quarta-feira, 18 de maio de 2016

Linguista


“I have no armour left. You’ve stripped it from me. Whatever is left of me — whatever is left of me — whatever I am — I’m yours.” — James Bond

Escrevo, pois é o que me resta. Apenas isso importa dizer agora; prefiro ser direto e contar de uma vez a história da mulher que mudou minha vida.

Eu a conheci em um sarau. Quando pus os olhos nos dela, vi mais que costumava ver. Usei a fala e a interpelei. Disse-me que estudava línguas mortas, em especial o latim. Percebi que éramos da mesma área. Assim como fiz com ela, apresento-me ao leitor: tenho 35 anos, ocupo-me dos estudos da língua. Dedico-me com afinco às minhas pesquisas. Passo os dias na universidade, lecionando e coordenando projetos. As noites tomo como extensão do dia: imerso nos livros. Meu contato com as mulheres, e tal informação ofereço apenas ao leitor, costumava ser inconstante. Quando alguma acendia meu interesse, o enfado não tardava a surgir. Os casos eram rápidos e superficiais. Eu culpava todas por não me trazerem o conteúdo fascinante que eu encontrava nos estudos da língua.

Entretanto, quando a conheci, no sarau, vi mais que costumava ver. Diana.

Nossos primeiros assuntos foram restritos aos aspectos teóricos. Discutimos as ideias dos nossos mestres; a língua fascinava ambos. Com o laço inicial formado, passamos aos aspectos pessoais. Nesse campo, eu tinha por hábito ser um tanto reservado. Media cada momento da troca para não correr o risco de dar mais que recebia.
Naquela noite, foi diferente. Com o incentivo do álcool e dos olhos grandes de Diana, abri todas as portas e a deixei entrar em meu âmago. Assim, tão fácil, ela já tinha mais de mim que qualquer outra jamais tivera.

Diana usava a força dos olhos grandes, quase externos, de brilho esmeraldino, para lançar-me um feitiço hipnótico. Eu poderia ficar estático diante de tais olhos até que ela me despertasse com estalar de dedos. A mulher falava com voz doce, bem-sonante, nem grave ou aguda, apenas doce – eu sentia pitadas de glicose em seus decibéis. Ela usava um timbre médio, sem alterações, uma linha constante que não dava sobressaltos. Aumentava o efeito de hipnose. O rosto trazia uma sutil ambiguidade: ao mesmo tempo em que os traços eram finos, davam efeito de uma força, noção de comando. Domínio.

Diana me tocava de leve durante a conversa. Usava as pontas dos dedos como gotas de chuva em meus braços. Minha pele agradecia, hidratava-se. Era sinal de interesse mútuo a boa conversação que mantínhamos. A única forma de interrompê-la seria com uma outra funcionalidade dos lábios: o beijo. As línguas se entrosaram de todo. Não se largavam, lutavam, uma sobre a outra em alternância – sem vencedor. Foi um beijo gigantesco.

Assim passamos boa parte da madrugada: agradável encontro de bocas. As mesmas que combinaram atividade semelhante para a noite seguinte. No segundo encontro, as línguas despertaram o desejo de explorar muito mais que uma à outra, de desvendar texturas e relevos particulares — pescoço, peito, coxas. A minha percorreu uma pele branca com gosto de mulher. Sentiu o desenho do mamilo e desceu até o éden pantanoso. Lá, com movimento incessante, divertiu-se e gerou diversão. Meus ouvidos captavam o efeito do trabalho da língua. Os gemidos de Diana me davam ordem para continuar; até que um grito intenso me avisou que podia parar. Foi a vez da minha companheira botar a língua em ação e me proporcionar farta dose de prazer oral. Meu clímax enérgico foi amostra não-verbal de apreço pelo esforço dela. Ambos satisfeitos, juntamo-nos em abraço silencioso que trazia todas as palavras de amor. Nossas línguas, mais uma vez, uniram-se, traziam sabores um do outro e se trocavam em movimento interminável, coeso; novo beijo a durar mais que vários minutos.

Nas duas primeiras semanas, vimo-nos todas as noites. Deixamos de lado nossos estudos linguísticos e dedicamo-nos ao uso empírico da língua, a minha e a dela. Fundiam-se em uma só: não havia “eu” e “tu”, apenas “nós”. Passei a perceber que eu pouco sabia sobre a mulher com quem me relacionava. O corpo e a mente de Diana desapareciam, e tudo se resumia à sua língua, fonte de expressão e prazer. O mesmo acontecia, posso deduzir, com ela em relação a mim. Não existia sujeito, apenas objeto. Línguas vivas em pessoas inertes.

Numa noite da semana seguinte, fui visitá-la de forma usual. Os encontros aconteciam sempre em sua casa. Entrei e, sem palavras, a beijei. Logo, meus sentidos acusaram algo estranho. Percebi Diana mais ansiosa. A língua movimentava-se frenética, inquieta. Eu esmerava-me, no beijo, para seguir tal ritmo, fazia esforço incrível com meus músculos, mas minha língua não era apta a acompanhá-la. Passamos a noite com os lábios juntos e, toda vez que eu tentava equilibrar o beijo, Diana era mais rápida, mais ágil. A língua dela parecia crescer dentro da minha boca e me envolvia o corpo todo num lamber sem fim.

Achei estranho o fato, mas procurei ignorá-lo. Não foi possível: na noite seguinte, o fenômeno se repetiu com maior intensidade. A língua de Diana tomou as rédeas. Fez, da minha, escrava. Cheguei à minha casa sentindo pequenos calafrios. Medo de perdê-la, de ficar sem a língua na qual estava viciado. Da cesta de frutas, peguei uma uva. Fiz movimentos, tentativa de treinar-me, de exercitar minha língua de forma a adquirir velocidade semelhante à de Diana. Foram vários minutos com a uva rodopiando em minha boca, meu desespero girando sem parar. Necessidade de estar à altura dela, daquele ritmo intenso, potência de fúria. Treinei por mais uma boa dose de tempo e julguei ter obtido êxito.

No dia seguinte, visitei Diana tomado de expectativa. Como era usual, não dispusemos de palavras. O encontrar dos olhos era comunicação para o passo seguinte: o beijo. Invadi sua boca com voracidade e mostrei-me mais ágil. Diana, no entanto, surpreendeu-me com um ritmo inesperado, movimentou a língua com força ainda maior que a minha. Domou-me, intransigente. Atirou-me na cama, despiu-me, montou em mim. Ela decidia a hora de aumentar e diminuir os movimentos do sexo. As posições variavam, sempre com ela por cima, no comando. Eu tentava surpreendê-la com minha língua, tocar-lhe os seios ou o pescoço. Ela me afastava. Atingiu o clímax com a cabeça para trás, os cabelos ondulando, enorme vibração. Desceu de mim e dispôs da língua quente para me oferecer prazer semelhante ao que havia sentido. Saciou-me, sem me dar escolha. Gozei, pois assim ela determinou.

Após essa noite, inventei uma escusa para evitá-la. Não sabia como agir: nosso equilíbrio se havia extinguido. Ela tornara-se “eu”, eu era “tu”. Um “tu” que só existia criado pelo “eu”.

A apatia tomou conta de mim por algum tempo. Não atendia as ligações de Diana, era a única forma de evitar a submissão. A hombridade que ainda me habitava fez-me tomar uma decisão séria. Reuni as forças que me restavam e fui ter com Diana. Fui à casa dela e usei a língua, depois de muito tempo, para lhe falar. Com tom forte, mostrei-me resoluto e disse que era momento de interromper nossa relação. Já não me sentia mais motivado por ela.

Diana, para minha surpresa, aceitou meu pedido sem contra-argumentação. Estranhei, pois já havia aprendido que essa mulher era verbo transitivo indireto: jamais apresentava voz passiva. A língua dela, no entanto, foi indolente. Apenas pediu um último brinde, despedida. Pareceu proposta justa. Consenti. Ela trouxe os copos de champanhe e bebemos juntos de um só gole. As línguas experimentaram o álcool; a minha, no entanto, delatou uma dormência maior. Passei a sentir o corpo fraco, os olhos embaçaram. Havia sido dopado. Tonto e entorpecido, fui levado a uma sala em que jamais estivera, onde, em poucos segundos, fui amarrado a uma cadeira. Enquanto minha mente desvendava o recinto, vi Diana aproximar-se com reluzente navalha.

Fiquei estático no momento em que ela abriu minha boca e puxou a língua para fora. Eu deveria ter vontade de gritar, debater-me. Não tinha. Vi seus olhos cada vez mais saltados, para fora, intensos, completamente fora de órbita. Traziam prazer selvagem – prenunciado em nossos beijos – em segurar minha língua e, de leve, acariciá-la com a navalha gelada. Minha língua seguia imóvel em sua mão, eu respirava com dificuldade, alongava o olhar para acompanhar a movimentação da lâmina, que dançava em vaivém dentro e fora da minha boca.

Não gritei no primeiro corte. Foi lento, angustiante. A navalha abriu minha língua de leve, verticalmente, rasgou-a fácil, feito navio singrando os mares. O sangue surgiu, e minha boca seca foi tomada de líquido espesso. A dor veio em pontadas. Maior, entretanto, era o desespero de ver Diana com o instrumento na mão, com os olhos sádicos de um carrasco, mas sem máscara, sem subterfúgio.

Diana continuava a segurar minha língua vermelha. Beijou-me a face, o pescoço.

Apertou forte a navalha e voltou a dirigi-la à minha boca. Fechei os olhos, os abri. Não sabia o que era pior. A lâmina ia e vinha, fazia pequenos cortes, deixava vestígio de sangue. Minha mente se perdia, suplicando pela irrealidade. A dor aguda surgia, sumia. Minha angústia, jamais. Só aumentava ao ver Diana de posse da navalha, ensaiando devagar um movimento de corte seco, guilhotina.

Diana usou a mão esquerda para puxar minha língua com força. Tirou-a da boca tanto quanto foi possível. Com a direita, levantou a lâmina e paralisou. Focou os olhos na minha língua, com desejo, admiração, como fizera em tantas outras vezes. Prendi a respiração quando vi o metal gelado descer com fúria rápida. Senti minha carne se partir, meus músculos rasgados, inúteis. Sangue por toda parte e dor, dor, dor.

Diana deu um riso extasiado, rugido de prazer. Levantou-se e caminhou até um canto da sala. Sangrando em desespero, vi Diana depositar minha língua em um vidro cheio de líquido e colocá-lo numa prateleira repleta deles. Era mais um item para sua coleção de línguas mortas.

por Rodrigo Rosp


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

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