sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Alucinação de Staley Fleming

De dois homens que conversavam, um era médico. 

"Mandei buscá-lo, doutor", disse o outro, "mas não acredito que possa ajudar-me. Talvez o senhor pudesse recomendar um especialista em problemas mentais. Acho que estou perdendo a razão.”

"Você parece tão bem", retrucou o médico.

"O senhor é que vai julgar. Estou tendo alucinações. Acordo todas as noites e vejo em meu quarto, olhando-me intensamente, um imenso cão terranova negro, com as patas da frente brancas.”

"Você diz que acorda. Tem certeza? Às vezes, aquilo que chamamos 'alucinações' não passa de sonhos.”

"Acordo, sim. Às vezes fico parado, por muito tempo, olhando para aquele cachorro, com o mesmo olhar intenso com que o animal me fita. E a luz está sempre acesa. Quando já não posso suportar, sento-me na cama... e então vejo que não há nada ali!”

"Hum... qual é a expressão do cão?”

"Parece sinistra. Eu sei que, exceto quando se trata de arte, a face de um animal em repouso tem sempre a mesma expressão. Mas esse não é um animal de verdade. Os terra-novas têm um olhar manso, o senhor sabe. O que será que há com esse?"

"Bem, quanto a isso, meu diagnóstico não teria importância. Não é do cachorro que vou tratar.”

O médico riu do próprio gracejo, mas ao mesmo tempo observava o paciente com o canto do olho. Até que falou:

"Fleming, a descrição desse animal combina com a do cachorro do falecido Atwell Barton.”

Fleming ameaçou levantar-se da cadeira, sentou-se de novo e, querendo mostrar indiferença, falou:

"Eu me lembro do Barton. Acho que ele... dizem que... não houve alguma coisa de suspeito em torno de sua morte?”

Olhando diretamente nos olhos do paciente, o médico disse:

"Há três anos o corpo de Atwell Barton, seu velho inimigo, foi encontrado na floresta, perto da casa dele e da sua. Ele fora esfaqueado e morto. Mas ninguém foi preso. Não havia provas. Algumas pessoas tinham 'teorias'. Eu tinha uma. E você?”

 "Eu? Bem, eu... Deus do céu, o que eu poderia saber do assunto? O senhor sabe muito bem que viajei para a Europa logo depois... quer dizer, algum tempo depois. Nas poucas semanas desde que voltei, não seria capaz de construir uma 'teoria', o senhor não acha? Na verdade, não pensei no assunto. Mas o que tem o cachorro dele?”

"Foi quem encontrou o corpo. E depois ficou montando guarda no túmulo, até morrer de fome.”


Nada sabemos sobre as leis inexoráveis das coincidências. Pelo menos Staley Fleming nada sabia, caso contrário não se teria erguido de um salto quando, através da janela, o vento da noite trouxe consigo o longo ganido de um cão, a distância. Andou de um lado para o outro na sala, sob o olhar fixo do médico. Até que, abruptamente e quase gritando, dirigiu-se a este:

"E o que tudo isso tem a ver com meu problema, Dr. Halderman? O senhor esqueceu a razão pela qual foi chamado?”

Levantando-se, o médico segurou o braço do paciente e, delicadamente, falou:

"Perdão. Não posso diagnosticar seu problema de antemão. Amanhã, talvez. Por favor, vá deitar-se e deixe á porta do quarto destrancada. Vou passar a noite aqui com seus livros. Pode me chamar sem levantar-se?"

"Posso. Tenho uma campainha.”

"Ótimo. Se vir alguma coisa, aperte o botão sem se sentar. Boa noite.”

Confortavelmente instalado numa poltrona, o médico ficou olhando as brasas brilharem enquanto se deixava levar por pensamentos profundos, mas aparentemente sem importância, já que por vezes levantava-se, abria a porta que dava para as escadas e ficava escutando atentamente. E em seguida voltava a sentar-se. Até que acabou adormecendo e quando acordou já passava da meia-noite.

Remexeu o fogo, apanhou um livro que estava na mesinha a seu lado e leu o título. Eram as Meditações, de Denneker. Abriu-o ao acaso e começou a ler:

"Porque embora tenha sido determinado por Deus que toda carne tenha espírito e, consequentemente, poderes espirituais, assim também o espírito tem o poder da carne, mesmo quando dela se desprendeu e vive como algo à parte, como muitas violências perpetradas por fantasmas e espectros têm comprovado. E há quem diga que isso não ocorre somente com o homem, mas que também os animais são movidos por tais propósitos maléficos, e que ..."

A leitura foi interrompida por um estrondo que sacudiu a casa, como a queda de um objeto muito pesado. O médico fechou o livro e saiu correndo, subindo as escadas em direção ao quarto de Fleming. Tentou abrir a porta, mas esta, contrariando suas instruções, estava trancada. Bateu-lhe com o ombro com tal força que a porta cedeu.

No chão, junto à cama em desalinho, vestido com a roupa de dormir, jazia Fleming, à morte.

O médico ergueu do chão a cabeça do moribundo, observando o ferimento em sua garganta.

"Devia ter previsto isto", disse, acreditando tratar-se de suicídio.

Quando o homem, depois de morto, foi examinado, notou-se que havia marcas visíveis das presas de um animal que se tinham cravado fundo na veia jugular. Só que não havia animal algum.


Visões da Noite / Ambrose Bierce; organização e tradução Heloísa Seixas; ilustrações Mozart Couto. - Rio de Janeiro: Record, 1999.

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