sexta-feira, 22 de julho de 2016

Quando Deus nos Abandona


As vigorosas batidas que vinham da porta da cabana deixaram o coração de Thérèse em sobressalto. “Quando Deus nos abandona”, pensou Thérèse, “Lebourreau nos assoma.”

– Quem bate? – perguntou Thérèse, embora bem soubesse que Lebourreau, com a lanterna em punho, lançava a sua sombra maligna sobre os umbrais da pobre choupana.

Thérèse apertou ambos os filhos contra os seios, sentindo-lhes a respiração quente e irregular, típica dos moribundos devastados pela peste. E, arrastando-se como podia, recolheu-se ao ângulo mais remoto da parede. “Quando Deus nos abandona”, pensou Thérèse, “Lebourreau nos ilude.” O  vento, que se esgueirava pelas frestas de adobe, trouxe consigo a voz calma e melódica do velho mago:

– Deixe-me entrar. Trago-lhe boas-novas!

De Lebourreau dizia-se, em toda Valônia, que era um bruxo astuto e poderoso. Ouvira da mãe que aquele ente medonho habitava cemitérios desolados, onde há séculos praticava sortilégios. Amiúde comentava-se que,  nas noites de plenilúnio, o mago reunia-se com as bruxas e, de corpos nus, realizavam o sabá. “Quando Deus nos abandona”, dizia-lhe a mãe, “ele vem e nos ludibria!”

Há dois dias o pequeno Jean-Pierre corria livre pelos campos, gozando a imensidão das planícies e a luminosidade intensa do verão. Mas viera a peste, tão súbita quanto cruel, e, com o seu beijo nefando, cobrira o  corpo do garoto de pústulas negras e aquosas, cujo odor desagradável  entranhava-se no ar como se arauto da morte certa. E Cosette, com suas mãozinhas febris, não arredava dos seios maternos. Mas  a  menina  decompunha-se  ainda  viva.  Do  corpo  pequeno  e desconforme fluíam emanações mefíticas, tão nauseantes que somente a mãe podia suportar. Como  era avançado o estado de degeneração da criancinha! A enfermidade avançava célere naquele corpinho disforme. Cosette, silenciosamente, agonizava.

– Pobre Cosette – disse a mãe, beijando-lhe o rostinho cravejado de pústulas e de grosseiras ulcerações.

O vento trazia a voz melódica do velho bruxo:

–Deixe-me entrar. Ainda há esperanças. Trago-lhe uma esperança que o seu Deus esqueceu-se de lhe ofertar.

Jean-Pierre também morreria. Assim como aqueles cruzados que retornaram de Jerusalém. Mais algumas horas e todas as ulcerações eclodiriam num ruído surdo, salpicando, à pressão incontrolável da febre sempre crescente, o líquido asqueroso na atmosfera impregnada de humores deletérios. O corpo, lacerado por ilhas de carne viva, precipitar-se-ia para uma tonalidade roxo-escura e, então, viria a inexorável decomposição da pele, da carne e das entranhas. E Cosette, agora, sangrava por todos os orifícios. Também – e principalmente – pela abertura do olho que lhe faltava. O outro era morto e oboval, projetado para fora como o de um camaleão.

Cosette nascera cega, corcunda e coxa. Pobre Cosette, condenada pelo Senhor a deambular desgraciosamente pelas planícies pedregosas da Valônia, fazendo de sua muleta uma bengala, e, de ambas, a sua sina, enquanto, curvada ao peso da corcova, estendia as mãos implorando migalhas dos viajantes. Não! Melhor assim. Melhor que o bom Deus ceifasse, desde já, um futuro tão hediondo!

– Entre – respondeu, finalmente, Thérèse.

A porta da choupana se abriu. O vento gemeu e rodopiou nas úmidas paredes de adobe. O mago entrou. Trazia numa das mãos uma lanterna que lhe iluminava a sobrepeliz carmim e o capuz escarlate. O luzeiro iluminou-lhe as faces cavernosas. Thérèse tremeu de pavor. O mago continuou, com sua voz mansa, que lhe escapava das ranhuras de uma fileira de dentes amolados:

– Tenho uma proposta.

– Leve-me. Mas cure os meus filhos.

– Não, não a quero. Quero Cosette. Quero a pequena.

– O que ganharei em troca?

– Jean-Pierre viverá.

Thérèse ponderou. Entregou a pequena.

– Decisão sábia – redarguiu o homem com gravidade. E acrescentou, piscando maliciosamente um olho de coruja:

– De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?

Após uma pausa – uma longa e meditativa pausa –, o bruxo concluiu, prazerosamente, com as garras em riste para Cosette:

– Hoje sinto uma grande fome. Arranjar-me-ei bem com ela.

O mago mergulhou a criança nas rubras abas de sua sobrepeliz e saiu. Atrás de si ficou o farfalhar monótono de uma capa escarlate, sibilante ao vento que se decompunha em silêncio e se fazia silêncio, enquanto a solidão, coroada pelo desespero, ficava irremediavelmente para trás. Então, nesta mesma solidão, que era a imensidão de um casebre, um arrependimento cruciante reverberou na alma de Thérèse.

Cosette! A pequena e indefesa Cosette! Não seria justo que a peste a levasse, com seu corpinho repulsivo e disforme, para os campos sepulcrais? Não seria melhor assim? Se é que esta era a vontade de Deus, haveria por que se rebelar? Cosette já estava morrendo. Morrendo irremediavelmente. Mas entregar Cosette aos dentes anavalhados daquela coisa imunda... Saciar a sede e a fome de tão abjeta criatura com as vísceras e o sangue inocente de sua filha... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau vem para nos tentar e iludir...”

– Meu Deus, o que eu fiz? – bradou Thérèse, na fria escuridão de seu antro.

Thérèse arremessou contra a noite. Ganhou os campos e as planícies, clamando pela filha. Atirou-se violentamente aos bosques, caminhando sobre as sendas que se abriam ao fluxo luzidio do luar. E quando finalmente amanheceu e já retornava a casa, corroída pela densidade de um remorso seco e cáustico, Thérèse vislumbrou, ao longe, algo oscilar ao sabor da brisa matinal. Era um trapo. Era o corpinho de sua filha. A garota fora  empalada num galho que, inclinado, deitava reverência ao chão. Traspassada pelo dedo arguto de um arbusto, Cosette trazia a garganta dilacerada por dentes tumultuosos e exibia, mais abaixo, o ventre rasgado por unhas longas e pontiagudas. Restos de entranhas, revolvidas e despedaçadas, estavam derribados ao solo forrado de folhas mortas. Mas algo de surpreendente acontecera! O corpinho de Cosette ganhara uma nova conformação. Dois belos olhos azuis, que poderiam perfeitamente enxergar, agora reluziam na face miúda e bela. A corcova desaparecera e a perna atrofiada recompusera-se em substância e perfeição.

– Lebourreau a consertou, antes de matá-la. Lebourreau ajeitou a minha  menina só para  devorar-lhe o sangue e algo doce de suas entranhas. Pobre Cosette! – Thérèse balbuciou, enquanto a pequena mão de Cosette, impelida talvez pelo vento ou mesmo por uma força sobrenatural, tão obscura quanto extraordinariamente absurda, buscava, pela última vez, o calor do seio materno. Thérèse gritou ao sentir que a mãozinha do cadáver comprimia tenazmente o seu peito. Sentiu que as pernas arqueavam. Que a mente refluía. Que a boca beijava o chão.

Quando voltou a si, depois de um longo pesadelo – que, àquelas alturas, lhe sabia aos lábios como belos sonhos –, seguido de um desfalecimento negro e espesso, já anoitecia.

Foram os gritos de Jean-Pierre que trouxeram Thérèse de volta à consciência. Sim, Jean-Pierre clamava, não muito longe. Gritava pela mãe, Jean-Pierre. E como  gritava! E como eram saudáveis os seus pequenos pulmões, antes impregnados de peste e purulência! Jean-Pierre estava  vivo. Escapara milagrosamente à morte certa. Lebourreau cumprira a sua promessa... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau...”

Pôs-se, então, a mulher a correr. Percorreu as sendas com os olhos enevoados por lágrimas tão densas que afundavam nas órbitas e se recusavam a cair. Por um momento, esqueceu-se completamente de Cosette. Teria Jean-Pierre só para si. Teria Jean-Pierre curado, livre da febre e das pústulas nauseantes. Vivo de novo. Novamente vivo e saudável!

“... Lebourreau... nos ajuda!”

Ao chegar à clareira, viu que Jean Pierre equilibrava-se, como um bêbado, à porta da choupana de adobe. O garoto escapara à peste. Mas...

O garoto caiu.

Thérèse parou. Um choque. Seus pelos se eriçaram como se atraídos por uma auréola magnética. Uma auréola que os santos recusam e que os demônios impõem. E um frio violento, vindo de suas trôpegas entranhas, sacudia-lhe o corpo e enredava-lhe a alma infeliz, enquanto ouvia o garoto gritar.

“De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?” A voz do mago fulminou a mente de Thérèse, que foi ao chão, com o corpo dominado por longos e dolorosos espasmos.

– Mãe! Mãe, estou cego! – bradava Jean-Pierre.

Thérèse, antes de contorcer-se na lama, vira que o olho direito de Jean-Pierre já não mais existia. E, com pavor, reparara que o olho esquerdo do pequerrucho, sujo e embaçado, saltava-lhe da órbita qual um ovo grotesco.

– Eu não posso andar! – urrava desesperadamente o menino, irremediavelmente coxo e esmagado por uma corcova medonha, uma intumescência que lhe vergava o dorso deformado e lhe estufava o peito à semelhança de um pombo monstruoso.

À semelhança da pequena Cosette!


Histórias Nefastas - Paulo Soriano - Ed. Corifeu, 2008

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