Arnaldo Viegas cursava o terceiro ano do curso jurídico de São Paulo. Havia seis, porém, que se achava matriculado na Academia. Indolente e de pouca atilação para as ciências, distinguia-se somente entre os companheiros pela sua supina ignorância da ciência jurídica, e pelo atrevimento das suas graçolas para com os lentes, mesmo os mais sisudos e ríspidos.
Se em direito, porém, Arnaldo Viegas, era profano, sabia no entanto
de cor quase todos os poemas de Byron e Musset, cujos livros tinha por
sua Bíblia ou Alcorão, mas sem que fraternizasse espiritualmente com as
grandezas e sublimidades daquelas almas alucinadas pelo Belo e pelo
Amor.
Viegas apreciava-os unicamente por ver que esses grandes poetas, na
extravagância de seus gênios, se compraziam de exaltar o Vício e
deprimir a Virtude. Nisso achava ele desculpa às desordens da sua vida,
desordens baixas, sem intermitências de horas de labor honesto, nem
manifestações fulgurantes de talento.
Viegas era bêbedo como um marinheiro em terra; jogava toda a sorte de
jogos; fazia ostentações em entrar nas mais sórdidas espeluncas; e.
finalmente, era um consumado devasso, mais por perversidade e amor
próprio do que por impulsão do temperamento.
A sua conversa, quando não discorria sobre os paradoxos brilhantes de
Byron e Musset, versava unicamente nas boas peças que pregava aos
burgueses; nos calotes que passava ao alfaiate e ao sapateiro; nas
mulheres casadas que seduzia; nas donzelas que lhe ofereciam a
virgindade.
Embora muito dissoluto, é escusado dizer que a maior parte dessas
façanhas eram puras invenções suas. A pretensão que tinha porém de
fazê-las passar por verídicas, demonstra perfeitamente o depravado fundo
do seu caráter.
Todavia o Viegas figurava como torpe protagonista de algumas aventuras amorosas, e é de uma delas que vamos tratar.
* * *
No tempo de que nos ocupamos, existia na rua de São Bento, em São
Paulo, um velho armarinheiro italiano, Pascoal Landini, que, às suas
funções comerciais de mercador de alfinetes, grampos e agulhas, reunia
as de armador de igrejas, por ocasião de festividades religiosas, e
fabricante de caixões e mortalhas para defuntos.
Pascoal Landini era um velhinho magro, baixo, de barba muito alva e
pontiaguda, e sempre o viam na sua pequena loja toucado com um barrete
de veludo azul com borla preta, e óculos de aro de tartaruga,
perfeitamente redondos e grandes. Contudo, o que mais chamava a atenção,
na lojinha da rua de São Bento, não era o seu proprietário, nem os
acessórios do seu vestuário, e sim uma criatura de beleza incomparável e
suavíssima, Maria Annunzziata, a filha do velho Pascoal, sempre a
costurar, e sentada ao fundo da loja.
Toda a estudantada desse tempo – calouros e veteranos – conhecia a
loja do Pascoal por causa da bela costureira; e, pelo interesse de lhe
lançar uma olhadela amorosa, aliás nunca correspondida, iam
freqüentemente ao negócio de Pascoal abastecer-se de penas, lápis, papel
e tinta. Pelas “repúblicas” falava-se muito a miúdo na formosura de
Annunzziata, e muito estudante fechava às vezes aborrecido o
Digesto ou o
Corpus Juri, para abrir a
Arte de metrificação de Castilho, e fabricar versos em sua honra.
Todavia até aquela data nenhum se havia lambido com um seu sorriso.
Annunzziata parecia insensível aos olhares de fogo que a trêfega
mocidade acadêmica lhe lançava, ao dirigir-se à Escola, e até aos
sonetos que os mais brejeiros lhe atiravam em papel dobrado em laçarote,
aproveitando descuidos do velho Landini.
Ora, aconteceu um dia morrer um estudante do segundo ano de direito, e
tendo os rapazes resolvido fazer-lhe o enterro, por ser o colega
paupérrimo, comissionaram Arnaldo Viegas para tratar da encomenda do
ataúde e da mortalha.
Arnaldo dirigiu-se à casa do velho Pascoal para se desempenhar do seu
fúnebre encargo, e depois de lançar uma olhadela de fogo para Maria
Annunzziata, que parecia uma daquelas suavíssimas madonas dos pintores
da Renascença, ensarrilhada no fundo da loja do armarinheiro, dirigiu-se
ao velho nestes termos:
– Bons dias, sr. Pascoal: venho fazer-lhe a encomenda de um caixão e de uma mortalha para um colega que morreu.
–
Molto bene, – respondeu o italiano, na sua língua, pois não falava uma palavra de português.
E tomando uma fita métrica, perguntou a Viegas:
–
La medida del suo amico?
– Que medida?! – exclamou Viegas.
–
La medida per fare il cajone.
– Ora bolas! – tornou Viegas, – nem disso me lembrei.
–
Dunque! – exclamou mestre Pascoal, –
como fare io, senza la medida? Andate a portar-me lá, signor.
– Não é preciso sr. Pascoal; meu colega era exatamente da minha altura. Tome a medida do caixão por mim.
O italiano, que, como quase todos os seus patrícios, era
profundamente supersticioso, fez um gesto de espanto, ao ser-lhe
proposto tal alvitre, e exclamou:
–
Per Dio Santo! Ecco um cattivo pensamento. Prendere la medida
di un morto sopra di voi! Questa non si fa, signor, sarebbe funestissimo
per voi.
A bela Annunzziata, ao ouvir as palavras do estudante, fez igualmente
um gesto de horror, e, pela primeira vez nesta cena, levantou os olhos
da costura. Aproveitou-se logo disto Viegas para envolvê-la em um longo
olhar sensual, ao mesmo tempo que repetia a mestre Pascoal:
– Tome a medida, mestre Pascoal. Eu não acredito em agouros.
Annunzziata, ao ver essa insistência, não pôde conter-se. Como que parecia interessar-se pelo estudante:
–
Oh! non lo permettete, signor! Questo porta disgrazia!
Arnaldo Viegas ficou radiante e cheio de si; quis ostentar-se aos
olhos da moça homem superior, despido de superstições. Assim, exclamou,
confiando o bigode negro:
– Não vos incomodeis, bela
signorita. Deixe que mestre Pascoal tome a medida. O que aos demais acarreta desgraça, para mim talvez seja a chave da felicidade.
E tornou a dardejar uma chispa do seu olhar atrevido sobre a formosa
italiana, que, enrubescendo, se inclinou sobre a costura, apenas
pronunciando um simples
oh!
Mestre Pascoal, porém, encolhendo os ombros fleumaticamente, assim
como quem queria significar que não era responsável pelo que
acontecesse, disse, endireitando os seus óculos redondos de aros de
tartaruga:
–
Sia fatta la sua voluntá!
Ao mesmo tempo que desenrolava a fita métrica, fazia com que o rapaz
comprimisse a fivela da mesma na fronte e corria-a até os pés.
Em seguida levantou-se com os dedos fixos na marca, e lendo a numeração da fita exclamou:
–
Due metri e dieci centimetri. Per la Madona“, – acrescentou ele tirando o barretinho e saudando Viegas em ar de troça, –
voi siete un signor difunto!
Apesar de muito encouraçado contra agouros, Viegas estremeceu com a
frase de mestre Pascoal. Mas, ao ouvir Annunzziata abafar um gritinho,
também impressionada com o gracejo fúnebre do pai, logo as suas idéias
tomaram outro rumo. Compreendeu que a sedutora virgem da rua de São
Bento estava se interessando muito por ele, e isto encheu-o de prazer.
Efetivamente, atraída por estranho ímã, Annunzziata, logo no primeiro
momento em que os seus olhos pousaram sobre Viegas, sentiu-se
simpatizada por ele.
Arnaldo pagou a conta e despediu-se. Da porta lançou um último olhar a Annunzziata e esta o mimoseou com um gracioso sorriso.
Viegas não cabia em si de contente. “Que conquista de mão cheia não
ia ele fazer? Como toda a estudantada não se encheria de inveja e
despeito ao vê-lo na posse inteira da rafaelesca virgem da rua de São
Bento?! Aquele sorriso era a porta aberta a todas as suas ousadias, e
não seria ele Viegas que deixaria de entrar por ela”.
* * *
Assim, animado por esse sorriso que lhe prometia tanta fartura de
gozos e volúpias, Arnaldo Viegas começou a freqüentar a loja de Pascoal
Landini, cuja confiança e amizade soube captar em pouco tempo, pois o
velho italiano era homem muito simples e de extrema boa fé.
Duas semanas depois que teve lugar a cena acima descrita, já Viegas
tomava parte no macarrão e no vinho de Chianti do modesto lar do
armarinheiro, e daí a duas outras semanas era ele completamente senhor
do coração e da vontade de Annunzziata, que havia subjugado desde o dia
da encomenda do caixão.
Sem o sentir, a bela jovem Annunzziata achou-se perdidamente
enamorada do devasso estudante, e logo Viegas cogitou nos meios de
poluir aquela cândida criança, que com tanto abandono e simpleza lhe
ofertava o seu primeiro e virginal amor.
Aproveitando-se de uma ausência de Pascoal que foi obrigado a
dirigir-se ao Rio de Janeiro a fim de fazer sortimento para a sua loja,
intrometeu-se na lar do honrado lojista onde Annunzziata ficara, apenas
com uma criada já velha.
Annunzziata amava-o muito já, para poder resistir-lhe. Viegas
atirou-se-Ihe com toda a lubricidade dos seus desejos, e profanou-a.
Pouco depois alugou um quartinho na rua que dava fundo para a casa do
italiano e todas as noites metia-se no quarto da rapariga que cada vez o
adorava mais.
Durante dois meses Viegas foi assíduo junto da amante, porém
decorrido esse tempo começou a enfastiar-se dela, principalmente por ter
percebido que ela se achava grávida. Aquele infame era incapaz de
qualquer sentimento nobre. Resolveu abandoná-la.
Mudou-se de residência e nunca mais a procurou.
Não tinha ele conseguido os seus intentos? Não alcançara transformar
em impura Madalena a bela e recatada virgem que toda a Academia adorava?
Agora convinha-lhe demonstrar a sua superioridade, para que não
parecesse qualquer burguês. Partiria a taça pela qual sorvera o mais
suave dos filtros.
* * *
Annunzziata cobriu-se de mágoas com o súbito abandono do pérfido amante.
Escreveu-lhe por diversas vezes e não obteve resposta. Ralavam-na os
desgostos, começou a compreender que tinha sido traída, até que afinal,
amiudando mais as cartas ao celerado, este, com o maior cinismo, mandou
dizer-lhe verbalmente por um moleque que o não apoquentasse mais com
cartas e choradeiras, que andava muito preocupado com os seus estudos e
exames para perder tempo em responder a lamúrias de mulheres histéricas;
e, finalmente, que não fosse tola em insistir com ele para pedi-la em
casamento, pois ela bem devia compreender que um rapaz da sua posição e
futuro não era para casar com a filha de um armarinheiro, um reles
burguês fazedor de caixões de defunto.
Tanto cinismo e brutalidade partiram uma por uma todas as cordas da
alma da bela italiana. O seu débil corpo não pôde resistir a tão duro
golpe; intensa febre levou-a ao leito de onde só saiu alguns dias depois
para ser levada ao cemitério. O seu pobre coração estalara de dor, e ao
partir-se levara-lhe a existência.
* * *
O velho Pascoal Landini sentiu-se ferido profundamente nas suas vivas
e únicas afeições com a morte de sua dileta Maria Annunzziata, retrato
vivo da esposa que perdera havia anos.
Desde o dia em que a gentil criatura cerrou os olhos à luz do mundo,
nunca mais abriu o armarinho.
Tornou-se taciturno em extremo, evitava
falar com as pessoas de seu conhecimento, e passava a maior parte do dia
encerrado no pequeno quarto em que dormia e onde lhe morrera a filha
adorada, e cujos móveis e roupas conservava na mesma desordem e
desalinho em que haviam ficado naquele dia tão angustioso para o seu
pobre e velho coração.
À rua apenas saía para dirigir a construção de um artístico mausoléu
que mandara erigir no túmulo da filha, e no dia seguinte àquele em que
se ultimara a obra, encontraram-no morto no quarto de Annunzziata.
Feita a autópsia, verificaram os médicos que o infeliz ingerira uma forte dose de arsênico.
Esses dolorosos acontecimentos que tanto emocionaram os lojistas e
fabricantes da rua de São Bento, pois Landini e sua filha eram
geralmente estimados, não impressionaram no entanto o cínico que havia
cavado aquelas duas sepulturas precoces.
Arnaldo Viegas continuava na sua vida de dissipação, como outrora, e
no seu íntimo alegrava-se até que a morte o tirasse de certos embaraços
sociais para com a infeliz, cuja virgindade ele havia profanado.
Pouco depois entrava em exame e por casualidade era aprovado com a nota simples.
Rejubilou-se o pretensioso ignorantão com esse mesquinho triunfo
escolar, e tendo naquele dia recebido a gorda mesada que a prodigalidade
paterna lhe dispensava, resolveu festejá-la com uma lauta ceia
oferecida aos amigos, no Corvo, a célebre taverna paulista da rapaziada
acadêmica de outrora.
Eram onze horas da noite. Reinava a mais expansiva alegria em todos
os convivas, pois já algumas dúzias de garrafas haviam sido despejadas,
quando Arnaldo Viegas que se achava na cabeceira da mesa ergueu-se um
tanto ébrio, e, empunhando uma taça a transbordar de vinho Madeira,
exclamou:
– Meus senhores, vou levantar o brinde de honra do nosso banquete. Sobre ele todas as taças se quebrarão!
– Muito bem! muito bem! – responderam todos enchendo os copos.
– É um
toast de respeito, meus senhores! Eu bebo à memória
da rapariga mais formosa que meus lábios têm beijado nos espasmos do
prazer! Eu bebo, senhores, ao perfeito apodrecimento da que foi outrora a
mais perfumada e deliciosa das carnes! Eu bebo à memória de Maria An…
An… An…
Não pôde terminar o nome angélico daquela cujas cinzas queria profanar em uma orgia.
Os seus olhos fixaram-se de repente em um dos ângulos da enfumaçada
sala da taverna acadêmica. e o seu corpo principiou a tremer, caindo-lhe
o copo das mãos.
Os companheiros voltaram-se imediatamente para o canto onde se dirigira o olhar aterrado de Viegas, mas nada viram.
Arnaldo, no entanto, ia ficando pálido, os seus lábios abriam-se
denotando a maior estupefação, e os seus dedos crispavam-se, como se ele
fosse presa de horrível pesadelo.
Efetivamente surgia para Arnaldo uma visão medonha, pavorosa. Naquele
momento de final de orgia, viu sair do canto da sala um fantasma, o
finado Pascoal Landini, de barrete azul, óculos redondos de aros de
tartaruga e fita métrica em punho. A terrível visão aproximou-se do
libertino, que quis gritar, sem poder, não encontrando som algum na
garganta.
Os companheiros observavam espantados e silenciosos. Viegas viu,
então, o fantasma de Pascoal desenrolar a fita, obrigá-lo a comprimir a
fivela à fronte onde um suor frio deslizava, corrê-la até os pés, e
depois erguer-se, endireitar os óculos para ler a numeração, e exclamar:
–
Due metri e diecci centimetri! – E, exatamente como
outrora, no dia em que fora tratar do enterro do colega, tirar o
barretinho e à guisa de cumprimento trocista, acrescentar:
–
Per lá Madona, voi siete un signor difunto!
Viegas não pôde suportar por mais tempo aquele martírio. Reunindo
todas as forças que tinha, articulou um grande grito e rolou inanimado
no soalho da taverna.
* * *
Tornando a si do delíquio, a sua primeira pergunta foi saber dos
companheiros se tinham visto a alma do velho Pascoal tomar-lhe a medida
para o caixão.
Ninguém vira coisa alguma.
– Foi o vinho Madeira que te subiu aos miolos, – disse um colega.
– Proferiste um conto digno de Hoffman ou do nosso Álvares de Azevedo, – disse outro.
– Ora, graças que temos um Macbeth na Academia! Acho, porém, o teu Banquo um tanto burguês, – acrescentou ainda outro.
– Senhores, – exclamou Viegas todo trêmulo ainda e de uma palidez
mortal, – eu vi nesse momento o velho Lalldini chegar-se a mim e
tirar-me a medida para o caixão, exatamente como no dia em que com ele
tratei do enterro do Deotato. Vi, senhores, não foi efeito do vinho, nem
é conto que vos quero impingir, eu vi o velho Landini!
* * *
Dessa noite por diante a razão foi desaparecendo aos poucos do atribulado cérebro de Arnaldo Viegas.
Cessou os estudos, afundou-se cegamente na bebida e dentro de algum tempo estava completamente idiota.
Com intervalos lhe surgia na mente confusa a temerosa visão, o eterno
mestre Landini a. tirar-lhe a medida para o caixão; em seus ouvidos
zumbia constantemente o terrível gracejo do armarinheiro:
– Due metri e dieci centimetri! Per la Madona voi siete un signor difunto!
Em estado de completo idiotismo vagou durante algumas semanas pelas
ruas de São Bento, roto, esfrangalhado, sórdido, até que afinal sua
família mandou recolhê-lo e meteu-o no Hospício do Rio de Janeiro.
No fim de alguns meses o seu corpo era dado à sepultura.
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Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.59-70