sexta-feira, 3 de junho de 2016

Luzes Fantasmas


Os galeses as chamavam de "velas de cadáveres", e associavam os fantasmagóricos glóbulos de luzes dançantes com uma morte iminente. Elas também já foram chamadas de luzes fantasmas e fogo-fátuo.

Em seu livro, "British Goblins", Wirt Sikes, ex-cônsul dos EUA no País de Gales, recolheu diversos relatos de testemunhas sobre essas luzes misteriosas, inclusive um em que os passageiros de um ônibus entre Llandilo e Carmathen viram três luzes pálidas, quando cruzavam uma ponte sobre um rio em Golden Grove. Três homens morreram afogados no mesmo lugar, poucos dias depois, quando seu pequeno barco soçobrou.

John Aubrey, autor de "Miscellanies", contou a história de uma mulher que afirmou ter visto cinco luzes pairando na sala recentemente pintada da casa onde trabalhava.

Ela disse que foi aceso um fogo para secar as paredes, e cinco outros trabalhadores morreram em consequência da fumaça.

Outras histórias sobre luzes fantasmas podem ser encontradas na coleção enciclopédica "Lightning, Auroras and Nocturnal Lights", de Corliss. Uma história particularmente assustadora é contada por um homem de Lincoln, Inglaterra, que passeava com seu cavalo na primavera de 1913.

- Durante meu passeio - disse ele -, um fogo-fátuo chamou minha atenção, seguindo na mesma direção para onde eu estava indo. Seu movimento era irregular, às vezes perto da superfície, e então, de repente, ele se elevou a uma altura de quase 2 metros. - Segui a luz com todo cuidado durante uma certa distância, pois eu estava decidido a, se possível, inspecionar melhor aquele meu guia luminoso. Como a noite estava muito escura, eu tinha todas as condições favoráveis para minha observação.

A distância, a luz fez uma manobra e parou no meio da estrada. Desmontei, na esperança de capturá-la. Mas fiquei decepcionado. Pois à minha aproximação, talvez pelo barulho que fiz, ou por algum outro motivo, ela de repente se levantou, permaneceu a uns 60 centímetros de altura do solo, iluminou um aterro, e prosseguiu seu curso em linha reta sobre os campos contíguos. Os grandes e profundos diques impossibilitaram minha perseguição. Mas meus olhos seguiram seu movimento constante até seu brilho se perder com a distância.

Fonte: Livro «O Livro dos Fenômenos Estranhos» de Charles Berlitz

O Desvio


“There’s a devil waiting outside your door.” – Nick Cave

Em alguma estrada, cujo nome não importa, aconteceu o seguinte. Havia um homem dirigindo um carro esportivo pelo deserto ensolarado. Estava sozinho no carro, ouvindo um rock tranquilo, sem vocal, quase minimalista. Conduzia havia algumas horas e mantinha a mesma expressão impassível no rosto parcialmente coberto pelos óculos escuros. A temperatura regulada pelo ar condicionado contrariava o céu sem nuvens.

O relógio marcou seis horas e trinta minutos. O motorista buscava um trajeto, um desvio, soltava o pé do acelerador sempre que via uma placa. Também relaxava os músculos do pé quando passava por algum sujeito pedindo carona. Ria deles, às vezes. Lembrou-se do seu amigo que gritava “eu tô de carro!” para as pessoas na parada de ônibus. Três mochileiros com jeito de hippies depois e então... Ela. No acostamento direito da pista.

Tinha uns dezesseis anos, talvez. O sol já estava se pondo, mas pôde avaliá-la com precisão. Sua microssaia e suas meias de arrastão lhe fizeram cogitar por uns instantes que ela poderia ser uma prostituta, mas concluiu que não. A jovem portava uma cruz ao contrário pendurada no pescoço, uma saia preta segurada na cintura fina por um cinto cheio de espetos de metal. Na orelha direita, entre cinco e oito adornos prateados cobrindo quase toda a sua extensão. Também vestia uma camiseta preta com mangas picotadas e uma estampa de alguma banda de heavy metal com demônios desenhados.

“Mas que gostosa, puta que pariu!”, o homem exclamou para si mesmo, reduzindo de cento e cinquenta a zero por hora em poucos segundos, como nas propagandas da tevê.

Abaixou o vidro elétrico e gritou:

“Pra onde você tá indo?”

Ela, tímida, apontou o horizonte que atingiriam seguindo em linha reta.

“Curioso. Eu também.” Ela sorriu.

“Quer uma carona? Eu tenho que pegar um desvio que não sei bem onde é, daí eu te deixo ali. Pelo menos é mais perto de onde você quer chegar, não?” Abriu a porta e entrou no automóvel.

“Não tem medo de dar carona pra uma completa estranha?”

“Oras, você pode se vestir de preto, mas não parece uma serial killer pra mim.”

Outro sorriso. Ela estava atraída por ele, o motorista tinha certeza. Entretanto, a música reproduzida pelos alto-falantes parecia desagradar a jovem.

“Não sei se tenho aqui algum tipo de música que você gosta.”

“Tá legal, deixa pra lá. Você tá me dando carona, já tá mais que bom.”

Ainda assim, apertou o botão de desligar e começou a olhar os discos que guardava atirados em um vão da porta esquerda do automóvel. Puxou um deles e mostrou para ela. Era um CD completamente preto, com o nome do cantor em branco, fonte pequena. Perguntou, com as sobrancelhas, se ela gostava, e teve como resposta um sacudir de ombros, de “não conheço”. O rosto dele se iluminou.

“Eu adoro mostrar músicas novas pras pessoas”. Inseriu o disco no aparelho. “O pessoal hoje em dia é meio bitolado. Sempre escuta as mesmas coisas.” Ele pulou até a faixa 3. Ela manifestou certo estranhamento.

“Bizarra a voz desse cara. Meio dançante, também. Isso eu não gosto muito.”

“É dos anos 80, sabe como é. Mas eu coloquei porque as letras dele são sempre bem sinistras, com assassinatos e tudo mais. E a voz cortante. Adoro.” O player indicou um minuto e meio passado.

“Acho que ele fala sobre o diabo nessa música.”

“É?”

“A-hã. E ele seria o diabo. O narrador.”

“Bacana!”

“Ele diz que veio buscar a alma de alguém, um treco assim. É o que eu entendo pelo menos. Nunca li a letra inteira, só pego umas frases de ouvido.” Ela, acanhada, virou-se para a janela.

“É, vou ter que admitir, é uma música legal para escutar com o sol quase se pondo, pegando uma estrada...”

Ficaram sem assunto, e ele apertou botões aleatórios no aparelho, fingindo entender de equalização sonora. Alguns segundos de silêncio constrangedor e ela abriu os lábios para falar, esboçando uma sensualidade que ativou a imaginação do motorista.

“Mas é muito engraçado que você veio me mostrar logo essa música.”

“É? Por quê?”

A faixa 4 tinha começado, bem mais lenta e melancólica que a anterior.

“Porque eu sou o diabo. E vim aqui buscar a sua alma.”

Ele riu. Gargalhou, até. Daí riu mais um pouco. Olhou para ela. Estava séria, mas mantivera o rosto de adolescente meiga e amável.

“Boa essa piada.”

“Sério.”

Ele tentou repetir o esquema da gargalhada.

“Não é tão engraçado quando é verdade, né?” ela disse, espremendo os olhos, como se assim fosse possível enxergar através dos óculos escuros do motorista.

“A brincadeira tá perdendo a graça.”

“Por que você acha que ainda não encontrou o desvio que procura?”

“Porque eu sou completamente perdido, que tal?”

“Você realmente acredita nisso?”

Ele sinalizou que sim com a cabeça.

“E pra onde acha que você, ou melhor, nós, estamos indo?”

Os últimos raios já haviam iniciado o processo de despedida no horizonte.

“Não tô vendo chamas ou qualquer coisa que o valha ali na frente.” ele disse, e tossiu nervoso.

“O nível, o círculo mais baixo do inferno é gelado. Nunca leu Dante?”

“Ah, sim, sim. Escuro e gelado, porque é o mais longe de Deus possível.”

“Você não parece assustado.”

“Você realmente acha que eu vou cair nessa?”

“O diabo pode assumir as mais diversas formas. De uma garotinha inocente na estrada. Não? Então me diz. Por que eu não sou o diabo?” Ele refletiu.

“Bom. Em primeiro lugar...”

“Em primeiro lugar...?”

“Você não pode ser o diabo...”

“Por...?”

“Porque eu sou o diabo.”

Foi a vez dela de achar graça e demonstrar isso com uma gargalhada forçada e artificial.

“Sim, é sério. Eu sou o diabo. Por que você acha que logo eu apareci para dar carona? E você sabe o que é o desvio que eu tô procurando?”

“O caminho para me levar ao inferno?” ela disse, no meio de um estouro de risos.

“Isso aí. A diferença é que eu tenho um motivo.”

“Tem? E qual é?”

“Eu não tolero quem se passa por mim. Quem fica dizendo para os outros que é o diabo. Almas patéticas. Por que fingem tanto serem o diabo se quando conhecem ele ficam assim com essa cara, do tipo, ‘foi tudo uma brincadeira, por favor não leve minha alma’? Hein?”

Ela olhou para o pino da porta. Trancado. O velocímetro indicava 170 km/h.

“Você acha que por se vestir de preto, se comportar como uma cadela no cio, furar o nariz, isso vai te deixar mais parecida comigo? Olhe pra mim. Eu tô usando uma jaqueta jeans, óculos escuros. O diabo é discreto, não é uma menina gótica metida a besta que nem você.”

“Cale a boca! Não quero mais carona. Como funciona esse pino? Aperte o botão que abre aí!”

“Você sabe que aconteceram vários estupros aqui por essa região, né? Garotinhas de microssaia não deveriam ficar aqui, esperando algum caminhoneiro tarado no escuro. Tem certeza que quer descer?”

“Qualquer psicopata é melhor que você. Seu porco psicótico. Eu só tava brincando com aquela história. E agora você vem com esse papo com um jeito de quem tá falando sério, quando eu sei que, no fundo, no fundo, não tá. Mas sei lá, vai que você é um maníaco, algo assim. Então é bom que você me diga agora, agora mesmo, que tá brincando. Senão, eu prefiro descer aqui.”

Ele finalmente tirou os óculos, não necessitava mais deles na noite que já caía sobre o deserto. Aguardou alguns instantes antes de falar, saboreando o medo impresso na garota.

“Sim, eu tô brincando. Só queria que você admitisse a sua brincadeira também. Desculpe se eu fui longe demais.”

Ela sorriu com a mesma inocência dos primeiros sorrisos que deu logo que entrou no carro. Ele retribuiu.

“O nosso humor não é dos mais saudáveis, né?”

Olharam-se como um casal em um final feliz de Hollywood.

Ele pensou: “depois dessas piadinhas de mau gosto, acho que, no fim das contas, vou comer essa menina hoje. Será que tenho camisinha na carteira?”. Ela pensou: “Que dia. Mal posso esperar para contar para as minhas amigas”. Estava começando a simpatizar com o estilo da música. “Cara legal. Fazia mais de mês que não conhecia alguém tão legal assim.”

O desvio apareceu a 500 metros deles, sem placa alguma indicando seu surgimento.

“Olhe! Acho que é esse aqui. Quer descer?”

“Suas histórias me assustaram.” Ela engoliu fundo e se remexeu no banco. “Acho que prefiro continuar com você até a cidade onde você tá indo, sei lá. Essa estrada é sinistra de noite mesmo.”

Os dois entraram no desvio, uma estrada um pouco mais fina. Alguns quilômetros depois ele começou a se perguntar se tinha acertado o caminho, mas, no papel de homem orgulhoso, se recusou a admitir que talvez não soubesse o trajeto. O frio foi aumentando vertiginosamente, e os dois acreditaram que assim era o clima à noite naquele deserto. Ele ligou o ar-condicionado no quente, potência máxima. De nada adiantou.

No fim do desvio, dizem que o frio é tão forte que é capaz de congelar qualquer viva alma.

Afinal de contas, é o lugar mais longe de Deus, e o diabo detesta pessoas que se passam por ele.

por Antonio Xerxenesky


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

Quando Eles Chegaram


"O sistema de baias isoladas é bastante eficiente para o confinamento das unidades. Todavia, os seres dessa espécie – para utilizar uma terminologia própria deles –, por terem desenvolvido rudimentares formas de arte, comunicação e interação social, podem sofrer de grande apatia, adoecer e definhar se completamente privados de tais elementos, o que, sem dúvida, acarreta perdas na produção. Para contornar esse problema, algumas soluções triviais: reprodução de sons variados no ambiente, uso de celas com mecanismo de estimulação tátil e olfativa programada ou mesmo o fornecimento de material simples para escrita. O bem-estar das unidades produtivas deve ser sempre a preocupação maior." – Manual de Técnicas de Manejo e Abate – Versão Beta – Volume XIII – Humanos – Ano 2167 (tempo terrestre)

Quando eles chegaram, estávamos juntos em nosso quarto, o dia querendo tingir de laranja a transparência úmida das taças de champanhe, a minha pele - tua, o redemoinho branco dos lençóis. Estás ouvindo?, perguntaste, erguendo a mim teus olhos enevoados de sono. Sim, eu disse, algo está acontecendo, tantos gritos aí fora, parecem todos loucos. A pressão de tuas unhas nos meus ombros antecipou a pergunta: será que eles chegaram?

Liguei o televisor holográfico, e a imagem que dominou o aposento, engolindo, com suas cores, o relevo dos móveis, não deixava, tamanha a clareza, espaço para qualquer esperança de equívoco ou dúvida confortável: era um imenso geoide, pousado na esplanada em frente ao Palácio do Governo Central, cercado por uma multidão de curiosos a se acotovelarem e por soldados das tropas especiais, protegidos em suas armaduras de quartzo polimerizado e carregando pesados rifles a laser. Sim, eles haviam chegado.

Não eram boatos, tampouco uma conspiração antigovernista, como afirmavam as autoridades, as notícias espalhadas nos últimos dias, dizia o repórter. O anúncio feito por observatórios astronômicos independentes a respeito da aproximação do objeto não-identificado confirmava-se agora de modo irrefutável. Ali estava, tangível, o delírio dos inimigos do sistema; ali estava, destruindo o gramado da maior praça da capital do planeta Terra, a mentira dos acadêmicos universitários que, atuando em áreas como exobiologia, buscavam justificar captação de recursos para suas pesquisas; ali estava, em intensas cintilações de âmbar, à primeira luz do dia, a inventividade dos autores de ficção científica.

Estavas em pânico, senti; por isso te abracei.

Não há exagero em dizer que o planeta parou quando eles chegaram. Acompanhávamos as notícias segundo a segundo, enlaçados sobre o colchão, querendo acreditar que era apenas mais um filme tolo ou, melhor, que os excessos do amor na noite passada haviam induzido um sono abissal do qual ainda não tínhamos despertado. Nunca antes eu havia me sentido testemunha da história como naquele momento, nem mesmo quando instaurou-se o Governo Central após a Terceira Guerra, nem mesmo quando, a seguir, nossa cidade foi escolhida a capital. E não importa se vou viver mais dois dias ou cem anos (cem anos, impossível, o destino não pode ser tão pérfido): jamais esquecerei as palavras que, em nossa língua, ecoaram da nave por toda a esplanada e, dali, foram transmitidas para todo o mundo.

Não temam! Em paz e em segredo, os visitamos por muitos séculos e, agora, também em paz, nos revelamos. No universo, somos vizinhos; na caminhada evolutiva, somos irmãos. Trazemos nossos ensinamentos e buscamos a acolhida neste planeta, pois muitos dos erros que hoje aqui são cometidos nós também já cometemos. Não temam, pois ainda há esperança. Trazemos a boa nova.

Contrariando as expectativas, eram muito parecidos conosco, apenas mais altos, sem pelos e com um dedo a mais brotando em cada pulso. No encontro com o Grande Líder e os conselheiros da Liga das Nações, mais detalhes: vinham de um planeta em galáxia não-catalogada ainda pelos terráqueos, um planeta dividido pelas guerras e condenado à morte pela inépcia e arrogância de seus habitantes. Atingira tal ponto a degradação daquele pequeno mundo – sete vezes menor do que a Terra, declararam –, que os sobreviventes tiveram de colonizar outro planeta e lá reiniciar sua civilização. A mesma tecnologia responsável por tanta destruição havia lhes concedido uma segunda chance. E, nessa nova etapa, foram lançados também novos alicerces, explicaram; não queriam ver repetida, nem em seu novo planeta nem em outro, a catástrofe que, por um triz, não os havia dizimado.

Quando eles chegaram, tu insistias em dizer que algo não ia bem. Não importava que eles, em pouco tempo, tivessem conseguido debelar, com seu alerta e sua diplomacia, os últimos focos de tensão armada no oriente, que eles houvessem convencido as autoridades a destruírem as bombas de nêutrons ainda guardadas em arsenal, que eles estivessem, gradualmente, entrando em nossa sociedade, fundindo-se a ela, e conosco compartilhando sua notável tecnologia, capaz de produzir e executar muito mais com muito menos demanda energética, não, nada disso importava; vinhas a mim, beijavas minha boca – um beijo trêmulo, um quase suspiro –, e falavas: isso não está bem.

Quem poderia concordar com essa tua visão até aquela noite?

De madrugada, fomos acordados pelo soar de alarmes em toda a cidade. Pela janela do apartamento, vimos, pouco depois, o firmamento incendiar-se com a luz dos inúmeros geoides que irrompiam aqui e ali, dissolvendo a escuridão; as últimas nesgas de céu noturno eram pontas de gelo negro agonizando em meio à fúria da lava escarrada por um súbito vulcão. No televisor ligado às pressas, um repórter pálido, em cenário de batalha, tentava dominar o pavor para informar que eles haviam deflagrado um motim contra os humanos, os quais, por sua vez, pacificados por conveniência, não tinham como se defender. Milhares de naves se aproximavam da Terra naquele instante. Antes de a imagem tridimensional desaparecer numa torrente de chiados e interferências, o repórter conseguiu ainda dizer: eles estão aprisionando os humanos e se utilizando do nosso próprio sistema de transporte coletivo para conduzir os cativos até um lugar ignorado.

Tu caíste de joelhos diante de mim, cingindo minhas pernas, e sussurrando o que, mais do que um desejo, era uma súplica lançada ao vazio: se é para morrer, quero morrer contigo. Os gritos já ecoavam mais alto do que os alarmes, e cada vez mais próximos, subindo as escadas, avançando pelo corredor. Deixei-me cair também. De repente, estrondos, e, na porta do quarto, dois vultos gigantescos, um relâmpago e mais nada.

Pesadelo superpovoado de vozes, uma nuvem de calor – sim, era o inferno. Eu sei, chorava alguém, sei o que vão fazer: vão nos transformar em comida, em cobaias para experimentos. Por quê?, indagava uma pessoa mais rouca. O que fizemos para merecer?

Abri os olhos. Embora inconsciente até aquele momento, estava quase de pé no vagão abarrotado, e tu, por milagre, bem ao meu lado, ainda de pálpebras cerradas, o corpo mole oscilando com os movimentos caóticos daquela cáfila humana uniformizada na desgraça. O veículo perdia velocidade, parando. Passei meus braços ao redor do teu tronco e, mesmo nunca tendo acreditado em Deus, rezei para que tu não despertasses.

Porém, não foi assim. As portas da cabine se abriram, e tu retornaste exatamente quando eles chegaram.

Eram centenas contra as poucas dezenas de nós que saíam de cada vagão. Forçavam nossos passos adiante, por um estreito corredor, utilizando hastes metálicas que, a longa distância, emitiam centelhas elétricas. No tumulto, foi inevitável a separação: chamei teu nome, forcei os olhos na penumbra e, tendo, enfim, de aceitar a derrota, ainda juntei o que restava de mim e gritei uma jura de amor inútil, sufocada pela agonia de tantos. Naquele instante, não só a jura era em vão, o próprio sentimento tinha valor algum, impotente no confronto com a tragédia.

Cada indivíduo foi trancado em uma cela solitária, tão minúscula que as únicas opções são permanecer sentado ou deitar. Aqui neste galpão sem abertura alguma ao exterior, são centenas, talvez milhares delas, separadas em andares e baterias. A luz artificial, acesa o tempo todo, apenas varia de intensidade; tantas vezes me peguei rangendo dentes, sacudindo a cabeça e, quase em transe, implorando que ela se apagasse ao menos por um minuto. A temperatura aqui varia bastante e sem alternância lógica, como se as quatro estações disputassem perpétuo jogo de forças. Tudo programado, tudo para nos manter estimulados. Têm a mesma finalidade o papel e o lápis que me dão, e também esses sons que asfixiam: pássaros de mentira, chuva eletrônica, trovões computadorizados, ruídos diversos, fantasmas de uma realidade na música intermitente. Nenhum barulho, todavia, consegue se sobrepor aos gemidos dos prisioneiros e, menos ainda, ao trinado constante das correntes e engrenagens da Máquina. É assim que eles a chamam: a Máquina.

Sua estrutura de um anacronismo cruel ocupa toda a ampla área central do galpão. Começa em um trilho, ao longo do qual correm os ganchos em que as vítimas são presas pelos pés, de cabeça para baixo, uma procissão macabra de improváveis morcegos brancos. Dali, chega-se à serra rotatória, peça responsável pela decapitação. As cabeças, não sei bem por que, não são aproveitadas e, por isso, caem direto em um incinerador de detritos posicionado logo abaixo da lâmina. A próxima seção da Máquina é o tanque de escalda, um tonel de líquido em ebulição, onde são mergulhados os corpos para facilitar a posterior retirada da pele (infelizes aqueles que, em seu instinto de sobreviver, tentam se balançar ou dobrar o tronco para escapar da serra, pois acabam, muito feridos mas, ainda conscientes, encontrando seu fim nesse borbulhante Aqueronte, após prolongada agonia). A seguir, o tambor de escarificação, cilindro oco, posicionado na horizontal e revestido de lancetas móveis, que, girando em torno de seu eixo, com o agora indubitável cadáver em seu interior, remove-lhe a pele. Por fim, o picador, uma espécie de tubo onde os corpos são moídos grosseiramente ao mesmo tempo em que são centrifugados, a fim de separar o excesso de sangue e outros líquidos, os quais escorrem por canaletas até um grande ralo. O que resta, terminado o processo, são contêineres transbordantes de uma pasta vermelha, matéria viscosa formada pela anulação de centenas de seres que um dia existiram, experimentaram desejos e sensações, que pisaram na Terra e nela tiveram seu lugar – tudo transformado, quando eles chegaram, em uma coisa única, sem forma, massa em que o próprio sentido da vida foi diluído.



Relendo o que escrevi acima, surpreendo-me comigo, com a quase-frieza do parágrafo. Mas minha percepção nem sempre foi assim, o tempo se encarregou de me fazer pedra (muitas semanas, sim; vários meses já? há quanto tempo estou aqui?). Até a tua presença em meu pensar foi ralentando; seria uma heresia invocar a beleza da tua imagem e tuas mil sutilezas em uma mente tão conspurcada de sangue, tão mutilada pela violência.

Nos primeiros dias, não olhava para fora da cela, não enfrentava, de maneira alguma, a aterradora visão da Máquina, e a expressão, ou melhor, a ausência de expressão dos magarefes fazia-me gelar. Ao contrário do que se poderia supor, não tinham as faces contraídas de ódio ou qualquer vestígio de sadismo estampado nos rostos.

Estavam ali indiferentes, envolvidos em um trabalho mecânico – transportar os humanos acorrentados até a Máquina, prendê-los nos ganchos, cuidar para que nenhum escapasse vivo –, apenas mais um trabalho como tantos outros. Essa apatia constante e a semelhança deles com a nossa própria espécie eram, sem dúvida, fonte maior de desconcerto e pânico.

Pânico, aliás, foi o que me acometeu logo na primeira vez em que eles trouxeram a ração. Reconheci, de pronto, naquela papa cheirando a azedo, pedaços de carne quase crua, púrpura. Cogitei morrer de fome. Mas nem para isso tive veias e paixão suficientes – eu-pedra.

A última visão que tive de ti foi, creio, o estertor de minha capacidade de sentir.

Quando passaste, esbatida entre tantas outras pessoas, sendo conduzida à Máquina, alguma coisa se agitou dentro do meu peito. Tive vontade de gritar teu nome, espremer meu corpo entre as grades, tudo isso por um segundo. Engoli as palavras abortadas junto com a pouca saliva de minha boca seca. A certeza da minha morte, pensei, era, naquele momento, o consolo que tinhas para encarar a tua própria.

Desde esse dia, estranhamente, tenho comido a ração com mais voracidade, e a carne parece mais tenra e adocicada. Os vômitos são também mais comuns; contudo, sinto que estou ganhando peso. Acho que eles vão gostar.

Quando eles chegaram, o abismo – holocausto.


por Rafael Bán Jacobsen
(Agradeço ao escritor Diego Lopes pela sugestão do argumento.)


Ficção de Polpa - Volume 1 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.