde se tornou jornalista. Na Inglaterra a partir de 1872, trabalhou para revistas humorísticas como a «Figaro» e a «Fun». Regressou aos Estados Unidos em 1875, iniciando um longo período de colaboração com vários jornais. Tornar-se-ia um dos jornalistas e escritores mais conhecidos do seu tempo, não deixando ninguém indiferente ao seu sentido acutilantemente crítico e satírico da humanidade. Com humor insolente, atacou todos os quadrantes da sociedade: as religiões, a política, a economia, o sentimentalismo... Em 1913, aos setenta e um anos, Bierce partiu ao encontro da Revolução Mexicana, sem deixar rastro. A sua morte permanece um mistério, mas acredita-se que possa ter acontecido durante a Batalha de Ojinaga, em Janeiro de 1914.

Lendas do rio São Francisco


Contam que em Manga havia um pescador com o nome de Simão Corneta. Muito pobre, casado e com muitos filhos, que ficavam em casa famintos por muitos dias. Certo dia saiu para pescar. Em cima do rancho apanhou o remo e as linhas; encheu a cumbuca de isca, benzeu-se antes de entrar na canoa e remou rio abaixo ouvindo os barulhos das aves. Para espantar as moscas acendeu o seu cachimbo de barro.

Chegando na barra do Rio Verde Grande encontrou outros pescadores que esperavam pegar surubins de 70 quilos para cima. Iam dias, vinham noites e nada de peixes. Depois de quatro dias de tentativas resolveu entrar no rancho de um velho pescador que ele chamava de tio Ciríaco. Deitou-se no banco da sala e adormeceu profundamente.

Mais tarde Ciríaco e sua velha mulher passaram a observar o pobre pescador que fingia dormir. A mulher perguntou ao velho qual seria a razão do insucesso de Simão Corneta. Ciríaco respondeu que Simão não conhecia os segredos do Rio São Francisco. A velha pediu a Ciríaco que revelasse ao pobre pescador os segredos o que recusou dizendo ser perigoso para Simão Corneta que sendo jovem e belo não resistiria os tentadores encantos da Mãe-d'água. Revelou apenas que a Mãe d'água gostava de aparecer à meia-noite sobre uma pedra lisa e que era preciso ter coragem, jogar fumo para trás e correr para ela não pegar.

Simão achou que o velho Ciriáco era bem sucedido nas suas pescarias por causa das graças da Mãe-dágua e que já tinha posse do segredo. Acabou com o fingimento de sono e levantou-se. Depois de comer peixe com pirão, despediu-se do casal de velhos e pôs-se a remar rio acima. O velho Ciríaco ficou preocupado vendo Simão Corneta, sem o segredo, cada vez mais distante e a noite cada vez mais próxima.

A lua clareou o rio que parecia uma avenida de prata e era meia-noite; um vento soprou forte; um galo cantou; vozes humanas e rumores de animais aproximavam e Simão nada compreendia. De repente apareceu em cima dágua uma casa branca como o algodão. Seu telhado era de escamas de peixe; as janelas de ouro e as paredes de prata. Daquele palacete saiu a Mãe-dágua. Assentou-se na pedra lisa penteando seus longos cabelos com um pente de ouro.

Simão ficou ali contemplando aquela maravilha até que a Mãe-dágua se adormeceu deixando o pente de lado. Corneta pensou, então, levar o pente com ele e foi como um gato até a pedra lisa. Quando conseguiu colocar a mão no pente a Mãe-dágua deu grito agudo, muito alto e desapareceu levando Simão em seu palacete.

Mais lendas do São Francisco

Tudo o que a terra tem, o rio São Francisco também tem e não é só em terra que há cavalo. Existe no rio o cavalo d'água. Nos dias em que ele relincha demoradamente, é sinal de que vai fazer bom tempo. Conta-se que certos pescadores já montaram no cavalo d'água, mas para esta façanha tem de se submeter a duras provas e pedir licença ao caboclo d'água, que é dono do cavalo d'água. O cavalo misterioso e aquático do rio São Francisco cavalga quase sempre ao amanhecer e ao cair do sol.

Registra o professor Saul Martins a crença de pescadores e barqueiros do São Francisco, na existência de homens encantados que habitam o fundo do rio em cidades fantásticas. Contam longos casos de aparições e de ações malfazejas de um ou de outro caboclo d'água.

Diz Afrânio Teixeira Bastos que o São Francisco é um rio de contrastes que parece obrigá-lo a ostentar um absolutismo sobre o vale. Ao mesmo tempo é fator de riqueza e de miséria, de vida e de morte, de progresso e de atraso, de integração e de dissociação políticas. Age como um déspota insatisfeito, apenas interessado numa individual e cruel exibição de força. (SANTOS, A T. 1960)

Esta é também a concepção do povo que vive em suas margens. Tudo de bem e de mal é atribuído ao rio. Concordamos que o rio seja uma força natural, mas não concordamos que os males sejam atribuídos a fatores geográficos porque são tipicamente sociais. Esta evidência demonstra a lenda. O pescador Simão Corneta foi vítima do competitismo, antes de sair para pescar, na pobreza de seu rancho, de sua insegura canoa, na falta de provisão e na sua solidão. Foi vítima do competitismo durante o tempo de pescaria, pois não recebeu ajuda e nem solidariedade de outros pescadores; Ciríaco foi hospitaleiro mas não foi solidário com Simão, negando-lhe a necessária orientação.

Os mitos "Cavalos D'água", e "Caboclo D'água", revelam o tipo social do pescador, da região de Januária, na figura do barranqueiro, que vive a tradição da pesca. A sua grande paixão é o rio, do qual tira o sustento e para o qual dedica toda a energia. O cavalo d'água fa z a ligação entre o mundo exterior próximo do barranqueiro e o mundo interior, traduzido no amor pelas coisas do rio. O caboclo d'água representa os perigos escondidos nas águas do grande rio.

Fonte: velhochico.net

A mulher de sete metros

Onde hoje se localiza o Forúm da cidade de Patos de Minas (MG), situou-se o primeiro cemitério. Dali, segundo a tradição, sai uma mulher de sete metros de altura e vai até perto do monumento do Presidente Olegário Maciel. É a alma penada de Lavi Lopes, fazendeira bastante rica e possuidora de muitos escravos, que viajava muito, indo constantemente ao Rio de Janeiro, onde gozava dos encantos da cidade.

Era de grande perversidade, sobretudo para com seus escravos. Jogava gordura fervendo nas negras, queimando-as porque elas não realizavam os trabalhos de acordo com seu exigentíssimo gosto. Isto só para martirizá-las.

Umas das escravas tentou jogar a malvada dentro da cisterna. A sua maldade era tão grande que, quando usava sapatos de salto alto, pisava nos braços dos filhos dos escravos quando estes engatinhavam, quebrando-lhes os braços e não permitia tratamento e nenhum cuidado aos inocentes machucados.

Em razão disso, foi ficando isolada de todos e de tudo. Ninguém desejava a sua companhia, e fugiam dela.

Viveu muitos anos, tristemente, morrendo já bastante idosa, abandonada e pobre. A sua figura, quando morta, inspirava terror, pois não fechou os olhos, nem a boca, ficando com a língua para fora. As crianças tinham pavor dela, e de seu aspecto. Em sua antiga casa, ouviam-se, até há pouco tempo, arrastar de correntes, ganidos e gritos de dor.

Nesse mito, podemos dimensionar a percepção popular as arbitrariedades e dos abusos no sistema de escravidão. Aponta uma sabedoria do povo em defesa dos direitos humanos.

Fonte: http://velhochico.net (Lendas das Gerais).

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Coisas bizarras da era vitoriana

10 - Vinhetas

A classe vitoriana superior (e mais tarde classe média) não tinha rádios, televisores ou Internet (e nem carnaval!) para entretê-los. Mas não tinha teatro? Bem, uma das formas mais populares de entretenimento para os amigos e familiares, naquela época, foi o de se vestir em trajes ultrajantes e posar. Isto soa inocente - mas pense bem: você conseguiria imaginar sua avó fantasiada de ninfa grega subindo em uma mesa na sala de estar enquanto todos aplaudem? Mas, para os vitorianos, ingleses tão conservadores, isto era assustadoramente normal e divertido.

09 - Asilos

Os asilos eram instalações administradas pelo governo onde os pobres, enfermos, ou mentalmente doentes podiam viver. Eram pacientes geralmente imundos, mendigos e/ou excluídos pela sociedade. Na época, a pobreza era vista como um estado desonroso, de pessoas com falta da virtude moral da diligência. Muitas destas que viviam nos asilos eram obrigadas a trabalhar para contribuir para a manutenção destas instituições e não era incomum que famílias inteiras vivessem juntas com outras neste ambiente.  

08 - Nevoeiros

Londres, durante a era vitoriana ficou famosa pelas pea soupers - nevoeiros tão espessos que mal se podia ver através deles. As pea soupers eram causadas por uma combinação de nevoeiros do Rio Tâmisa e fumaça dos fogos de carvão que eram uma parte essencial da vida vitoriana. Curiosamente Londres sofreu com estes nevoeiros por séculos - em 1306, o rei Eduardo I proibiu fogos de carvão por causa da poluição.

Em 1952, 12 mil londrinos morreram devido à poluição atmosférica obrigando o governo a aprovar a Lei do Ar Limpo. A atmosfera vitoriana (em literatura e no cinema moderno) é bastante reforçada pela espessa fumaça e neste ambiente assustador Jack agia calmamente, estripando suas vítimas.

07 - Alimentação

Os nossos ingleses vitorianos amavam as miudezas e comiam praticamente todas as partes de um animal. Isto não é totalmente assustador se você também gosta, mas para pessoas comuns, a idéia de cear em uma tigela contendo miolo de cérebro ou coração não é atraente. Outro prato famoso da era vitoriana era a sopa de tartaruga. A tartaruga foi valorizada acima de tudo por sua gordura que foi usada para dar sabor a esse prato, junto com a carne cozida do pegajoso quelônio. Devido ao perigo de sua extinção, as tartarugas são raramente comidas hoje em dia, mas é possível comprá-los em alguns estados dos EUA, onde elas são abundantes. 

Creio que o problema dessa época seria a falta de higiene. Falando em miudezas, particularmente adoro uma dobradinha...

06 - Cirurgia


A partir do momento em que cada um de quatro pacientes morria após uma cirurgia, as pessoas daqueles tempos davam graças aos céus por não sofrer de nenhum mal ou rezavam por um bom médico. Não havia anestesia, nem analgésicos e nenhum equipamento elétrico para reduzir a duração de uma operação. A cirurgia vitoriana não era simplesmente assustadora, era completamente horripilante!

Aqui está uma descrição de uma cirurgia da época:

Uma multidão de ansiosos estudantes de medicina, antes de assistirem ao “procedimento”, verificam seus relógios de bolso, assim como os dois assistentes do Dr. Liston, que imobilizam o espavorido paciente. O homem totalmente consciente, atormentado pela dor de sua perna quebrada ao cair entre um trem e a plataforma, olha totalmente apavorado para a coleção de facas, serras e agulhas que estão ao lado dele.

Dr. Liston, com sua mão esquerda, pega a sua faca favorita e em um rápido movimento faz uma incisão na coxa do paciente. Aperta o local com um torniquete para estancar o sangue. Em seguida, com o paciente urrando de dor, o nosso doutor larga sua faca e pega a serra, não sem antes, com a ajuda de um assistente, expor o osso. Começa a cortar. Com um estremecimento ele deixa o membro amputado em uma caixa com serragem.

A castração também foi ainda amplamente praticada junto com outras cirurgias revoltantes como a lobotomia, que foi utilizada pela primeira vez na era vitoriana.

05 - Romance gótico

Como não incluir o romance gótico (um gênero de literatura que combina elementos de horror e romance) em uma lista como esta? Foi o período vitoriano que nos deu grandes obras de terror como "Drácula" e "O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde".  Até os americanos tiveram no ato de Edgar Allan Poe a produção de muitos contos góticos, rivalizando com os ingleses, o que de melhor existe em literatura gótica desse tempo.

Os vitorianos sabiam como assustar e eles sabiam como fazê-lo em grande estilo. Estas obras ainda formam a base do horror moderno e muito do seu poder envolvente não diminuiu, no mínimo.

04 - Jack, o Estripador

No final da era vitoriana, Londres foi aterrorizada pelo monstro conhecido como Jack, o Estripador. Usando o nevoeiro londrino como uma capa, o Estripador, em última análise, assassinou cinco ou mais prostitutas que trabalhavam no East End.

Os jornais, cuja circulação foi crescendo durante esta época, concederem uma duradoura notoriedade sobre esse assassino por causa da selvageria dos ataques e ao fracasso da polícia em capturá-lo. Como sua identidade nunca foi confirmada, as lendas que cercam os assassinatos tornaram-se uma combinação de pesquisa histórica genuína, folclore e pseudo-história. Muitos autores, historiadores e detetives amadores propuseram teorias sobre a identidade do assassino e de suas vítimas.

03 - Show de horrores

O “show de horrores” era a exposição de raridades ou aberrações da natureza - como seres humanos excepcionalmente altos ou baixos, pessoas com características sexuais secundárias de macho ou fêmea ou outras com doenças e condições extraordinárias - e performances que esperavam ser chocantes para os espectadores.

Provavelmente, o membro mais famoso da um show de horrores é o Homem Elefante (foto ao lado). Joseph Carey Merrick (05 de agosto de 1862 - 11 de abril de 1890) era um inglês que ficou conhecido como "O Homem Elefante" por causa de sua aparência física causada por um distúrbio congênito. Seu lado esquerdo estava inchado, distorcido levando-o a usar uma máscara durante a maior parte de sua vida. Não há dúvida de que os “freak shows” vitorianos foram um dos mais arrepiantes aspectos da sociedade da época.

02 - Memento mori

Memento mori é uma expressão latina que significa "lembre-se que você vai morrer". Na era vitoriana, a fotografia era uma arte ainda jovem e extremamente cara. Quando um ente querido morria, seus parentes, às vezes, tiravam sua foto e, muitas vezes, posando com os membros da sua família.

Para a grande maioria dos vitorianos nunca fotografados em vida, esta era a primeira e derradeira vez...

Nestas fotos post-mortem, o efeito de vida foi, por vezes, valorizado sustentado os olhos do ente querido com as pupilas abertas ou pintando depois sobre as impressões fotográficas e inclusive, muitas dessas imagens têm uma tonalidade rosada adicionada às faces do cadáver.

Os adultos eram comumente colocados em cadeiras ou mesmo apoiados em alguma coisa para serem desenhados em quadros. As flores também eram usadas como adereço comum no post-mortem de fotografia de todos os tipos.

Na foto à esquerda, o fato de que os pais ao lado de sua menina morta não consigam conter um leve movimento, faz com que fiquem um pouco turvos devido ao longo tempo de exposição. Com a menina não acontece esse problema. Isso é assustador, é triste, é mórbido!  

 01 - Rainha Vitória

A rainha Vitória tem a posição número um em nossa lista, porque a época é derivada de seu nome e, francamente, ela também era assustadora. Quando seu marido Albert morreu em 1861, ela entrou em luto - vestindo túnicas negras até sua própria morte depois de muitos anos - e esperava que toda nação também a fizesse. Ela evitou aparições públicas e raramente pôs os pés em Londres nos anos seguintes. Sua reclusão lhe rendeu o nome de "Viúva de Windsor." Seu reinado sombrio lançou uma mortalha escura na Grã-Bretanha e sua influência foi tão grande que todo o período foi repleto de bizarrices.

Ironicamente, uma vez que Vitória não gostava de funerais negros, quando de sua morte, Londres foi enfeitada em roxo e branco.

Fonte: http://www.smashinglists.com

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A canela do defunto

Muitos dos contos ou das lendas populares que a tradição oral vai passando adiante, modificados ou alterados na sua forma primitiva, na sua tessitura íntima, mas conservado o sentido original, vieram de outras plagas longínquas, de além-mar. São contos ou histórias da península na maior parte. 

Portugal foi a tal respeito o nosso maior celeiro. Mandou-nos inúmeros deles que aqui se perpetuaram e se incorporaram definitivamente ao nosso folclore. O conto, de que a seguir reproduzo uma variante, está nesse caso. Proveio da boa cepa portuguesa.

Teófilo Braga apresenta em seus Contos tradicionais do povo português, uma versão do Algarve sob o título de A mulher curiosa, e Barros Ferreira inclui também, nas suas Lendas da Península, uma outra versão lusitana, tida como real, dando-lhe o nome de O fêmur do defunto. Lindolfo Gomes, consagrado folclorista e autor de várias obras consideradas de subido valor, na sua rica coletânea de contos populares consigna uma variante brasileira colhida em São João del Rei, Minas Gerais.

Leio, porém, em Contos tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, que a "tradição é comum a Portugal e Espanha, onde os episódios são incontáveis". O insigne mestre professor Aurélio Espinosa possui duas versões recolhidas em terras de Espanha - La calle de la pierna (em Córdoba) e La averiguarana (em Ciudad Real).

Nas versões peninsulares, como na versão brasileira, a narração se prende a uma procissão das almas-do-outro-mundo ou das almas penadas do Purgatório, noite alta, percorrendo invisivelmente as ruas tranqüilas e desertas. Afirma a tradição que a criatura que a presencia morre nesse mesmo ano, não dura seis meses. Há também a suposição de que quem a vê fica pateta, amalucado, ou só pode avistá-la "quem tem uma palavra a menos no latim do batismo". O conto refere sempre a uma moça ou a uma velha curiosa, bisbilhotando o que se passa na rua, à meia-noite, e recebe como castigo um círio aceso que se transforma em osso de defunto ou num esqueleto.

A variante que recolhi é a seguinte: "A canela do defunto".


Havia em certo lugar uma velha muito beata e curiosa, que, às horas caladas da noite, se deixava ficar postada à janela da sala, vendo e ouvindo o que se passava na rua. Era um hábito que conservava de longa data. Certa vez, viu um cortejo fúnebre, que outro não era senão a procissão das almas penadas do Purgatório conduzindo um caixão de defunto, ao clarão de velas acesas. Aguçou-se-lhe mais a curiosidade e não se contentou de olhar apenas, através do vidro da janela ou das venezianas, a lúgubre jornada das almas-do-outro-mundo, vestidas nas suas mortalhas. Quis vê-las mais de perto. Abriu de par em par a janela. Aconteceu-lhe, entretanto, um fato estranho. Viu, estarrecida, deslocar-se do cortejo e encaminhar-se rapidamente para ela uma das almas, cujos segredos tentava desvendar na sua bisbilhotice. E antes que pudesse fechar a janela, o vulto entregou-lhe um círio aceso dizendo-lhe na sua voz fanhosa, como só devem possuir as almas-do-outro-mundo: - Amanhã, virei buscá-lo, às mesmas horas. Guarde-o bem guardado.

Mal pôde recobrar o ânimo, qual não foi o seu espanto quando notou que sustentava nas mãos ainda trêmulas e gélidas, uma canela de defunto. Entre horrorizada e arrependida, correu a colocá-lo no santuário, rezando o credo. Na noite seguinte, transida de medo, devolveu-lh’a com duas velas bentas, ao que lhe retrucou, na sua voz de falsete, ao recebê-la, a alma-penada: - Foi o que te valeu. Que te sirva esta de lição.

(Recolhida em Maceió)
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(DUARTE, Abelardo. Em Boletim alagoano de folclore) - Fonte: Jangada Brasil

Num lençol manchado de sangue

Barão de Escada - Belmiro da
Silveira Lins - assassinado em
eleição senatorial em Vitória.
Estava uma senhora de família pernambucana no interior do estado em visita a parentes do Recife. Feitas as compras nas lojas do centro, foi a sinhá descansar tranqüilamente, sossegada de seu, numa das cadeiras de balanço da casa, depois de desoprimida do espartilho que lhe apertava o busto e das botinas de duraque que lhe apertavam os pés pequenos para torná-los ainda menores.

O corpo à vontade na matinée solta e os pés, ainda mais à vontade, nos chinelos moles. Isto aconteceu nos fins do século passado, que ninguém sabe ao certo nem na Europa nem no Brasil, quando acabou. O Kaiser é que, aconselhado decerto pelos doutores das universidades alemãs, não teve dúvida em considerar o primeiro de janeiro de 1900 o começo do novo século. E assim foi ele principalmente comemorado na Europa e no Brasil.

Não era aquela sinhá do fim do século XIX, como a baronesa de L., apreciadora de um charutinho forte; nem como a mulher do conselheiro J. ou a ilustre Albuquerque, esposa do dr. C, de um bom cigarro de palha, ainda mais forte que os charutos de qualidade, fumados pelos homens. Não fumava ela nos seus vagares ou nos seus ócios. 

Estava simplesmente repousando na cadeira de balanço, sem fumar nem ler nem cochilar, sem ninar menino nem rezar o terço no rosário de madrepérola. Sem que alguma mucama lhe desse cafunés. Simplesmente repousando.

De repente, deu um grito que assustou a casa inteira. Um grito de terror tão grande que até na rua se ouviu a voz da sinhá ilustre.

Acudiram os parentes, cada qual mais aflito ou assustado.  Vieram com suas mãos macias de enfermeiras, de doceiras e catadoras de piolho nos vastos cabelos soltos das senhoras nobres, as mucamas da casa. 

Mandou-se chamar o médico da família, pois a boa sinhá desmaiara. Que viesse a toda pressa, no seu carro de cavalo. No seu ligeiro cabriolé inglês que aos olhos da gente da época parecia voar e não apenas rodar pelas ruas do Recife.

Não tardou, porém, a explicação: à dona acabara de aparecer a figura do tio barão envolvida num largo lençol branco todo manchado de sangue.

Horas depois chegavam ao Recife notícias de Vitória: tiroteio na igreja durante as eleições.  Conflito sangrento.  O barão de Escada fora assassinado.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - "Barão de Escada, num lençol manchado de sangue" - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

Luzinhas misteriosas nos morros do Arraial

Isso de haver luzes misteriosas nos morros onde houve guerra aprendi que é crença entre os celtas com o grande poeta irlandês William Butler Yeats. Homem — esse poeta — como raros europeus de seu tempo, entendido em assuntos de ocultismo, de magia e de sobrenatural e que eu, ainda estudante, conheci pouco tempo antes de ter ele, para meu espanto, se tornado doge ou senador da República irlandesa — ele que tinha uma voz quase de moça e mãos que pareciam plumas, incapazes de esmurrar tribunas e ameaçar tiranos.

Entre algumas populações européias mais rústicas se encontra, ainda hoje — disse-me Yeats há muitos anos — a crença de aparecerem luzinhas misteriosas em antigos campos de batalha. Ou nas suas imediações. Luzinhas esquisitas que aparecem e desaparecem como fachos que se avistassem a mais de légua, do tamanho de lanternas de carro de cavalo. Que mudam de lugar.  Que podem ser vistas a grandes distâncias, como as luzes naturais não podem.

Descobri crença semelhante entre velhos moradores de Casa-Forte e das imediações do morro do Arraial, no Recife, quando, há anos, vivi em íntimo contacto com aquela boa gente de mucambo e de casa de barro. Também entre eles — entre os mais velhos — é crença de que aparecem luzinhas misteriosas nos morros onde se travaram encontros da gente luso-brasileira com a  flamenga; ou onde a gente luso-brasileira teve seu arraial.

Ignoro se continuam a aparecer tais luzinhas. Dizia Josefina Minha-Fé, velha moradora da Casa-Forte e da Casa Amarela, que estava farta de vê-las nas noites de escuro; que  eram almas de soldados que haviam morrido lutando; que eram espíritos de guerreiros  ali mesmo tombados.  Zumbis de campo e não de interior de casa.

Yeats acreditava que no Brasil houvesse muita sobrevivência celta. Perguntou-me se alguém já estudara o assunto. Respondi- lhe que não. Será a crença nessas aparições de luzes misteriosas, em antigos campos de batalha, sobrevivência celta?
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Bermudas do passado

A Estrada de Bimini é uma estrutura submarina que se estende por quase um quilômetro perto de Bimini Island. É formada por blocos de calcário retangulares que se parecem muito com uma antiga estrada ou uma parede.

Hoje podemos saber que faz aproximadamente doze mil anos que algumas zonas pelo Mediterrâneo foram terra firme continental, que existiam pontes terrestres entre Gibraltar e a África e entre a Sicília e a Itália; que submergiu uma grande extensão do mar do Norte, igual as plataformas continentais que estão frente às costas da Irlanda, França, a península Ibérica e África; as planícies submersas ao redor das ilhas Açores, as Canárias e Madeira; a cordilheira Açores-Gibraltar e as plataformas continentais das Américas do Norte e Sul, especialmente os enormes bancos das Bahamas, que se estendem ao longo de milhões de quilômetros quadrados.


Recentes investigações realizadas nesta zona e ao redor das ilhas Açores deram provas aos pesquisadores para afirmar que estes fundos marinhos foram há doze mil anos, aproximadamente, parte da superfície terrestre, ou seja, que em uma época anterior ao levantamento do mar, o patamar submarino das Bahamas formava uma grande ilha ou conjunto de ilhas habitadas por uma civilização muito complexa.

Importantes achados em Bimini

O mais célebre dos descobrimentos feitos nas Bahamas é, sem dúvida, o "Caminho" ou "Muralha" de Bimini, descoberto pelo doutor J. Manson Valentine em 1968.

Esta enorme construção é composta por gigantescos blocos de pedras dispostas a modo de caminho, plataformas ou muralhas. Em palavras de seu próprio descobridor: "E um extenso pavimento de pedras lisas, retangulares e poligonais de diversos tamanhos e espessuras que haviam sido alinhadas e desenhadas para formar uma estrutura harmoniosa.

Era óbvio que estas pedras haviam permanecido submersas durante um longo período, a julgar pelas bordas das maiores, que haviam sido alisadas e davam uma aparência de almofadões ou pedaços de pão gigantescos. Algumas eram absolutamente retangulares e algumas vezes formavam quadrados perfeitos (nas formações naturais a linha reta não é jamais conseguida).

As peças maiores, que tinham um comprimento de três a cinco metros pelo menos, estavam colocadas freqüentemente à largura das avenidas situadas em forma paralela, enquanto que as menores formavam pavimentos tipo mosaicos e cobriam áreas mais amplas... As avenidas compostas pelas pedras, aparentemente calçadas, são paralelas e de bordas retas; a mais larga está constituída por uma série dupla, firmada nos extremos por peças verticais. O extremo sul-oriental desta grande estrada termina em uma esquina perfeitamente curva; os três pequenos diques, construídos com grandes pedras cuidadosamente alinhadas têm uma largura uniforme e terminam em pedras angulares.

 Alicerces submersos

Também foram encontrados nesta zona restos do que poderiam ter sido pirâmides ou alicerce de edifícios. Nas Birmini uma destas formações mede 55 por 42 metros e parece ser a metade superior de uma grande pirâmide ou plataforma de um templo.

Igualmente foram localizadas no México, frente às costas de Yucatán, algumas vias terrestres que partindo da praia, em linha reta, submergiam no mar para localidades submarinas desconhecidas. Também nas águas cubanas existe um complexo em "ruínas" ainda sem explorar. Próximo de Rocha Lobos foi localizado e fotografado um caminho ou muralha que corre ao longo dos cumes de uma escarpa, muito similares aos encontrados frente as costas da Flórida, Geórgia e Carolina do Sul.

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Fonte: Esoterikha.com

O mar dos barcos perdidos


A primeira referência do "Triângulo das Bermudas" teve efeito em 5 de dezembro de 1945, em conseqüência do desaparecimento de seis aviões da marinha norte-americana e seus respectivos tripulantes.


Muitos séculos antes de serem produzidos os incidentes aéreos e marítimos da década de quarenta e até a atualidade, esta região, e além do cabo Hatteras, as costas da Carolina do Norte e do Sul e o estreito da Flórida, já eram conhecidas com outros nomes fatídicos, como o "Cemitério dos Barcos" e "Mar dos barcos perdidos".

Durante cento e cinqüenta anos, e ainda antes de existirem casos arquivados, haviam sido verificadas estranhas desaparições e até desintegrações de aparelhos. No entanto, foi a partir de 1945, como conseqüência das perdas massivas que começaram a ser produzidas, quando os pesquisadores começaram a dar importância à zona e a estudar as características das misteriosas desaparições.

A história começou há quinhentos anos

Quase todas as desaparições de barcos dentro do Triângulo das Bermudas, desde que temos notícias, vem sendo produzidas em uma região do oceano Atlântico ocidental chamado, há muitos anos, Mar dos Sargaços ou, como já dissemos, o "Mar dos barcos perdidos". Descoberto pelos primeiros marinheiros espanhóis e portugueses que atravessaram o oceano há quinhentos anos, deriva seu nome da alga marinha Sargassum.

A característica mais notável desta região é a imobilidade de suas águas e presença de uma alga, a sargassum, que marca os limites deste mar dentro do oceano, flutuando em grandes massas.

Se trata de um mar quase estancado e desprovido de correntes, exceto em seus limites com a corrente do golfo. Se estende uns 320 km. ao norte das Grandes Antilhas até a Flórida e a costa atlântica. Permanece a uns 300 km. de distância da terra e se desloca para o cabo Hatteras, seguindo logo uma direção para África e a península Ibérica, para regressar finalmente para América.

Um mar legendário, o dos sargaços

Ao longo de muitos séculos, as lendas sobre o mar dos Sargaços vem sendo acumuladas. Talvez as primeiras foram criadas por navegantes fenícios e cartagineses que o cruzaram, chegando a terras americanas, como o demonstram as inúmeras inscrições em pedras encontradas no Brasil e Estados Unidos, os tesouros de moedas fenícias e cartaginesas descobertas nas ilhas Açores e Venezuela e certas amostras pictóricas do México.

Assim podemos conhecer o informe do navegante cartaginês Himilco, escrito quinhentos anos antes de Cristo, sobre o mar dos Sargaços, um tanto sensacionalista e exagerado, mas muito gráfico: "Não é notada brisa que move o barco, tão morto está o perigoso vento deste mar quieto... ; tem tantas algas sobre as ondas, que parecem conter o navio, como se fossem arbustos... ; o mar não tem grande profundidade, a superfície da terra está coberta por muito pouca água... ; os monstros marinhos se movem continuamente em todas as direções e existem bestas ferozes que nadam entre os barcos que se arrastam lentos e preguiçosos".

Bruscas mudanças atmosféricas?

Em geral, os oceanógrafos e os meteorologistas atribuem as causas destas supostas desaparições a súbitas mudanças atmosféricas, explicando a ausência de restos e de manchas de óleo nas embarcações pela corrente do golfo do México, que atua para o norte, entre a Flórida e as Bahamas, a uma velocidade de 1,5 a quatro nós.

No entanto, a ciência oficial continua sem dar explicações convincentes aos acontecimentos do Triângulo das Bermudas, negando ao mesmo tempo as teorias mais ou menos fantásticas que já circulam por todos os continentes.
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Fonte: Esoterikha.com

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Um lobisomem doutor

Contou-me há quase trinta anos, Josefina Minha-Fé, que conheci negra velha, mas ainda bonita — tão bonita que, segundo me confessou ela um dia em voz de segredo, certo ilustre poeta brasileiro, de passagem pelo Recife, tentara conquistá-la sem o menor rodeio lírico, dominado pela mais repentina das paixões, sendo já Josefina mulher cinqüentona e um tanto descadeirada, os quartos meio caídos e os peitos começando a enlanguescer e não mais a vênus hotentotemente culatrona e de busto sólido que  fora no verão da vida e no esplendor do sexo — ter conhecido ainda meninota, no Poço da Panela, um lobisomem. 

“Era um horror, menino!” dizia-me ela na sua voz meio rouca de mulher um tanto homem na fala e em certos modos, mas não nas formas e nos dengos.

“Tomava forma de cão danado, mas tinha alguma coisa de porco. Toda noite de sexta-feira estava nos ermos de Caldereiro, do Monteiro, do Poço da Panela, cumprindo seu fado nas encruzilhadas. Espojando-se na areia, na lama, no monturo. Correndo como um desesperado. Atacando com o furor dos danados a mulher, o menino e mesmo o homem que encontrasse sozinho e incauto, em lugar deserto. Chegando atrevidamente até perto da casa de José Mariano para espantar Ioiô e o irmão, meninotes brancos.”

Até que um dia atacou o lube a própria Josefina, que era então negrota gorda e redonda de seus 13 anos. E não se chamava ainda Minha-Fé.  Ao contrário: havia quem a chamasse “Meu Amor” e até “Meus Pecados” — Josefina Meus Pecados — arranhando com a malícia das palavras sua virgindade de moleca de mucambo. 

E quem assim a chamava não se pense que era homem à-toa, porém mais de um doutor.  José Mariano, este às vezes vinha à porta da casa senhoril, de chambre e chinelo, olhar rio e conversar com os vizinhos.  E quando Josefina passava, perguntava-lhe, brincalhão, se ia jogar no bicho.  Ou qualquer coisa assim.

Saíra Josefina para comprar na venda do português azeite de lamparina para os santos.  Não é que os santos estavam naquela noite sem azeite para sua luz?

Não se lembrou a negrota descuidada de que era noite de sexta-feira e noite escura. Chuvosa, até. José Mariano devia estar dentro de casa, lendo os jornais. Dona Olegarinha, costurando. Os meninos, estudando.

Tão despreocupada foi Josefina, caminhando da casa, que era um mucambo de beira de rio, para a venda, ao pé dos sobrados dos lordes, que nem pensou em lobisomem a se espojar em encruzilhadas, batendo as orelhas grandes como se fossem matracas em procissão de Senhor Morto.

Lobisomem era assombração. E assombração parecia a Josefina, já menina-moça, conversa de negra velha e feia, de que negra nova e bonita não devia fazer caso.

E Josefina sabia que era bonita além de negra em flor. Só pensava em ir a festa, fandango, pastoril, pagode. Em dançar de contramestra e vestida de encarnado no pastoril do Poço que era então um dos melhores do Recife. A mãe é que não deixava.

Nada de filha sua em pastoril de rua ou vestida de encarnado. A mãe de Josefina fora escrava dos Baltar, era católica, apostólica e romana e tinha horror a Exu. A Exu e a encarnado vivo.

Ouvira Josefina falar no lobisomem do Poço que vinha assustando até homens valentes.   Que correra atrás de um canoeiro até o rapaz jogar-se desesperado no rio gritando pela mãe e pelo padrinho. Desesperado e vencido pela catinga do Amarelo.
 
Mas quem sabe se o canoeiro não estava um tanto encachaçado e correra de um boi pensando que corria de lobisomem?

Seguia assim Josefina para a venda, quase sem medo de lobisomem nem de fantasma, quando, no meio do caminho, sentiu de repente que junto dela parava um não-sei-quê alvacento ou amarelento, levantando areia e espadanando terra; um não-sei-quê horrível; alguma coisa de que não pôde ver a forma; nem se tinha olhos de gente ou de bicho.  Só viu que era uma mancha amarelenta; que fedia; que começava a se agarrar como um grude nojento ao seu corpo. Mas um grude com dentes duros e pontudos de lobo.  Um lobo com a gula de comer viva e nua a meninota inteira depois de estraçalhar-lhe o vestido.

Foi o que fez o tal lube: estraçalhou o vestido da negrota, que, felizmente, era azul, enquanto ela gritava de desespero. Que a acudissem, pelo amor de Deus. Que a socorresse sua Madrinha, Nossa Senhora da Saúde, que era sua fé! 

“Minha Madrinha!” “Minha Madrinha! Minha Fé! Minha Fé!”

Foi o que salvou Josefina: foi ter gritado pela Senhora da Saúde, da qual o lobisomem, amarelo de todas as doenças e podre de todas as mazelas, tinha mais medo do que do próprio Nosso Senhor.

Aos gritos da negrota, acudiram os homens que estavam à porta da venda. Inclusive, o português que, não acreditando em bruxas, passou a acreditar em lobisomem.

A negra foi encontrada com o vestido azul-celeste em pedaços. Metade do corpo de fora. Os peitos de menina-moça arranhados. Afilhada de Nossa Senhora, só vestia azul. Azul-claro, azul-celeste, azul-marinho, azul-escuro, mas só e sempre azul. 

Nada de encarnado que, para sua mãe, era cor de vestido de mulher da vida. Pois havia então muito quem pensasse ser o vermelho cor do pecado; e como tal era evitado pelas mães nos vestidos das filhas virgens ou moças.  

Isto também ouvi de Josefina Minha-Fé — que desde a aventura com o lobisomem  passou a ser conhecida por Minha-Fé; e, anos depois, de barcaceiros, pescadores e jangadeiros de litoral de Pernambuco e de Alagoas, cujas crenças procurei estudar. 

Explica essa crença dos homens do mar (crença de origem talvez moura e talvez trazida ao Brasil por algarvios) — a de ser o azul cor agradável a Nossa Senhora e o encarnado, desagradável —, tanta barcaça pintada de azul ou de verde: homenagem à Virgem e resguardo dos homens não contra os lobisomens amarelentos, que estes são todos da terra e não vão às águas de mar, mas contra as sereias que povoam os mares e temem, segundo alguns, o azul, mas não o encarnado. Não o vermelho. Nem mesmo o amarelo.

Mas esta não é a história inteira. Falta ainda um trecho que para Josefina era o ponto mais importante da sua aventura. E é que, chamada sua mãe, dias depois, para encarregar-se de lavar a roupa de certo doutor de sobrado do Poço da Panela, um bacharelzinho pálido e de pince-nez que não gostava de José Mariano e dizia ter mais raiva de negro do que de macaco, descobriu que no meio da roupa suja do branco estava mais de um pedaço do vestidinho azul da filha. 

E reparando bem, viu a preta velha que o doutor branco, em vez de branco ou apenas pálido, era homem quase sem cor: de um amarelo de cadáver velho. Soube depois que vivia tomando remédio — ferro e mais ferro — para ganhar sangue e cor de gente viva. Remédio de botica e remédio do mato, feito por mandingueiro ou caboclo.

Que estava morando no Poço justamente por isto: para tratar-se com os banhos que tinham fama de milagrosos e atraíam romeiros de quase Pernambuco todo para a sombra de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela.

Não sei se o doutor branco conseguiu curar-se de seu mal; se Nossa Senhora da Saúde foi boa ou clemente para o bacharel infeliz; se acabou com o seu fado de toda sexta-feira “virar lobisomem” e correr atrás de mulheres, de meninos e até de  homens. Especialmente atrás de mulheres virgens.

O que sei é que para Josefina Minha-Fé não havia dúvida. O lobisomem que lhe atacara o corpo virgem de afilhada de Nossa Senhora fora o tal doutor de cartola e croisé. Cartola, croisé, pince-nez e rubi no dedo magro. O lobisomem era ele: pecador terrível  que, para cumprir seu fado, tomava toda noite de sexta-feira aquela forma hedionda e saía a correr pelos matos, pelos caminhos desertos, pelos ermos, estraçalhando quem encontrasse sozinho. Principalmente mulher e menino. Mulher virgem. Menina-moça como Minha-Fé. 

E tanto como o Cabeleira (que talvez tenha sido também lobisomem e não simples bandido), o Cabeleira do

Fecha porta, Rosa
Cabeleira eh-vem  
Pegando mulheres  
Meninos também,  
      

o bacharel pálido do Poço tornou-se, por algum tempo, o terror da gente pobre, moradora nos mucambos daquelas margens do Capibaribe, de águas protegidas por Nossa Senhora da Saúde e por algum tempo alegradas pela presença de outro bacharel, este muito amigo do povo miúdo: José Mariano.
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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

O Boca-de-Ouro

Rua do Bom Jesus, do Recife das assombrações: cuidado com o Boca-de-Ouro.

Hesito em começar esta relação de casos de visagens recifenses com a história do Boca-de-Ouro por saber que noutras cidades do Brasil também tem aparecido essa figura meio de diabo, meio de gente, pavor dos tresnoitados. Um amigo, porém, me adverte de que parece haver uma migração de fantasmas do Norte para o Sul do país como houve outrora de bacharéis e de negros escravos, e há, hoje, de trabalhadores.

Boca-de-Ouro talvez seja um desses duendes ou fantasmas aciganados: espécie de cearense que quando menos se espera surge numa cidade do interior de Goiás ou do Rio Grande do Sul. O contrário do fantasma inglês, tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando os reconstrutores de casas velhas alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só se deixa ver pela metade: não toma conhecimento da reforma da casa.

Acontece que um pacato recifense dos princípios deste século decidiu uma noite, talvez sob a influência das trovas, então na moda e, na verdade, encantadoras, de Adelmar Tavares, ser um tanto boêmio e até bruneano; e sair liricamente ruas afora, e pela beira dos cais do Capibaribe, ora recitando baixinho versos à “vovó Lua” ou à “dona Lua”, ora assobiando alto trechos da Viúva alegre, ouvida cantar por italiana opulentamente gorda no Santa Isabel; e sempre gozando o silêncio da meia-noite recifense, o ar bom da madrugada que dá, na verdade, ao Recife seu melhor encanto. 

Quem sabe se não encontraria alguma mulher bonita? Alguma pálida Iaiá de cabelos e desejos soltos? Ou mesmo alguma moura, encantada na figura de uma encantadora mulata de rosa ou flor cheirosa no cabelo?

Mas quem de repente encontrou foi um tipo acapadoçado, chapéu caído sobre os olhos, panamá desabado sobre o rosto e que lhe foi logo pedindo fogo.

O aprendiz de boêmio não gostou da figura do malandro.  Nem de sua cor que à luz de um lampião distante parecia roxa: um roxo de pessoa inchada. Atrapalhou-se. Não tinha ponta de cigarro ou charuto aceso a oferecer ao estranho. Talvez tivesse fósforo. Procurou em vão uma caixa nos bolsos das calças cheios de papéis amarfanhados: rascunhos de trovas e sonetos.
 
E ia remexer outros bolsos quando o tipo acapadoçado encheu de repente, e sem quê nem para quê, o silêncio da noite alta, o ar puro da madrugada recifense, de uma medonha gargalhada; e deixou ver um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por uma dentadura toda de ouro, encravada em bocaça que fedia como latrina de cortiço.

Era o Boca-de-Ouro.

Correu o infeliz aprendiz de boêmio com toda a força de suas pernas azeitadas pelo suor do medo. Correu como um desesperado.  Seus passos pareciam de ladrão. Ou de assassino que tivesse acabado de matar a noiva.  Até que, cansado, foi  afrouxando a carreira. Afrouxou-a até parar. 

Mas quando ia parando, quem havia de lhe surgir de novo com nova gargalhada de demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes escandalosamente de ouro? Boca-de-Ouro. O fantasma roxo e amarelo.

O pacato recifense então não resistiu. Espapaçou-se no chão como se tivesse dado nele o tangolomango. Caiu zonzo, desmaiado.

Na calçada. E ali ficou como um trapo, até ser socorrido pelo preto do leite que, madrugador, foi o primeiro a ouvir a história: e, falador como ninguém, o primeiro a espalhá-la.

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Fonte: Assombrações do Recife Velho - Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro:  Record, 1987.

A lenda da Procissão das Almas


A lenda conta que existia uma senhora chamada Maricota de Todos os Santos, muito maledicente, que vivia na janela de sua casa vigiando a vida alheia. Depois de aprontar muita confusão no bairro São Gonçalo, mudou-se para a Rua Dom Silvério, e receosa de ser novamente expulsa, só vigiava a rua depois que o sino da Casa da Câmara tocava às 21h, mandando que todos se recolhessem em suas casas.

Com calos nos cotovelos de ficar debruçada na janela, ficava ela observando quem ia e quem vinha. Até que em uma sexta-feira santa, ela que sempre foi muito religiosa, observou se aproximar uma procissão e ficou confusa de como poderia ela não estar sabendo. Resolveu então ficar na janela pra ver quem estava na tal procissão. Até que conseguiu ver de perto: eles usavam roupas pretas, todos com uma vela na mão, e o primeiro da fila segurava uma enorme cruz preta.

Além dos trajes, ela escutava um som pausado de bumbo, bem fúnebre, uma matraca, gemidos, gritos lancinantes e os cantos: “Reza mais, reza mais, reza mais uma oração; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem confissão” e “Reza mais, reza mais, reza novena e trezena; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem cumprir pena”.

Um pouco assustada com a estranheza da procissão, ela continuou na janela a observar, até que um dos participantes saiu de onde estava e foi em sua direção com a vela acesa, pedindo-lhe que guardasse a vela que ele logo voltaria para buscar: “Mulher, guarde sua língua, a noite é dos mortos. Guarde esta vela pra mim, eu volto pra buscar” e se juntou aos outros.

Quando a procissão voltou, o participante pede a vela e fala com ela: “Mulher, amanhã estaremos juntos em outras paragens, mas guarde sua língua, a noite é dos mortos”, e ao entrar em seu quarto, no lugar da vela guardada, ela se depara com um pedaço de um osso da perna de um defunto, passa mal e morre logo depois mesmo sendo socorrida pelo padre e por um médico.

O cortejo da Procissão das Almas em Mariana-MG, única no Brasil, acontece depois da meia noite para evitar confusões com a Igreja. As roupas brancas são por que quando a procissão foi reativada, há uns 25 anos atrás, a luz era fraca e o farol dos carros não era lá aquelas coisas. Desde 1850 ela acontece na noite de sexta da paixão, mais exatamente às 00h05 do sábado de aleluia, pelas ruas do centro histórico da cidade.

Fonte: Na ponta do lápis,

O ladrão de cadáveres


Todas as noites do ano, nós quatro nos reuníamos na saleta do George em Debenham — o agente funerário, o estalajadeiro, Fettes e eu. Às vezes havia mais gente; mas infalivelmente, quer chovesse, nevasse ou geasse, lá estávamos os quatro, cada um instalado em sua poltrona privativa. Fettes era um velho bêbado escocês, obviamente um homem instruído, e de alguns recursos, pois vivia na ociosidade.

Chegara a Debenham anos antes, ainda jovem, e graças ao mero passar do tempo acabara sendo adotado como cidadão. Sua capa de chamalote azul era uma antiguidade local, como a flechado campanário da igreja. Seu lugar na saleta do George, sua ausência da igreja, seus vícios velhos, libertinos e indecorosos eram todos considerados perfeitamente naturais em Debenham. Tinha algumas vagas opiniões radicais e algumas heresias fugazes, que de vez em quando expunha e enfatizava combatidas vacilantes sobre a mesa. Bebia rum — normalmente cinco copos toda noite — e passava a maior parte de suas visitas ao George sentado, o copo na mão direita, num estado de sombria saturação alcoólica.

Nós o chamávamos de doutor, porque supostamente tinha algum conhecimento especial de medicina, e constava que, num aperto, havia reparado um deslocamento ou corrigido uma luxação; além desses detalhes superficiais, porém, nada sabíamos sobre seu caráter e antecedentes.

Numa noite escura de inverno — soaram nove horas pouco tempo antes que o hospedeiro se juntasse a nós — havia um homem doente no George, um importante proprietário das vizinhanças, subitamente derrubado por uma apoplexia quando a caminho do Parlamento; e um telegrama fora enviado ao médico londrino ainda mais importante do que o homem importante, chamando-o à cabeceira deste. Era a primeira vez que semelhante coisa acontecia em Debenham, porque a estrada de ferro fora inaugurada havia pouco, e estávamos todos devidamente impressionados com a ocorrência.

 — Ele veio — disse o hospedeiro, depois de encher e acender seu cachimbo.

 — Ele? — perguntei. — Quem?... não o médico.

 — O próprio.

 — Como se chama?

 — Dr. Macfarlane. Fettes estava adiantado no terceiro copo; estupidamente atordoado, ora cabeceava, ora olhava estupefato a sua volta, mas a esta última palavra pareceu acordar e repetiu o nome — Macfarlane — duas vezes, de maneira bastante calma na primeira, mas com súbita emoção na segunda.

 — Isso mesmo — disse o estalajadeiro —, esse é o nome dele, doutor Wolfe Macfarlane.

Fettes ficou sóbrio imediatamente; seus olhos despertaram, sua voz tornou-se clara, alta e firme, sua linguagem enérgica e séria. Ficamos todos espantados com a transformação, como se um homem tivesse se levantado dos mortos.

 — Desculpem-me — disse. — Não estava prestando muita atenção à conversa dos senhores. Quem é esse Wolfe Macfarlane? — E em seguida, depois de ouvir o estalajadeiro:

— Não pode ser não pode ser — acrescentou. — Mesmo assim, gostaria muito de vê-lo face a face.
 — Conhece esse homem, doutor? — perguntou o agente funerário, arfante.

 — Queira Deus, não! — foi a resposta. — No entanto, esse é um nome raro; seria demais haver dois. Diga-me — perguntou ao hospedeiro —, ele é velho?

 — Bem, com certeza não é jovem, e tem cabelo branco; mas parece mais novo que o senhor.

 — É mais velho, contudo, anos mais velho. Mas — com uma batida na mesa — é o rum que o senhor vê no meu rosto... rum e pecado. Esse homem, quem sabe, talvez tenha uma consciência tranqüila e uma boa digestão. Consciência! Ouvindo-me falar, os senhores pensariam que fui um bom e decente cristão, não é? Mas não; nunca fui de cantilenas hipócritas. Voltaire poderia ter pregado moral se tivesse estado no meu lugar; mas o cérebro — com um piparote na cabeça calva —, o cérebro estava claro e ativo, eu vi e não fiz nenhuma dedução.

 — Se o senhor conhece esse médico — ousei observar, após uma pausa um tanto desagradável —, tenho a impressão de que não partilha da boa opinião que o estalajadeiro tem dele.

Fettes não me deu atenção.

 — Sim — disse, com súbita decisão. — Tenho de vê-lo face a face. Fez-se outra pausa; em seguida uma porta foi fechada de maneira bastante brusca no primeiro andar e ouviram-se passos na escada.

 — É o médico — exclamou o hospedeiro. — Olhe bem, e poderá avistá-lo.

Só dois passos separavam a saleta da porta da velha estalagem George; a larga escada de carvalho terminava quase na rua; havia espaço para um tapete turco e mais nada entre a soleira e os últimos degraus; mas esse pequeno espaço era intensamente iluminado toda noite, não só pela lâmpada sobre a escada e a grande lâmpada que iluminava a tabuleta por baixo, mas pela cálida radiação da janela do bar. Com isso o George anunciava-se feericamente aos que passavam pela rua fria. Fettes caminhou com passos firmes até lá, e nós, parados mais atrás, contemplamos os dois homens, como um deles o expressara, face a face.

O dr. Macfarlane era atento e vigoroso. O cabelo branco realçava-lhe o semblante pálido e plácido, embora enérgico. Estava ricamente vestido com a mais fina casimira e o mais branco linho, e exibia uma magnífica corrente de relógio de ouro, abotoaduras e óculos do mesmo metal precioso. Usava uma gravata branca pontilhada de lilás, de dobras largas, e carregava no braço um confortável sobretudo de pele. Não havia dúvida de que fazia jus a sua idade, exalando riqueza e consideração; e o beberrão da nossa saleta — calvo, sujo e espinhento, metido na sua velha capa de chamalote — fazia um chocante contraste com ele ao confrontá-lo ao pé da escada.

 — Macfarlane! — chamou, um pouco alto demais, mais parecendo um arauto que um amigo. O importante médico estancou abruptamente no quarto degrau, como se a familiaridade do chamado surpreendesse e de certo modo escandalizasse sua dignidade.

 — Toddy Macfarlane! — repetiu Fettes.

O homem de Londres quase cambaleou. Relanceou o homem diante de si por uma fração de segundo, olhou para trás com certo alarme e então, num sussurro sobressaltado:

 — Fettes! Você!

 — Eu mesmo — disse o outro. — Pensou que eu estava morto também? Não nos livramos assim tão facilmente de um conhecido.

 — Psiu, psiu! — exclamou o médico. — Silêncio! Este encontro é tão inesperado... vejo que está nervoso. Tive dificuldade em reconhecê-lo a princípio, confesso; mas estou radiante... radiante com esta oportunidade. Por ora, terá de ser como vai e até logo, porque meu fiacre me espera e não posso perder o trem; mas você... deixe-me ver... sim, você me dará seu endereço, e logo, logo terá notícias minhas. Precisamos fazer alguma coisa por você. Fettes. Algo me diz que está na penúria; mas cuidaremos disso, em memória dos velhos e bons tempos, como costumávamos cantar nas ceias.

 — Dinheiro! — exclamou Fettes. — Dinheiro vindo de você! O dinheiro que recebi de você continua lá onde o joguei, na chuva.

O dr. Macfarlane falara com certo grau de superioridade e segurança, mas a energia incomum dessa recusa lançou-o de volta a sua confusão inicial. Um olhar vil, horrível, perpassou por sua fisionomia quase venerável.

 — Seja como quiser, meu caro; a última coisa que desejo é ofendê-lo. Não quero impor nada a ninguém. Mas vou lhe deixar meu endereço...

 — Não quero seu endereço... Não quero saber que teto o abriga — interrompeu o outro. — Ouvi seu nome; temi que fosse você; desejei saber se, afinal de contas, existia um Deus; agora sei que não. Suma daqui!

Como continuava plantado no meio do tapete, entre a escada e o vão da porta, o importante médico de Londres, para fugir, seria obrigado a rodeá-lo. Era patente que hesitava à idéia dessa humilhação. Por mais lívido que estivesse, havia um brilho perigoso em seus óculos; mas, enquanto continuava indeciso, percebeu que o cocheiro de seu fiacre espiava da rua aquela cena inusitada, ao mesmo tempo que vislumbrou nosso grupinho da saleta, amontoado junto ao canto do bar. A presença de tantas testemunhas fez com que decidisse fugir imediatamente. Agachou-se, roçando no lambri, e investiu como uma serpente rumo à porta. Sua mortificação, porém, não estava de todo terminada, pois, quando passava. Fettes agarrou-o pelo braço e, num sussurro, mas ainda assim discerníveis, estas palavras foram pronunciadas:

 — Você o viu de novo?

O rico e importante médico de Londres soltou um grito agudo, estrangulado; jogou o autor da pergunta do outro lado do espaço vazio e, com as mãos na cabeça, escapou porta afora como um ladrão pego em flagrante. Antes que tivesse ocorrido a algum de nós fazer um movimento, o fiacre já partira com estrépito para a estação. A cena chegara ao fim, como um sonho, mas o sonho deixara provas e rastros de sua passagem. No dia seguinte a criada encontrou os belos óculos de ouro quebrados na soleira, e naquela mesma noite ficamos todos ali parados sem fôlego, junto à janela do bar, e Fettes ao nosso lado, sóbrio e pálido, com uma expressão resoluta.

 — Valha-nos Deus, sr. Fettes! — disse o dono da estalagem, o primeiro a recobrar seus sentidos costumeiros. — Que pode significar tudo isso? Essas coisas estranhas que estiveram falando?

Fettes virou-se para nós; encarou-nos, um após o outro.

 — Tratem de manter o bico calado — disse. — Esse homem, Macfarlane, é perigoso contrariá-lo; os que já fizeram isso se arrependeram tarde demais.

E em seguida, sem sequer terminar seu terceiro copo, muito menos esperar os outros dois, deu-nos adeus e, passando pela lâmpada do hotel, mergulhou na noite negra. Voltamos os três para os nossos lugares na saleta, com o grande fogo vermelho e quatro velas claras; e, à medida que recapitulávamos o que se passara, o primeiro calafrio de nossa surpresa não demorou a se transformar num ardor de curiosidade. Ficamos ali até muito tarde; foi a sessão mais longa que jamais tive no velho George.

Antes de nos separarmos, cada homem formulara sua teoria, que estava decidido a provar; e nenhum de nós tinha qualquer negócio mais premente neste mundo que rastrear o passado de nosso infeliz companheiro e surpreender o segredo que ele partilhava com o importante médico de Londres. Não é para me gabar, mas acredito que me saí melhor em farejar uma história que meus dois companheiros do George; e talvez não haja mais nenhum homem vivo que possa lhes narrar os eventos escabrosos e antinaturais que se seguem.

Na juventude, Fettes estudou medicina nas escolas de Edimburgo. Tinha certo talento, o talento que apreende rapidamente o que ouve e logo o troca em miúdos para si mesmo. Estudava pouco em casa; mas era cortês, atento e inteligente na presença dos mestres. Eles logo o distinguiram como um rapaz que ouvia com atenção e tinha boa memória; ademais, por estranho que isso me tenha parecido quando o ouvi pela primeira vez, naqueles dias ele era bem-apessoado, de aparência agradável.

Havia, nessa época, certo professor de um curso extramuros de anatomia, que designarei aqui pela letra K... Seu nome se tornaria mais tarde demasiadamente conhecido. O homem que o usava caminhava sorrateiro pelas ruas de Edimburgo, disfarçado, enquanto a multidão que aplaudia a execução de Burke (1) pedia em altos brados o sangue de seu empregador. Mas nessa época o sr. K... estava no auge da moda; gozava de uma popularidade de vida em parte a seu talento e perícia e em parte à incapacidade de seu rival, o professor da universidade. Os estudantes, pelo menos, juravam por seu nome e Fettes acreditou, e fez outros acreditarem, que havia lançado as bases do seu sucesso quando ganhou a boa vontade desse homem meteoricamente famoso.

Além de um mestre consumado, o sr. K... era um bon vivant, gostava tanto de uma alusão maliciosa quanto de uma boa preparação. Em uma e outra coisa Fettes fazia por onde ser notado e, na altura do seu segundo ano no curso, ocupava a posição semi-regular de segundo demonstrador ou subassistente de classe. Nessa condição, os cuidados com o anfiteatro e as preleções recaíam em particular sobre seus ombros. Devia responder pela limpeza do local e o procedimento dos outros estudantes, e era parte de suas obrigações prover, receber e seccionar os vários cadáveres. Era para que pudesse se desincumbir deste último assunto — na época muito delicado — que o sr. K... o mantinha alojado no mesmo beco, de fato no mesmo prédio, em que ficava a sala de dissecação.

Ali, após uma noite de prazeres turbulentos, as mãos ainda vacilando, a vista ainda embaçada e confusa, ele era tirado da cama, nas horas escuras que precedem a aurora no inverno, pelo chamado dos sujos e temerários traficantes que abasteciam a mesa. Abria a porta para esses homens, mais tarde famigerados em todo o país; ajudava-os com sua trágica carga, pagava-lhes seu sórdido preço e ficava a sós, depois que partiam, com as inamistosas relíquias da raça humana.

Desse cenário, voltava para mais uma ou duas horas de cochilo, a fim de reparar os abusos da noite e revigorar-se para os trabalhos do dia. Poucos rapazes teriam sido mais insensíveis às impressões de uma vida passada assim, em meio às insígnias da mortalidade. Trazia a mente fechada para todas as considerações gerais. Era incapaz de se interessar pelo destino e a sorte de outrem, escravo de seus próprios desejos e de suas reles ambições. Fundamentalmente frio, leviano e egoísta, possuía aquela pequena dose de prudência, erroneamente chamada moralidade, que afasta um homem da embriaguez inconveniente ou do furto passível de punição. Além disso, ambicionava certo grau de consideração de seus professores e colegas, e não tinha desejo algum de fracassar manifestamente nas esferas externas da vida. Esmerava-se, portanto, em obter alguma distinção em seus estudos e, dia após dia, prestava serviços aparentemente impecáveis ao seu patrão, o sr. K...

Por seu dia de trabalho, indenizava-se ele mesmo com noites de diversão ruidosa e grosseira; e quando esse equilíbrio era alcançado, o órgão que chamava de sua consciência se dava por satisfeito. A provisão de cadáveres era uma inquietação constante para ele, bem como para seu patrão. Naquela turma numerosa e ativa, a matéria-prima dos anatomistas estava sempre acabando; e o negócio que assim se tornava necessário era não só desagradável em si mesmo como expunha a perigosas conseqüências todos os envolvidos. A política do sr. K... era a de não fazer nenhuma pergunta em suas transações com os fornecedores. "Eles trazem o corpo e nós pagamos o preço", costumava dizer, alongando-se na aliteração — quid pro quo.

E frisava, de maneira um tanto profana, para seus assistentes: "Não façam perguntas, em prol da sua própria consciência." Não se cogitava que os cadáveres fossem fornecidos pelo crime de assassinato. Se essa idéia lhe tivesse sido mencionada em palavras, o professor teria recuado com horror, mas a leviandade com que falava sobre assunto tão grave era, em si mesma, uma ofensa às boas maneiras e uma tentação para os homens com quem lidava. Fettes, por exemplo, observara freqüentemente para si mesmo o singular frescor dos corpos. Muitas vezes impressionara-se com a aparência envergonhada, abominável, dos bandidos que o acordavam antes do alvorecer; e juntando claramente uma coisa a outra, com seus botões, talvez atribuísse um sentido demasiado imoral e categórico aos conselhos negligentes do patrão. Compreendia, em suma, que seu dever consistia em três coisas: receber o que lhe era levado, pagar o preço e desviar os olhos de qualquer indício de crime.

Numa manhã de novembro essa política de silêncio foi submetida a uma dura prova. Ele passara a noite acordado com uma dor de dente lancinante, andando de um lado para outro em seu quarto como uma fera enjaulada ou lançando-se em fúria na cama; caíra por fim naquela modorra profunda, desconfortável, que tantas vezes segue uma noite de dor, quando foi despertado pela terceira ou quarta repetição irritada do sinal combinado. Havia um luar tênue e claro; fazia um frio cortante, ventava e geava; a cidade ainda não acordara, mas uma agitação indefinível já prenunciava a algazarra e a atividade do dia. Os ladrões de túmulo haviam chegado mais tarde que de costume e pareciam mais ansiosos para ir embora que de costume. Fettes, zonzo de sono, iluminou a escada para que subissem. Ouviu os resmungos de suas vozes irlandesas através de um sonho; e, enquanto eles retiravam o saco de sua triste mercadoria, recostou o ombro na parede, dormitando; teve de se sacudir para ir procurar o dinheiro dos homens. Ao fazê-lo, bateu os olhos na face morta. Teve um sobressalto; deu dois passos em direção a ela com a vela erguida.

 — Santo Deus! — exclamou. — É Jane Galbraith! — Os homens não responderam nada, mas se arrastaram para mais perto da porta.

— Eu a conheço, eu lhes garanto — continuou. — Estava cheia de vida ontem. É impossível que tenha morrido; é impossível que vocês tenham conseguido este corpo como convém.

 — Com certeza, senhor, está completamente enganado — disse um dos homens.

Mas o outro olhou Fettes nos olhos, sombriamente, e pediu o dinheiro logo. Era impossível não compreender a ameaça ou exagerar o perigo. O rapaz sentiu o coração na boca. Gaguejou umas desculpas, contou a soma e abriu a porta para seus odiosos visitantes. Mal eles haviam saído, apressou-se em confirmar suas dúvidas. Por uma dúzia de sinais inquestionáveis, identificou a moça com quem fizera um gracejo na véspera. Viu em seu corpo, com horror, marcas que podiam por certo indicar violência. Tomado de pânico, refugiou-se em seu quarto. Ali refletiu longamente sobre a descoberta que fizera; considerou com sobriedade o significado das instruções do sr. K... e o perigo que correria se interferisse num negócio tão sério; por fim, em opressiva perplexidade, decidiu esperar o conselho de seu superior imediato, o assistente de classe.

Este era Wolfe Macfarlane, um jovem médico muito apreciado entre todos os estudantes inconseqüentes, um sujeito inteligente, dissipado e inescrupuloso ao extremo. Viajara e estudara no exterior. Tinha maneiras agradáveis e algo petulantes. Era uma autoridade em teatro, hábil sobre o gelo ou no campo de golfe, com os patins ou o taco; vestia-se com requintada ousadia e, para dar o toque final a sua glória, tinha um cabriolé e um vigoroso cavalo trotador. Suas relações com Fettes eram de intimidade; de fato, as posições relativas de ambos requeriam alguma convivência; e, quando havia escassez de cadáveres, a dupla viajava até bem longe no cabriolé de Macfarlane, visitava e profanava um cemitério isolado e voltava com seu butim, antes da aurora, para a porta da sala de dissecação. Naquela manhã particular. Macfarlane chegou um pouco mais cedo que de costume. Fettes ouviu-o e foi ao encontro dele na escada, contou-lhe sua história e mostrou-lhe a causa de seu alarme. Macfarlane examinou as marcas no corpo.

 — De fato — disse, acenando a cabeça — parece suspeito.

 — Bem, e que devo fazer? — perguntou Fettes.

 — Fazer? — repetiu o outro. — Você quer fazer alguma coisa? Eu diria que quanto menos fizer, melhor.

 — Mais alguém poderia reconhecê-la — objetou Fettes. — Era tão conhecida quanto o Castle Rock.

 — Esperemos que não — disse Macfarlane. — E se alguém a reconhecer...bem, você não fez nada, e fim de conversa. O fato é que isso está durando tempo demais. Agite a lama, e vai meter K... na mais terrível enrascada; você mesmo vai se complicar. E eu também, se isso acontecer. Gostaria de saber com que cara apareceríamos, ou que diabo teríamos a dizer em nosso favor em algum banco de testemunhas. A meu ver, você sabe, só há uma coisa certa... que, praticamente falando, todos os nossos cadáveres foram assassinados.

 — Macfarlane! — exclamou Fettes.

 — Ora, ora! — escarneceu o outro. — Como se você mesmo não tivesse desconfiado!

 — Desconfiar é uma coisa...

 — E provar, outra. É verdade, eu sei, e lamento tanto quanto você que isso tenha chegado a este ponto — cutucou o corpo com a bengala. — A melhor coisa para mim agora é não o reconhecer, e — acrescentou serenamente — não reconheço. Se você quiser, que o faça. Não é uma ordem, mas acho que um homem do mundo faria como eu; e posso acrescentar que, a meu ver, é isso que K... esperaria de nós. A questão é: por que ele nos escolheu, nós dois, como seus assistentes? E eu respondo: porque não queria tagarelas.

Esse era, entre todos, o tom ideal para impressionar a mente de um rapaz como Fettes. Ele concordou em imitar Macfarlane. O corpo da pobre moça foi devidamente dissecado, sem que ninguém notasse alguma coisa ou parecesse reconhecê-la. Uma tarde, terminado o dia de trabalho. Fettes entrou numa taberna em voga e encontrou Macfarlane com um estranho. Este era um homem pequeno, muito pálido e moreno, olhos cor de carvão. O talhe de seus traços fazia uma promessa de intelecto e refinamento que suas maneiras não cumpriam, pois num conhecimento mais próximo mostrava-se grosseiro, vulgar e tolo. Exercia, contudo, notável controle sobre Macfarlane; dava ordens como um paxá; inflamava-se à menor discussão ou atraso e comentava rudemente o servilismo com que era obedecido. Essa desagradabilíssima pessoa teve uma simpatia imediata por Fettes, cumulou-o de drinques e homenageou-o com confidências inusitadas sobre sua carreira passada. Se a décima parte do que confessou fosse verdade, seria um patife da pior espécie; e a vaidade do rapaz ficou lisonjeada pela atenção de um homem tão experiente.

 — Sou um sujeito bem mau — observou o estranho —, mas Macfarlane é pior... Eu o chamo de Toddy Macfarlane. Toddy, peça mais um copo para seu amigo. Ou podia ser, Toddy, corra e feche a porta. Toddy me odeia — ele repetia. — Ah, sim. Toddy, você me odeia!

 — Não me chame desse maldito nome — rosnava Macfarlane.

 — Vejam só! Você já viu os atiradores de facas? Ele gostaria de fazer aquilo no meu corpo inteiro — comentou o estranho.

 — Nós médicos temos um sistema melhor — disse Fettes. — Quando não gostamos de um amigo morto, nós o dissecamos.

Macfarlane levantou os olhos subitamente, como se a piada o surpreendesse.

A tarde transcorreu. Gray, pois este era o nome do estranho, convidou Fettes para jantar com eles e pediu um banquete tão suntuoso que lançou a taberna em comoção; quando tudo estava terminado, ordenou a Macfarlane que pagasse a conta. Era muito tarde quando se separaram; o tal Gray estava absolutamente bêbado. Macfarlane, a quem a fúria deixara sóbrio, ruminava o dinheiro que tinha sido forçado a esbanjar e os desaforos que tinha sido obrigado a engolir. Fettes, com várias bebidas dançando na cabeça, voltou para casa com passos sinuosos e a mente inteiramente embotada. No dia seguinte Macfarlane faltou à aula e Fettes riu consigo mesmo, imaginando-o ainda a acompanhar o intolerável Gray de taberna em taberna. Assim que a hora da liberdade soou, passou de lugar em lugar em busca dos companheiros da noite anterior. Não os encontrando em parte alguma, voltou cedo para seus aposentos, meteu-se logo na cama e dormiu o sono dos justos.

Às quatro horas da manhã foi acordado pelo bem conhecido sinal. Ao descer para abrir a porta, ficou pasmo ao dar com Macfarlane e seu cabriolé e, no cabriolé, um daqueles embrulhos horripilantes que lhe eram tão familiares.

 — Quê? — exclamou. — Foi sozinho? Como se arranjou?

Mas Macfarlane calou-o asperamente, pedindo que tratasse do seu serviço. Depois que levaram o corpo para cima e o depositaram sobre a mesa, Macfarlane a princípio fez menção de ir embora. Depois parou e pareceu hesitar em seguida:

 — É melhor você dar uma olhada no rosto — disse, com certo constrangimento. — É melhor — repetiu, enquanto Fettes apenas o fitava, espantado.

 — Mas onde e como você o conseguiu? — insistiu o outro.

— Olhe o rosto — foi a única resposta.

Fettes estava atordoado; estranhas dúvidas o assaltavam. Seus olhos iam e voltavam entre o jovem médico e o corpo. Por fim, num impulso, fez o que ele lhe pedia. Havia quase esperado a visão com que topou, mas apesar disso o choque foi cruel. Ver, fixado na rigidez da morte e nu sobre aquele leito grosseiro de aniagem, o homem que deixara vestido e empanturrado de comida e pecado na porta de uma taberna, despertou, mesmo no estouvado Fettes, alguns dos temores da consciência. Foi um cras tibi que ecoou em sua alma, que duas pessoas que conhecera tivessem vindo se deitar naquelas mesas de gelo. Mas esses foram apenas pensamentos secundários. Sua primeira preocupação dizia respeito a Wolfe. Despreparado para tão enorme desafio, não sabia como encarar o companheiro. Não ousava olhá-lo nos olhos, e as palavras, até a voz, lhe faltavam. Foi o próprio Macfarlane que tomou a iniciativa. Tranqüilo, aproximou-se por trás e pôs a mão suavemente, mas com firmeza, no ombro do outro.

 — Richardson — disse —, pode ficar com a cabeça. Richardson era um estudante que estava ansioso havia muito tempo por dissecar essa parte do corpo humano. Não houve resposta, e o assassino prosseguiu:

 — Falando em negócios, você deve me pagar; suas contas precisam conferir, não é?

Fettes encontrou uma voz, o espectro da sua:

 — Pagar-lhe! — exclamou. — Pagar-lhe por isso?

 — Ora, isso mesmo, é claro que sim. Sem dúvida alguma e por todas as razões, você deve me pagar — replicou o outro. — Não me atrevo a entregá-lo de graça, você não se atreve a recebê-lo de graça; isso comprometeria a nós dois. É mais um caso como o de Jane Galbraith. Quanto mais erradas estiverem as coisas, mais devemos agir como se estivessem certas. Onde o velho K... guarda seu dinheiro?

 — Ali — respondeu Fettes, com voz rouca, apontando para um armário no canto.

 — Então dê-me a chave — disse o outro, estendendo calmamente a mão.

Depois de um instante de hesitação, a sorte foi lançada. Macfarlane não pôde reprimir um espasmo nervoso, a marca infinitesimal de um imenso alívio, ao sentir a chave entre os dedos. Abriu o armário, tirou a pena, a tinta e o livro que estavam num compartimento e separou do dinheiro guardado numa gaveta a soma adequada para a ocasião.

 — Agora, veja bem — disse —, o pagamento foi feito... a primeira prova de sua boa-fé; o primeiro passo para sua segurança. Agora você tem de confirmá-lo com um segundo passo. Registre o pagamento no seu livro, e depois, no que lhe diz respeito, você pode arrostar o diabo.

Fettes refletiu alguns segundos, em agonia; mas, ponderando seus terrores, foi o mais imediato que triunfou. Qualquer dificuldade futura parecia quase bem-vinda se pudesse evitar um desentendimento com Macfarlane naquele instante. Pousou a vela que estivera carregando todo esse tempo e, com o pulso firme, escreveu a data, a natureza e o valor da transação.

 — E agora — disse Macfarlane — é mais do que justo que você embolse o lucro. Já ganhei a minha parte. Aliás, quando um homem do mundo tem um pouco de sorte, alguns xelins extras no bolso... Estou envergonhado de falar disso, mas há uma regra de conduta nesse caso. Nada de festejos, nada de comprar livros texto caros, de saldar velhas dívidas; não empreste, peça emprestado.

 — Macfarlane — começou Fettes, ainda um pouco rouco —, pus meu pescoço na corda para lhe fazer um favor.

— Para me fazer um favor? — exclamou Wolfe. — Ora, convenhamos! Até onde posso ver, fez exatamente o que tinha de fazer em defesa própria. Suponha que eu me meta em dificuldades, como ficaria você? Este segundo probleminha decorre claramente do primeiro. O sr. Gray e a continuação da srta. Galbraith. Você não pode começar e depois parar. Se começa, tem de continuar começando; esta é a verdade. Não há descanso para os maus.

Uma horrível sensação de estar perdido nas trevas e traído pelo destino apossou-se da alma do infeliz estudante.

 — Meu Deus! — exclamou. — Mas que foi que eu fiz? E quando foi que comecei? Tornar-me assistente de classe... mas que mal havia nisso? Service queria essa função; Service poderia tê-la obtido. Teria ele chegado onde eu estou agora?

 — Mas que menino você ë, meu caro! — disse Macfarlane. — Que mal lhe aconteceu? Que mal pode lhe acontecer se ficar de bico calado? Ora, rapaz, sabe o que é a vida? Estamos divididos em dois bandos... os leões e os cordeiros. Se você for um cordeiro, acabará deitado sobre estas mesas como Gray ou Jane Galbraith; se for um leão, viverá e conduzirá um cavalo como eu, como K.... como todo mundo que tem alguma sagacidade ou coragem. Você vacilou no início. Mas olhe para K...! Meu caro, você ë inteligente, tem garra. Eu gosto de você e K... gosta de você. Você nasceu para liderar; e ouça, com minha experiência na vida, dou-lhe minha palavra de honra: daqui a três dias você vai rir de todos esses espantalhos como um escolar numa farsa.

Com isso Macfarlane despediu-se e partiu do beco em seu cabriolé para se abrigar antes que chegasse a luz do dia. Fettes foi assim deixado a sós com seus remorsos. Viu o deplorável perigo em que estava envolvido. Viu, com inexprimível aflição, que não havia limite para sua fraqueza, e que, de concessão em concessão, caíra, de árbitro do destino de Macfarlane, em seu cúmplice pago e impotente. Daria um mundo para ter um pouco mais de coragem naquele momento, mas não lhe ocorreu que ainda pudesse ser corajoso. O segredo de Jane Galbraith e o maldito registro no diário lhe selavam a boca. As horas escoaram; a turma começou a chegar; os membros do infeliz Gray foram distribuídos para um e para outro e recebidos sem comentário. Richardson ficou feliz com a cabeça; e antes que a hora da liberdade soasse Fettes estava trêmulo de alegria ao perceber quanto já haviam avançado na direção da segurança. Durante dois dias ele continuou a observar, com alegria crescente, o pavoroso processo de disfarce.

No terceiro dia Macfarlane apareceu. Estivera doente, disse; mas compensou o tempo perdido orientando os estudantes com grande energia. A Richardson, em particular, concedeu auxílios e conselhos dos mais valiosos, e esse aluno, estimulado pelo elogio do demonstrador, ardeu com ambiciosas esperanças e viu a medalha já a seu alcance.

Antes que a semana terminasse, a profecia de Macfarlane se cumprira. Fettes sobrevivera a seus terrores e esquecera a própria indignidade. Começou a se envaidecer de sua coragem, e arrumara a história em sua mente de tal maneira que podia voltar os olhos para aqueles acontecimentos com doentio orgulho. Pouco via seu cúmplice. Encontravam-se, é claro, nas atividades da classe; recebiam juntos ordens do sr. K... De vez em quando trocavam uma ou duas palavras privadamente, e Macfarlane mostrava-se do começo ao fim particularmente afável e jovial. Estava claro, porém, que evitava qualquer referência a seu segredo comum; e mesmo quando Fettes lhe cochichava que havia tomado o lado dos leões e abjurado os cordeiros, apenas o mandava calar com um sinal e um sorriso.

Por fim surgiu uma ocasião que voltou a pôr a dupla numa união mais estreita. O sr. K... estava de novo com falta de cadáveres; os alunos,impacientes, e era parte das pretensões desse professor manter-se sempre bem abastecido. Ao mesmo tempo, chegaram notícias de um enterro no cemitério rústico de Glencorse. O tempo pouco mudara o lugar em questão. Ficava então, como agora, numa encruzilhada, longe de qualquer morada humana, e muito enterrado na folhagem de seis cedros. Os balidos das ovelhas nos morros vizinhos, os regatos dos dois lados, um a cantar alto entre seixos, o outro a gotejar furtivamente de poço em poço, o rebuliço do vento em imensos castanheiros em flor, e uma vez em sete dias a voz do sino e as antigas cantigas do chefe do coro eram os únicos sons que perturbavam o silêncio em torno da igreja rural.

O "homem da ressurreição" — como o ladrão de cadáveres era chamado na época — não seria desencorajado por nenhuma das relíquias da piedade costumeira. Era parte de seu ofício profanar as volutas e as trombetas de velhos túmulos, as trilhas gastas pelos pés dos devotos e enlutados, e as oferendas e inscrições de consternada afeição. Para paragens rústicas, onde o amor ë mais do que comumente tenaz, e onde alguns laços de sangue e amizade unem toda a sociedade de uma paróquia, o ladrão de cadáveres, longe de ser repelido por respeito natural, era atraído pela facilidade e segurança do serviço.

A corpos que haviam sido depositados na terra em alegre expectativa de um despertar muito diferente, sobrevinha aquela ressurreição apressada, aterrorizada, a golpes de pá e picareta, à luz de uma lanterna. O caixão era arrombado, a mortalha rasgada, e os miseráveis restos metidos num saco de aniagem; por fim, depois de sacolejar horas por desvios ermos, eram expostos a indignidades extremas perante uma classe de meninos boquiabertos.

Mais ou menos como dois abutres investem sobre um cordeiro agonizante, Fettes e Macfarlane se lançariam sobre uma sepultura naquele verde e tranqüilo lugar de repouso. A esposa de um granjeiro, uma mulher que vivera sessenta anos e não fora conhecida por coisa alguma senão boa manteiga e uma conversa devota, seria arrancada de sua sepultura à meia-noite e carregada, morta e nua, para aquela cidade distante que só visitara com a roupa de domingo; o lugar junto a sua família ficaria vazio até o dia do juízo; seus membros inocentes, quase veneráveis, seriam expostos à última curiosidade do anatomista.

Os dois partiram no fim de uma tarde, bem abrigados em capas e munidos de uma formidável garrafa. Chovia sem remissão — uma chuva fria, densa, fustigante. Vez por outra soprava um vento, mas aquelas lâminas de água a cair o aquietavam. Apesar da garrafa, foi uma viagem triste e silenciosa até Penicuik, onde passariam parte da noite. Pararam uma vez, para esconder suas ferramentas num arbusto denso, perto do cemitério, e mais uma vez no Fisher's Tryst, para tomar um drinque diante do fogo da cozinha e variar os tragos de uísque com um copo de cerveja. Ao chegarem a seu destino, o cabriolé foi abrigado, o cavalo alimentado e confortado, e os dois jovens médicos sentaram-se numa sala privada para o melhor jantar e o melhor vinho que a casa podia oferecer. As luzes, o fogo, a chuva açoitando a janela, o trabalho frio e absurdo que os esperava contribuíram para que melhor saboreassem a refeição. A cada copo sua efusividade aumentava. Logo Macfarlane entregou um montinho de moedas de ouro ao companheiro.

 — Uma cortesia — disse. — Entre amigos esses pequenos acertos não devem requerer explicação.

Fettes pôs o dinheiro no bolso e aprovou a idéia calorosamente.

 — Você é um filósofo — exclamou. — Eu era um tolo até conhecê-lo.Você e K.... vocês dois vão fazer de mim um homem.

 — Claro que vamos — aplaudiu Macfarlane. — Um homem? Ouça, era preciso ser um homem para me apoiar naquela manhã. Há por aí uns covardes grandalhões, briguentos, de quarenta anos, que teriam ficado nauseados à vista da maldita coisa; mas você, não... você manteve o sangue-frio. Eu bem notei.

— Ora, e por que não? — gabou-se Fettes. — Não era assunto meu. De um lado nada havia a ganhar, a não ser transtorno, e do outro eu podia contar com a sua gratidão, não vê? — E bateu no bolso até as moedas de ouro chiarem.

De certo modo. Macfarlane sentiu uma ponta de alarme a essas palavras desagradáveis. Talvez tenha lamentado ter instruído com tanto sucesso seu jovem companheiro, mas não teve tempo de atalhá-lo, porque o outro continuou a se jactar ruidosamente:

 — O importante é não ter medo. Agora, cá entre nós, não quero ir para a forca... uma questão prática; mas por toda essa lenga lenga hipócrita, Macfarlane, eu nasci com desdém. Inferno. Deus. Demônio, certo, errado, pecado, crime, e toda essa velha galeria de curiosidades... elas podem assustar meninos, mas homens do mundo, como você e eu, desprezam-nas. À memória de Gray!

Estava ficando tarde. O cabriolé, segundo a ordem dada, foi levado até a porta com as duas lanternas rebrilhando, e os rapazes tiveram de pagar sua conta e pegar a estrada. Anunciaram que iriam para Peebles, e seguiram naquela direção até deixar as últimas casas da vila para trás; então, apagando as lanternas, voltaram pelo mesmo caminho e tomaram uma estrada secundária para Glencorse. Não se ouvia um som senão o de sua passagem e o troar incessante e estridente da chuva torrencial. Estava escuro como breu; aqui e ali uma porteira branca ou uma pedra branca num muro os guiavam por um curto espaço através da noite; quase todo o tempo, porém, era num ritmo de caminhada, e quase às apalpadelas, que avançavam através da escuridão ressonante rumo a seu solene e isolado destino. Nas matas que cobriam os terrenos baixos, na vizinhança do cemitério, o último lampejo lhes faltou; tiveram de riscar um fósforo e acender uma das lanternas do cabriolé.

Assim, sob as árvores gotejantes e envoltos por sombras imensas e móveis, chegaram à cena de seus profanos trabalhos. Eram ambos experientes naquele serviço e hábeis com a pá; mal fazia vinte minutos que se aplicavam à tarefa quando foram recompensados por uma batida surda na tampa do caixão. No mesmo instante. Macfarlane arremessou imprudentemente sobre a cabeça uma pedra com que ferira a mão. O túmulo, dentro do qual estavam enfiados agora quase até os ombros, ficava próximo da borda do platô do cemitério; para iluminar seus trabalhos, a lâmpada do cabriolé havia sido apoiada contra uma árvore, bem na beira da ribanceira escarpada que descia para o riacho.

A sorte conduziu a pedra com precisão. Ouviu-se um retinir de vidro quebrado; a noite caiu sobre eles; sons alternadamente surdos e ressonantes anunciaram o ricochetear da lanterna ribanceira abaixo, colidindo com uma árvore aqui e ali. Na descida, deslocou uma ou duas pedras, que despencaram ruidosamente atrás dela nas profundezas do barranco; em seguida o silêncio, como a noite, recobrou seu domínio, e, por mais que apurassem os ouvidos, nada podiam escutar, exceto a chuva, ora marchando ao ritmo do vento, ora caindo com insistência sobre milhas de campo aberto. Estavam tão próximos do término de seu repugnante serviço que julgaram mais sensato completá-lo no escuro.

O caixão foi exumado e arrombado; o corpo, enfiado no saco encharcado e carregado entre um e outro até o cabriolé; um subiu para mantê-lo no lugar enquanto o outro, segurando o cavalo pela boca, seguiu às apalpadelas ao longo de muros e arbustos até chegar à estrada mais larga, perto do Fisher's Tryst. Ali havia uma radiação pálida, difusa, que eles saudaram como a luz do dia; imprimiram um bom ritmo ao cavalo e lá se foram chocalhando alegremente na direção da cidade.

Os dois ficaram molhados até os ossos durante suas operações, e agora,enquanto o cabriolé saltava entre os sulcos profundos, a coisa apoiada entre eles caía ora em cima de um, ora em cima de outro. A cada repetição do horrendo contato os dois o repeliam instintivamente com mais força; e o processo, embora muito natural, começou a enervar os companheiros.

Macfarlane fez uma pilhéria feia sobre a mulher do granjeiro, mas ela lhe saiu oca dos lábios e não teve eco. Sua estranha carga continuava a sacudir-se de um lado para outro; ora a cabeça pousava, como que confiantemente, sobre seus ombros, ora a aniagem ensopada dava-lhes palmadas gélidas no rosto. Uma friagem começou a invadir a alma de Fettes. Ele olhou para a trouxa e teve a impressão de que, de algum modo, estava maior que de início. Por toda a região, e de todas as distâncias, os cães das granjas acompanharam a passagem deles com trágicas ululações, e foi crescendo em sua mente a idéia de que um milagre absurdo se realizara, que alguma mudança inominável ocorrera no corpo morto, e que era de medo de sua carga sacrílega que os cães uivavam.

— Pelo amor de Deus — disse, fazendo um grande esforço para articularas palavras —, pelo amor de Deus, vamos acender alguma luz!

Ao que parece. Macfarlane estava igualmente abalado, pois, embora sem responder, parou o cavalo, passou as rédeas para o companheiro, apeou e pôs-se a acender a lanterna que restava. A essa altura haviam chegado apenas à encruzilhada de Auchendinny. A chuva continuava a cair, como se o dilúvio retornasse, e não foi lá muito fácil acender uma lanterna naquele mundo encharcado e escuro.

Quando finalmente a trêmula chama azul fora transferida para o pavio e começou a se expandir e clarear, irradiando um largo círculo de tênue brilho ao redor do cabriolé, os dois rapazes puderam se ver um ao outro e à coisa que carregavam consigo. A chuva moldara o saco grosseiro aos contornos do corpo; a cabeça se distinguia do tronco, os ombros estavam claramente modelados; algo ao mesmo tempo espectral e humano os impedia de desviar os olhos do seu horripilante companheiro de viagem.

Por algum tempo Macfarlane ficou imóvel, segurando a lâmpada. Um pavor sem nome envolveu o corpo de Fettes, como um lençol molhado, e retesou-lhe a pele branca do rosto; um medo sem sentido, um horror do que não podia ser foi-lhe subindo ao cérebro. Mais um segundo e ele teria falado, mas seu companheiro se antecipou.

 — Isso não é uma mulher — disse, numa voz abafada.

 — Era, quando a pusemos aqui — sussurrou Fettes.

 — Segure aquela lâmpada — disse o outro. — Preciso ver o rosto dela.

Quando Fettes pegou a lâmpada, seu companheiro desatou os nós do saco e pôs a cabeça à mostra. A luz incidiu muito clara, sobre os traços escuros e bem moldados e as faces escanhoadas de um semblante muito conhecido dos dois rapazes, freqüentemente contemplado em sonhos por ambos.

Um grito selvagem ressoou na noite; cada um pulou na estrada do seu lado, a lâmpada caiu, quebrou-se e a luz extinguiu-se; o cavalo, terrificado por essa inusitada comoção, deu um salto e partiu a galope para Edimburgo, levando consigo, como único ocupante do cabriolé, o cadáver do havia muito dissecado Gray.

(Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges)

(1) William Burke (1792-1829), ladrão de túmulos e assassino irlandês. (N.T.)



Fonte: Os melhores contos fantásticos / organizador: Flávio Moreira da Costa – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006.