quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A visão do Viegas

Arnaldo Viegas cursava o terceiro ano do curso jurídico de São Paulo. Havia seis, porém, que se achava matriculado na Academia. Indolente e de pouca atilação para as ciências, distinguia-se somente entre os companheiros pela sua supina ignorância da ciência jurídica, e pelo atrevimento das suas graçolas para com os lentes, mesmo os mais sisudos e ríspidos.

Se em direito, porém, Arnaldo Viegas, era profano, sabia no entanto de cor quase todos os poemas de Byron e Musset, cujos livros tinha por sua Bíblia ou Alcorão, mas sem que fraternizasse espiritualmente com as grandezas e sublimidades daquelas almas alucinadas pelo Belo e pelo Amor.

Viegas apreciava-os unicamente por ver que esses grandes poetas, na extravagância de seus gênios, se compraziam de exaltar o Vício e deprimir a Virtude. Nisso achava ele desculpa às desordens da sua vida, desordens baixas, sem intermitências de horas de labor honesto, nem manifestações fulgurantes de talento.

Viegas era bêbedo como um marinheiro em terra; jogava toda a sorte de jogos; fazia ostentações em entrar nas mais sórdidas espeluncas; e. finalmente, era um consumado devasso, mais por perversidade e amor próprio do que por impulsão do temperamento.

A sua conversa, quando não discorria sobre os paradoxos brilhantes de Byron e Musset, versava unicamente nas boas peças que pregava aos burgueses; nos calotes que passava ao alfaiate e ao sapateiro; nas mulheres casadas que seduzia; nas donzelas que lhe ofereciam a virgindade.

Embora muito dissoluto, é escusado dizer que a maior parte dessas façanhas eram puras invenções suas. A pretensão que tinha porém de fazê-las passar por verídicas, demonstra perfeitamente o depravado fundo do seu caráter.

Todavia o Viegas figurava como torpe protagonista de algumas aventuras amorosas, e é de uma delas que vamos tratar.

* * *

No tempo de que nos ocupamos, existia na rua de São Bento, em São Paulo, um velho armarinheiro italiano, Pascoal Landini, que, às suas funções comerciais de mercador de alfinetes, grampos e agulhas, reunia as de armador de igrejas, por ocasião de festividades religiosas, e fabricante de caixões e mortalhas para defuntos.

Pascoal Landini era um velhinho magro, baixo, de barba muito alva e pontiaguda, e sempre o viam na sua pequena loja toucado com um barrete de veludo azul com borla preta, e óculos de aro de tartaruga, perfeitamente redondos e grandes. Contudo, o que mais chamava a atenção, na lojinha da rua de São Bento, não era o seu proprietário, nem os acessórios do seu vestuário, e sim uma criatura de beleza incomparável e suavíssima, Maria Annunzziata, a filha do velho Pascoal, sempre a costurar, e sentada ao fundo da loja.

Toda a estudantada desse tempo – calouros e veteranos – conhecia a loja do Pascoal por causa da bela costureira; e, pelo interesse de lhe lançar uma olhadela amorosa, aliás nunca correspondida, iam freqüentemente ao negócio de Pascoal abastecer-se de penas, lápis, papel e tinta. Pelas “repúblicas” falava-se muito a miúdo na formosura de Annunzziata, e muito estudante fechava às vezes aborrecido o Digesto ou o Corpus Juri, para abrir a Arte de metrificação de Castilho, e fabricar versos em sua honra.

Todavia até aquela data nenhum se havia lambido com um seu sorriso. Annunzziata parecia insensível aos olhares de fogo que a trêfega mocidade acadêmica lhe lançava, ao dirigir-se à Escola, e até aos sonetos que os mais brejeiros lhe atiravam em papel dobrado em laçarote, aproveitando descuidos do velho Landini.

Ora, aconteceu um dia morrer um estudante do segundo ano de direito, e tendo os rapazes resolvido fazer-lhe o enterro, por ser o colega paupérrimo, comissionaram Arnaldo Viegas para tratar da encomenda do ataúde e da mortalha.

Arnaldo dirigiu-se à casa do velho Pascoal para se desempenhar do seu fúnebre encargo, e depois de lançar uma olhadela de fogo para Maria Annunzziata, que parecia uma daquelas suavíssimas madonas dos pintores da Renascença, ensarrilhada no fundo da loja do armarinheiro, dirigiu-se ao velho nestes termos:

– Bons dias, sr. Pascoal: venho fazer-lhe a encomenda de um caixão e de uma mortalha para um colega que morreu.

Molto bene, – respondeu o italiano, na sua língua, pois não falava uma palavra de português.

E tomando uma fita métrica, perguntou a Viegas:

La medida del suo amico?

Que medida?! – exclamou Viegas.

La medida per fare il cajone.

– Ora bolas! – tornou Viegas, – nem disso me lembrei.

Dunque! – exclamou mestre Pascoal, – como fare io, senza la medida? Andate a portar-me lá, signor.

– Não é preciso sr. Pascoal; meu colega era exatamente da minha altura. Tome a medida do caixão por mim.

O italiano, que, como quase todos os seus patrícios, era profundamente supersticioso, fez um gesto de espanto, ao ser-lhe proposto tal alvitre, e exclamou:

Per Dio Santo! Ecco um cattivo pensamento. Prendere la medida di un morto sopra di voi! Questa non si fa, signor, sarebbe funestissimo per voi.

A bela Annunzziata, ao ouvir as palavras do estudante, fez igualmente um gesto de horror, e, pela primeira vez nesta cena, levantou os olhos da costura. Aproveitou-se logo disto Viegas para envolvê-la em um longo olhar sensual, ao mesmo tempo que repetia a mestre Pascoal:

– Tome a medida, mestre Pascoal. Eu não acredito em agouros.

Annunzziata, ao ver essa insistência, não pôde conter-se. Como que parecia interessar-se pelo estudante:

Oh! non lo permettete, signor! Questo porta disgrazia!

Arnaldo Viegas ficou radiante e cheio de si; quis ostentar-se aos olhos da moça homem superior, despido de superstições. Assim, exclamou, confiando o bigode negro:

– Não vos incomodeis, bela signorita. Deixe que mestre Pascoal tome a medida. O que aos demais acarreta desgraça, para mim talvez seja a chave da felicidade.

E tornou a dardejar uma chispa do seu olhar atrevido sobre a formosa italiana, que, enrubescendo, se inclinou sobre a costura, apenas pronunciando um simples oh! 

Mestre Pascoal, porém, encolhendo os ombros fleumaticamente, assim como quem queria significar que não era responsável pelo que acontecesse, disse, endireitando os seus óculos redondos de aros de tartaruga:

Sia fatta la sua voluntá!

Ao mesmo tempo que desenrolava a fita métrica, fazia com que o rapaz comprimisse a fivela da mesma na fronte e corria-a até os pés.

Em seguida levantou-se com os dedos fixos na marca, e lendo a numeração da fita exclamou:

Due metri e dieci centimetri. Per la Madona“, – acrescentou ele tirando o barretinho e saudando Viegas em ar de troça, –voi siete un signor difunto!

Apesar de muito encouraçado contra agouros, Viegas estremeceu com a frase de mestre Pascoal. Mas, ao ouvir Annunzziata abafar um gritinho, também impressionada com o gracejo fúnebre do pai, logo as suas idéias tomaram outro rumo. Compreendeu que a sedutora virgem da rua de São Bento estava se interessando muito por ele, e isto encheu-o de prazer.

Efetivamente, atraída por estranho ímã, Annunzziata, logo no primeiro momento em que os seus olhos pousaram sobre Viegas, sentiu-se simpatizada por ele.

Arnaldo pagou a conta e despediu-se. Da porta lançou um último olhar a Annunzziata e esta o mimoseou com um gracioso sorriso.

Viegas não cabia em si de contente. “Que conquista de mão cheia não ia ele fazer? Como toda a estudantada não se encheria de inveja e despeito ao vê-lo na posse inteira da rafaelesca virgem da rua de São Bento?! Aquele sorriso era a porta aberta a todas as suas ousadias, e não seria ele Viegas que deixaria de entrar por ela”.

* * *

Assim, animado por esse sorriso que lhe prometia tanta fartura de gozos e volúpias, Arnaldo Viegas começou a freqüentar a loja de Pascoal Landini, cuja confiança e amizade soube captar em pouco tempo, pois o velho italiano era homem muito simples e de extrema boa fé.

Duas semanas depois que teve lugar a cena acima descrita, já Viegas tomava parte no macarrão e no vinho de Chianti do modesto lar do armarinheiro, e daí a duas outras semanas era ele completamente senhor do coração e da vontade de Annunzziata, que havia subjugado desde o dia da encomenda do caixão.

Sem o sentir, a bela jovem Annunzziata achou-se perdidamente enamorada do devasso estudante, e logo Viegas cogitou nos meios de poluir aquela cândida criança, que com tanto abandono e simpleza lhe ofertava o seu primeiro e virginal amor.

Aproveitando-se de uma ausência de Pascoal que foi obrigado a dirigir-se ao Rio de Janeiro a fim de fazer sortimento para a sua loja, intrometeu-se na lar do honrado lojista onde Annunzziata ficara, apenas com uma criada já velha.

Annunzziata amava-o muito já, para poder resistir-lhe. Viegas atirou-se-Ihe com toda a lubricidade dos seus desejos, e profanou-a.

Pouco depois alugou um quartinho na rua que dava fundo para a casa do italiano e todas as noites metia-se no quarto da rapariga que cada vez o adorava mais.

Durante dois meses Viegas foi assíduo junto da amante, porém decorrido esse tempo começou a enfastiar-se dela, principalmente por ter percebido que ela se achava grávida. Aquele infame era incapaz de qualquer sentimento nobre. Resolveu abandoná-la.

Mudou-se de residência e nunca mais a procurou.

Não tinha ele conseguido os seus intentos? Não alcançara transformar em impura Madalena a bela e recatada virgem que toda a Academia adorava? Agora convinha-lhe demonstrar a sua superioridade, para que não parecesse qualquer burguês. Partiria a taça pela qual sorvera o mais suave dos filtros.

* * *

Annunzziata cobriu-se de mágoas com o súbito abandono do pérfido amante.

Escreveu-lhe por diversas vezes e não obteve resposta. Ralavam-na os desgostos, começou a compreender que tinha sido traída, até que afinal, amiudando mais as cartas ao celerado, este, com o maior cinismo, mandou dizer-lhe verbalmente por um moleque que o não apoquentasse mais com cartas e choradeiras, que andava muito preocupado com os seus estudos e exames para perder tempo em responder a lamúrias de mulheres histéricas; e, finalmente, que não fosse tola em insistir com ele para pedi-la em casamento, pois ela bem devia compreender que um rapaz da sua posição e futuro não era para casar com a filha de um armarinheiro, um reles burguês fazedor de caixões de defunto.

Tanto cinismo e brutalidade partiram uma por uma todas as cordas da alma da bela italiana. O seu débil corpo não pôde resistir a tão duro golpe; intensa febre levou-a ao leito de onde só saiu alguns dias depois para ser levada ao cemitério. O seu pobre coração estalara de dor, e ao partir-se levara-lhe a existência.

* * *

O velho Pascoal Landini sentiu-se ferido profundamente nas suas vivas e únicas afeições com a morte de sua dileta Maria Annunzziata, retrato vivo da esposa que perdera havia anos.

Desde o dia em que a gentil criatura cerrou os olhos à luz do mundo, nunca mais abriu o armarinho.

Tornou-se taciturno em extremo, evitava falar com as pessoas de seu conhecimento, e passava a maior parte do dia encerrado no pequeno quarto em que dormia e onde lhe morrera a filha adorada, e cujos móveis e roupas conservava na mesma desordem e desalinho em que haviam ficado naquele dia tão angustioso para o seu pobre e velho coração.

À rua apenas saía para dirigir a construção de um artístico mausoléu que mandara erigir no túmulo da filha, e no dia seguinte àquele em que se ultimara a obra, encontraram-no morto no quarto de Annunzziata.

Feita a autópsia, verificaram os médicos que o infeliz ingerira uma forte dose de arsênico.

Esses dolorosos acontecimentos que tanto emocionaram os lojistas e fabricantes da rua de São Bento, pois Landini e sua filha eram geralmente estimados, não impressionaram no entanto o cínico que havia cavado aquelas duas sepulturas precoces.

Arnaldo Viegas continuava na sua vida de dissipação, como outrora, e no seu íntimo alegrava-se até que a morte o tirasse de certos embaraços sociais para com a infeliz, cuja virgindade ele havia profanado.

Pouco depois entrava em exame e por casualidade era aprovado com a nota simples.

Rejubilou-se o pretensioso ignorantão com esse mesquinho triunfo escolar, e tendo naquele dia recebido a gorda mesada que a prodigalidade paterna lhe dispensava, resolveu festejá-la com uma lauta ceia oferecida aos amigos, no Corvo, a célebre taverna paulista da rapaziada acadêmica de outrora.

Eram onze horas da noite. Reinava a mais expansiva alegria em todos os convivas, pois já algumas dúzias de garrafas haviam sido despejadas, quando Arnaldo Viegas que se achava na cabeceira da mesa ergueu-se um tanto ébrio, e, empunhando uma taça a transbordar de vinho Madeira, exclamou:

– Meus senhores, vou levantar o brinde de honra do nosso banquete. Sobre ele todas as taças se quebrarão!

– Muito bem! muito bem! – responderam todos enchendo os copos.

– É um toast de respeito, meus senhores! Eu bebo à memória da rapariga mais formosa que meus lábios têm beijado nos espasmos do prazer! Eu bebo, senhores, ao perfeito apodrecimento da que foi outrora a mais perfumada e deliciosa das carnes! Eu bebo à memória de Maria An… An… An…

Não pôde terminar o nome angélico daquela cujas cinzas queria profanar em uma orgia.

Os seus olhos fixaram-se de repente em um dos ângulos da enfumaçada sala da taverna acadêmica. e o seu corpo principiou a tremer, caindo-lhe o copo das mãos.

Os companheiros voltaram-se imediatamente para o canto onde se dirigira o olhar aterrado de Viegas, mas nada viram.

Arnaldo, no entanto, ia ficando pálido, os seus lábios abriam-se denotando a maior estupefação, e os seus dedos crispavam-se, como se ele fosse presa de horrível pesadelo.

Efetivamente surgia para Arnaldo uma visão medonha, pavorosa. Naquele momento de final de orgia, viu sair do canto da sala um fantasma, o finado Pascoal Landini, de barrete azul, óculos redondos de aros de tartaruga e fita métrica em punho. A terrível visão aproximou-se do libertino, que quis gritar, sem poder, não encontrando som algum na garganta.

Os companheiros observavam espantados e silenciosos. Viegas viu, então, o fantasma de Pascoal desenrolar a fita, obrigá-lo a comprimir a fivela à fronte onde um suor frio deslizava, corrê-la até os pés, e depois erguer-se, endireitar os óculos para ler a numeração, e exclamar:

Due metri e diecci centimetri! – E, exatamente como outrora, no dia em que fora tratar do enterro do colega, tirar o barretinho e à guisa de cumprimento trocista, acrescentar:

Per lá Madona, voi siete un signor difunto!

Viegas não pôde suportar por mais tempo aquele martírio. Reunindo todas as forças que tinha, articulou um grande grito e rolou inanimado no soalho da taverna.

* * *

Tornando a si do delíquio, a sua primeira pergunta foi saber dos companheiros se tinham visto a alma do velho Pascoal tomar-lhe a medida para o caixão.

Ninguém vira coisa alguma.

– Foi o vinho Madeira que te subiu aos miolos, – disse um colega.

– Proferiste um conto digno de Hoffman ou do nosso Álvares de Azevedo, – disse outro.

– Ora, graças que temos um Macbeth na Academia! Acho, porém, o teu Banquo um tanto burguês, – acrescentou ainda outro.

– Senhores, – exclamou Viegas todo trêmulo ainda e de uma palidez mortal, – eu vi nesse momento o velho Lalldini chegar-se a mim e tirar-me a medida para o caixão, exatamente como no dia em que com ele tratei do enterro do Deotato. Vi, senhores, não foi efeito do vinho, nem é conto que vos quero impingir, eu vi o velho Landini!

* * *

Dessa noite por diante a razão foi desaparecendo aos poucos do atribulado cérebro de Arnaldo Viegas.

Cessou os estudos, afundou-se cegamente na bebida e dentro de algum tempo estava completamente idiota.

Com intervalos lhe surgia na mente confusa a temerosa visão, o eterno mestre Landini a. tirar-lhe a medida para o caixão; em seus ouvidos zumbia constantemente o terrível gracejo do armarinheiro:

– Due metri e dieci centimetri! Per la Madona voi siete un signor difunto!

Em estado de completo idiotismo vagou durante algumas semanas pelas ruas de São Bento, roto, esfrangalhado, sórdido, até que afinal sua família mandou recolhê-lo e meteu-o no Hospício do Rio de Janeiro.

No fim de alguns meses o seu corpo era dado à sepultura.

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Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.59-70

A alma penada do barão

O barão do Arrenegado era um importante fazendeiro de Serra-Acima, muito conhecido da praça do Rio de Janeiro, com a qual entretinha assíduas relações comerciais.A história que passamos a contar, e na qual o opulento e aristocrático barão do Arrenegado figura como principal personagem, fixa-se cronologicamente no tempo de Pedro I e pouco antes da expulsão desse Bragança do Brasil.

É sabido de todos que conhecem um pouco a história pátria que o filho de dom João VI, depois da dissolução da Constituinte, começou a temer seriamente o partido nacional, do qual eram principais chefes os ilustres Andradas, com os quais se havia incompatibilizado.

Por isso cogitou da formação de um partido brasileiro para se opor àquele, e no propósito de adquirir afeiçoados distribuiu profusamente títulos e mercês honoríficas, fato esse que, segundo dizia o Tiphis Pernambucano, célebre jornal do mártir frei Caneca, era um ultraje irrogado pelo Trono aos sentimentos democráticos da nação brasileira.

Muita gente, que nunca havia sonhado com brasões de armas e títulos de nobreza, viu-se por essa forma transformada em barões, marqueses e viscondes, constituindo-se por tal meio no Brasil uma aristocracia achinelada, na frase sarcástica de Timandro, que depois também para ela entrou, aceitando o ridículo título de visconde de Inhomerim, lugarejo insignificante que existe pouco adiante de Mauá e que apenas se salienta pelas sezões e pela grande quantidade de mosquitos.

Ora, um dos agraciados pela munificência do imperial amante da Domitila, foi Francisco Viana de Lobo, que na derrama das graças abiscoitou o título de barão do Arrenegado, unicamente por ter sido companheiro de deboches de Pedro I, quando simples príncipe de Bragança.

Ainda por intervenção de Pedro I, o barão do Arrenegado, casou-se com uma rica herdeira, e, opulento e nobre, tornou-se fazendeiro.

Viana de Lobo era um homem alto, robusto, de pés e mãos enormes, olhos azuis e cabelos ruivos e duros, barba da mesma cor e consistência, sobrancelhas bastas e de fios muito longos, pele vermelha, afogueada.

Tudo em sua fisionomia tinha um cunho feroz, selvagem. À primeira vista compreendia-se logo que se estava em presença de um brutamontes. E assim era. As concordâncias que Lavater encontrou entre o físico e o moral dos indivíduos exemplificavam-se perfeitamente no barão do Arrenegado.

A sua índole condizia com a aspereza da sua fisionomia. Viana de Lobo era homem de maus bofes: cruel para com os escravos, ríspido para com sua resignada e digna consorte, brutal para com todas as pessoas que com ele tratavam.

Com exceção da esposa, que o adorava, sem compreender porquê, e de Pedro I, cuja índole afinava um tanto com a sua, ninguém gostava do barão do Arrenegado. Mas, o que mais antipatias lhe atraía, não eram os seus modos bruscos e incivis, e sim o desrespeito com que ele tratava as coisas da religião em que nascera fora batizado.

Viana de Lobo era profundamente ateu, e comprazia-se em ostentar a todos a sua irreligião, fato esse que enchia de desgostos a pobre baronesa, excelente senhora e em tudo obediente ao marido, porém em extremo religiosa.

Acredita o povo que o ateísmo do barão do Arrenegado foi severamente punido pela Providência Divina que tudo perscruta e a tudo provê. Encarregar-nos-emos de revelar a forma por que tal castigo lhe foi aplicado, seguindo em tudo a tradição popular.

* * *

As antipatias contra o governo despótico de Pedro I, os seus freqüentes atentados às liberdades constitucionais, que jurara defender, começaram a brotar de todos os ângulos do país. Uma revolução estava eminente, porém, o imperador julgava-se com forças para conjurá-la.

Minas Gerais era uma das províncias onde o descontentamento lavrava mais intenso, e Pedro I, que tinha ilimitada confiança em si próprio, deliberou transportar-se em pessoa a Vila Rica, esperando que a sua presença bastasse para serenar os ânimos, tal como acontecera na sua primeira excursão à velha Terra-do-Ouro, quando ainda regente do Brasil, em nome de dom João VI.

Por isso partiu do Rio de Janeiro, acompanhado de sua segunda esposa, e, ao passar pela fazenda do barão do Arrenegado, onde fora tratado de um modo faustoso, convidou o antigo companheiro de pândegas para fazer parte da sua comitiva na viagem que ia empreender. Aprontou-se logo o barão, e, despedindo-se da esposa, tocou para Minas, com o seu imperial patrono, satisfeito por poder desenfadar-se um pouco da vida monótona que passava na fazenda.

Deixemo-lo cavalgar para a prisca Vila Rica e vejamos o que se passa em sua casa durante a sua ausência.

* * *

Uma semana depois da partida do barão, vieram alguns escravos comunicar à baronesa um fato singularíssimo e que encheu a respeitável senhora de emoção.

Diziam esses escravos que no pasto da fazenda, e bem no oco de uma frondosa aroeira que ali existia, haviam encontrado eles uma imagem da Virgem Maria, modelada com tanta perfeição, que mãos humanas não podiam fazer igual, e, o que era mais extraordinário, essa primorosa peça da estatuária cristã não fora ali embutida, porém sim lavrada na própria casca da aroeira, da qual fazia parte integrante. Não era crível que um artista viesse às ocultas deixar aquele atestado da sua devoção e talento. O aparecimento da santa, não podia deixar de ser um milagre .

Essa notícia alvoroçou a baronesa, cujo sentimento religioso era profundo, segundo já dissemos. Nesse mesmo dia partiu ela para a Árvore-de-Nossa-Senhora, acompanhada de toda a escravaria; e mandando cercar a imagem de círios bentos, fez rezar uma ladainha cantada, que ela mesma ia entoando devotamente.

Rápida se espalhou por toda a vizinhança a notícia do milagroso acontecimento, e começaram a afluir devotos de toda a parte, a fim de fazerem preces à Nossa Senhora encontrada na árvore da fazenda do barão.

O padre do arraial vizinho, acompanhado da Irmandade do Santíssimo Sacramento, veio em procissão solene, e de cruzes alçadas, visitar a imagem, junto à qual foi celebrada uma missa campal. Todos os devotos eram hospitaleiramente agasalhados pela piedosa baronesa, que se sentia jubilosa por ter Deus achado nela bastante merecimento para que em suas terras se verificasse tão surpreendente milagre, ainda mais encarecido pelo fato de se começar a espalhar que um galhinho ou uma lasca da casca da Aroeira Santa possuía miríficas virtudes, só com trazê-lo ao pescoço, ou em um bentinho.

O capim, que crescia em redor da árvore, foi cuidadosamente mondado pelos devotos, sendo a baronesa a primeira a dar o exemplo tomando uma enxada e capinando-o. Um carpinteiro cercou a imagem com um bem acabado gradil, outro artesão enladrilhou a base da árvore, e tudo corria na maior efusão de religiosidade, quando regressou à fazenda o barão do Arrenegado, seu legítimo e único proprietário.

* * *

O barão vinha contrariadíssimo pelo desrespeitoso acolhimento que recebera em Minas o arrogante Pedro I, a cuja sombra ele medrava.

A velha e altiva pátria de Tiradentes recebera dessa vez de cara enfarruscada o poderoso soberano dos Brasis. Para ela Pedro I não era mais o penhor augusto das liberdades nacionais, mas simplesmente o estrangeiro infenso às prerrogativas populares, alcançadas com a Independência.

Não lhe encobriu, pois, o seu desagrado. A população dos diversos lugares corria acintosamente aos templos, quando o imperador a eles chegava, e ia assistir missas por alma de Libero Badaró, que os seus apaniguados haviam assassinado em São Paulo.

O imperador regressara despeitadíssimo, e do mesmo modo o seu válido, o barão do Arrenegado, que mais ainda se enfureceu, quando, ao penetrar em terras da fazenda, a viu devassada pela chusma de devotos que faziam romaria à Virgem-da-Aroeira.

Raivoso, enterrou os acicates na barriga da potranca que cavalgava, e em poucos minutos esbarrava no terreiro.

Mal avistou a esposa, e antes mesmo de lhe dirigir qualquer saudação, perguntou-lhe com semblante carregado:

– Senhora baronesa, que quer dizer todo esse povo estranho que me palmilha o campo da fazenda? Serão ciganos?! Não tenho proibido tantas vezes a entrada dessa canalha nas minhas terras?!

– Sossegai, barão; não são ciganos. Como fostes de viagem? Acho-vos um tanto abatido.

– Qual abatido, qual nada! O que desejo é saber quem é toda essa corja de vagabundos que por aqui transita, como se estivesse em sua casa? Por ventura teriam recebido notícia de minha morte? Não compreendo, como, sabendo-me vivo, a senhora consinta que se desrespeitem tão injuriosamente as minhas ordens? Parece-me que ainda valho alguma coisa, com os diabos! Quem é aquela gente, senhora, e que quer ela?

– É boa gente, barão, gente honesta e piedosa, – respondeu a baronesa, toda confusa. E atendendo à impaciência do barão, viu-se obrigada a referir-se logo em seguida toda a história da descoberta da imagem, a ladainha lá rezada, a procissão feita pelo padre do arraial, a construção da cerca, o enladrilhamento de oda a base da árvore, e finalmente as extraordinárias virtudes que diziam possuir a casca e os ramos da Aroeira Santa.

O barão ouviu toda a narração, mostrando visíveis sinais de impaciência e de enfado. Seus olhos passeavam sem parar da mulher para as pessoas que estavam no campo. Apenas ficou inteirado de toda a história, exclamou encolerizado:

– Que indigna comédia, senhora baronesa! que patifaria, senhora! Qual Santa, nem qual Diabo! Tudo isso não passa de artifícios desses miseráveis padres, que julgam poder intimidar-me com tão grosseiros embustes! Nunca se viu tamanha cachorrada! Não há milagres, nem coisa alguma! Foram eles, esses patifes, que mandaram às ocultas modelar a imagem no tronco da árvore; foi isso e mais nada. Mas enganam-se, esses estúpidos falsários, se pensam que sou tão fácil em acreditar nas suas patranhas! Hoje mesmo não ficará de pé nem cerca, nem árvore, nem imagem, nem coisa alguma!

– Que ides fazer, meu Deus? – exclamou a baronesa, tomada do maior assombro.

O barão não lhe deu resposta: estava quase louco de cólera. Chamando um pajem de confiança, berrou:

– José. Vá dizer àquelas pessoas que andam pelo campo que se ponham já fora da minha vista, e isso quanto antes, senão não respondo pelo que acontecer.

E logo, virando-se para outro escravo, gritou: “Sabino, vai apanhar um machado e acompanha-me. Ah! patifes, querem divertir-se à minha custa?! Corto a vergalho aquele danado padre Manuel, pois não foi outro o autor de tal peça!”

– Por Deus! barão, –  disse a baronesa enlaçando-se ao esposo, e com o pranto a borbulhar-lhe nos olhos, – que ides fazer?! Não chameis o castigo de Deus sobre nossas cabeças!

O barão, porém, não era homem para atender a lágrimas de mulheres. Desvencilhou-se dos braços da esposa, com um repelão, e partiu para a aroeira, acompanhado do crioulo Sabino, que se armara do competente machado.

A baronesa, consternada, e vendo que não poderia deter o marido, no seu furor inconoclasta, mandou acender as velas no oratório e foi rezar aos santos de sua devoção.

* * *

O barão do Arrenegado no entanto chegava à aroeira, e logo destroçou e espezinhou cerca, círios, flores e oferendas pias que os devotos haviam pendurado ao tronco. Em seguida ordenou ao escravo que derrubasse a árvore.

Sabino levantou o machado e vibrou o primeiro golpe, que penetrou fundo na Aroeira. Os galhos mais delgados da árvore estremeceram, e uma chuva de folhas miúdas caiu no chão, ao mesmo tempo que ela exalava um gemido.

O escravo olhou assombrado para a copa da árvore e exclamou:

– Sinhô, aroeira gemeu!

– Não foi nada, – respondeu o barão, – é algum ramo que rangeu ao roçar em outro.

Sabino deu segunda machadada, e a árvore exalou segundo gemido.

– A aroeira tornou a gemer, sinhô! – repetiu Sabino cada vez mais assombrado.

– Eu nada ouvi, – respondeu o barão; – corta a árvore, e não te ponhas com idéias.

Mais um terceiro golpe e mais um novo gemido. O escravo começou a tremer.

– A árvore não pára de gemer, meu sinhô!

– Corta a árvore, – tornou furioso o colérico fazendeiro; – ou antes dá-me o machado, pois parece-me que o medo vai tirando-te as forças. Sai daqui, vai-te para o inferno com as tuas invenções de gemido!

E tomando brutalmente o machado das mãos do escravo, o barão atacou resolutamente a árvore.

Sabino continuava a ouvir os singulares gemidos, porém o barão, todo ocupado na destruição da Árvore-Santa, não os escutava, e, com ardor crescente, decepava a fronde.

Dentro de alguns minutos toda a árvore estremeceu, e com mais alguns golpes a copa do soberbo vegetal inclinou-se, rangeu, e despejou-se por terra com medonho estrondo.

Ao despregar-se a alentada fronde da copa, a árvore escorregou para a frente, ao contrário do que desejava o barão, e antes que ele pudesse fugir com o corpo para o lado, foi colhido e ficou esmagado pelo madeiro.

Sabino, que se achava à distância, deu um grito de horror, e correu para o senhor. O barão do Arrenegado estava morto!…

* * *

A baronesa, ao saber do ocorrido, apenas teve forças para exclamar:

– Foi castigo, meu Deus! meu coração bem o adivinhava!

E caiu desmaiada nos braços das mucamas. Levantada a árvore, com grossos espeques, foi retirado o corpo do barão, em péssimo estado, e carregado para a fazenda.

Ao recobrar os sentidos, já a baronesa o tinha a seu lado.

Apesar da rispidez com que a tratava o marido, a infeliz senhora tinha por ele sincero afeto. A sua dor foi enorme.

Deliberou fazer solenes exéquias ao esposo, e, para esse fim, ordenou que o corpo fosse transpoŽtado para o arraial, onde poderia ser amortalhado com a decência compatível com a sua elevada posição social e opulência.

Quase ao escurecer, partiram da fazenda doze negros conduzindo o cadáver numa rede, a fim de ser depositado em câmara-ardente na igreja do arraial.

A desolada viúva e as mucamas deviam, pelo correr da noite, reunir-se ao corpo, pois ficaram aprontando-se para a viagem.

* * *

O arraial distava cerca de quatro léguas da fazenda do barão, e quando os pretos que conduziam o corpo já se achavam em meio do caminho, começaram a sentir que ele se tornava muito pesado.

O crioulo Sabino, que fazia parte do cortejo fúnebre, sendo o primeiro a observar tal fato, voltou-se para um preto africano, já meio velho e disse:

– Pai Antônio, o defunto está pesando muito.

– Cala boca lapazi, – respondeu Antônio gemendo debaixo da carga, – é que esse que tá aí tinha pecado caté nu zoio.

E lá se foram, sacolejando o cadáver do aristocrático barão, pela estrada afora.

Mas o corpo a cada momento aumentava de peso e as mudas de carregadores tiveram que se revezar a miúdo. Os pobres pretos quase deitavam a alma pela oca, quando deixavam o fardo.

Afinal chegou o triste cortejo a um vasto campo, onde serpeava a fita branca da estrada. Aí, nesse lugar, o cadáver tornou-se tão pesado que os negros caíram repentinamente de joelhos, vergando sobre a enorme carga.

Os escravos, assombrados com o que estava acontecendo, juntaram-se, em número de doze, para verem se, reunidos, conseguiam transportar o defunto ao arraial, que apenas distava um quarto de légua daquele lugar.

Acercaram-se, pois, da rede, e dispuseram-se a levantá-la, porém com o esforço que fizeram quebrou-se o grosso canudo de taquarassu. Mas a rede não caiu ao chão! O maldito defunto parecia ali pregado.

Achavam-se eles naquela incerteza, sem nada poderem resolver, quando desembocaram na estrada dois cavalheiros, que se ofereceram logo para transportar o cadáver.

Os negros aceitaram, embora não acreditassem que aqueles dois homens pudessem fazer o que doze não haviam conseguido.

Os cavaleiros, porém, sem que a carga parecesse superior às suas forças, colheram a rede pelos punhos, mesmo montados como se achavam, ergueram-na, à altura dos peitos dos cavalos; e começaram a caminhar, sem prestarem atenção aos asnáticos comentários que os crioulos faziam, admirados com aquela força hercúlea.

Poucos instantes depois, observaram os negros que aos lados da rede se achavam quatro cavaleiros, sem que soubessem por onde tinham chegado os outros dois. Ao cabo de dez minutos surgiram mais quatro, vindos sempre pela mesma forma misteriosa.

– Uê! – disse pai Antônio para os outros, – donde tá chegando turo esse gente. Cruzo!

Mal fora feita essa observação, apareceram cavaleiros de todos os lados, que, num berreiro infernal, dispararam com o cadáver do barão. Num abrir e fechar de olhos, sumiram-se, fazendo ouvir medonho estrondo, que atordoou todos os pretos. No mesmo instante sentiu-se um forte tremor de terra, e na direção em que haviam desaparecido os fantásticos cavaleiros viram-se compridas e azuladas línguas de fogo que se enroscavam pelo chão como cobras, e nele penetravam.

– Valha-nos, Nossa Senhora! – disse o crioulo Sabino. – Parceiros, aqueles cavaleiros são soldados do Tinhoso! Vieram buscar o corpo de sinhô para levar para o inferno. Valha-nos Nossa Senhora! estamos perdidos! Quem souber alguma reza que diga já, senão ficamos assombrados.

– Iô sabe rezá, – disse pai Antônio. – Todos os outros rodearam-no imediatamente:

– Reza, pai Antônio! reza, pai Antônio!

Pai Antônio ajoelhou-se contritamente, juntou as mãos, e na sua atrapalhadíssima língua, principiou:

– Iô pecandô me confesso cum Deu tudo poduroso, bê zicancararo Santa Maria, bê zicancararo São Migué di Acanja, bê zicancararo São Joó di Caputisso, e Santo de Apossa cu sua Pedro, cu sua Paulo e turo zu santo e a vussucê que pecô pro munta vezi, pru sua curpa, sua grande curpa…

– Eu não! – interrompeu o crioulo Sabino, – eu não! nunca pequei! Você é burro, pai Antônio!

– Burro é você, muleque, pruquê assi foi que iô prendeu.

Os outros escravos, quase todos moleques pernósticos, desataram a rir, e assim terminou em comédia aquela lúgubre cena.

* * *

Não pára no entanto aqui a espantosa história do célebre barão do Arrenegado.

Exatamente quando fazia um ano que Viana de Lobo havia sucumbido debaixo da Aroeira-de-Nossa-Senhora, conta o povo, haver ocorrido na fazenda um acontecimento que encheu de assombro todos quantos o presenciaram.

Na noite desse dia, já passadas onze horas, achava-se ainda desperta e fazia as suas orações a baronesa, cujas mágoas tinham-se aviventado naquele dia, pelo fato de ser ele o do aniversário da morte do esposo, quando ouviu grande tropel de cavalos.

Chamou por uma escrava, mandando ver o que se passava. A rapariga dirigiu-se para a sala da frente, e daí a pouco regressava, mas em tal estado de assombro que lhe faltaram forças para explicar o que vira.

Admirada a baronesa com o espanto que via pintado no rosto da mucama, levantou-se, e encaminhou-se para as janelas da frente, acompanhada de diversas raparigas, que, com o tropel dos cavalos e gritos que partiam do exterior, haviam despertado em sobressalto.

Lá fora passava-se uma cena medonha, e todos recuaram tomadas de horror e medo.

Um magote de demônios, de formas extravagantes, cavalgando fogosos ginetes cujas ventas despediam línguas de um fogo azul, caracolavam no terreiro, quando, de repente, surgiu em meio deles um cavaleiro envolto em longo sudário branco.

A baronesa conheceu logo esse fantasma: era o do marido, que imediatamente tomou a frente da cavalhada, e com ela partiu em disparada para o ponto do pasto onde outrora existira a aroeira. Ali tudo aniquilou-se com terrível estampido.

Durante sete anos, sempre no mesmo dia do aniversário da sua morte, o fantasma do barão, acompanhado de um esquadrão de demônios, vinha fazer a sua ronda no campo da fazenda.

No oitavo ano, porém, nada mais se viu e o que é ainda singular, sete anos exatamente depois do infausto acontecimento, a aroeira, que até então não havia brotado, tornou a vicejar, e em pouco tempo readquiriu o primitivo tamanho. Nunca mais, porém, ali se viu a imagem da santa tão impiamente destruída pelas ímpias mãos sacrílegas do barão do Arrenegado.
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Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.97-110