sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Dura Lex Sed Lex Sem Jontex


"Querido diário o título da crônica está em latim e muito chique, que condiz muito com o judiciário. Pensei em colocar algo mais simples, tipo 'Advogados Nunca Entram no Céu', mas vou deixar como está, sem jontex ...

Bom, vamos à fúnebre história de hoje:

Era pra ser uma encomenda como outra qualquer. O sujeito chegou em casa, apanhou a esposa com outro na cama, rolou uma discussão, um revólver surgiu, e seis tiros depois tudo acabou: dois corpos assassinados e o de um suicida no mesmo quarto. Ou seja, serviço de rotina.

Mas não quando envolve três talentosos advogados de um dos mais caros escritórios do país. Roubada da grossa. Assim que apontei a direção do poço sem fundo, a mulher tomou a frente.

— Protesto! — disse ela ajeitando os óculos — Eu não vejo por que devo acompanhar o ilustre representante do passamento alheio até as profundezas. Sou uma vítima clara das circunstâncias. Não vejo como pode ser-me imputada alguma culpa nesta situação.

— Ah, não? — Suspirei fundo e puxei meu surrado exemplar dos Dez Mandamentos autografado pelo próprio Moisés na noite de lançamento das tábuas. Fui direto para o sétimo: “Não cometerás adultério”. Guardei o livro no bolso e empurrei os três para fora — Vamos logo que à noite o trânsito pro inferno sempre piora.

— Sem pressa, por favor, meu nobre e implacável ceifador — disse ela de forma tão educada que até me senti prestigiado — Até onde nós sabemos, os Dez Mandamentos são leis divinamente expressas por Deus para quem está sob Sua jurisdição. Se você verificar meu histórico verá que sou atéia, nunca recebi nenhuma espécie de batismo religioso, e sou casada apenas no civil com o meu marido aqui de alma presente. Data venia, não vejo onde, como, e nem por que, esta lei possa ser aplicada a este caso.

Havia furos na argumentação, eu sei. Mas ela falou com tanta certeza e segurança que fiquei na dúvida. Ela tinha O DOM. Decidi que iria levá-la para o limbo até o caso ir para uma revisão posterior. Mas cinco minutos de conversa depois ela me convenceu a levá-la para o paraíso. Segundo ela, conseguiríamos uma liminar em menos de uma hora para isso. Advogado bom é foda!

— Ok, vamos lá, tá decidido. — Eu disse — A mulher aqui vai para o céu. Já vocês dois vão suar os fundilhos nas thermas do capeta. Andando!

— Protesto! — Disse o Ricardão do pedaço — Por que a nobre doutora vai para o paraíso e EU devo ser levado para o inferno?

Puxei o decálogo do bolso outra vez e li, já meio inseguro, o nono mandamento: “Não cobiçarás a mulher do próximo”. Fim de papo.

— Sim. Mas se a minha ex-amante está perdoada por não ser casada religiosamente com o seu marido — disse ele — então, logo, oficialmente, aos olhos de Deus ela não era a sua esposa. Correto?

— Correto… — concordei, já meio confuso.

— E se ela não era a mulher dele, logo não cobicei a mulher do próximo. Na verdade não cobicei nada de ninguém. Portanto, data venia, a pena máxima do inferno para todo o sempre não deve ser aplicada ao meu caso.

Até tentei falar alguma coisa, mas parei no meio, pensativo. Ele tinha razão. Resolvi que não iria levá-lo para o inferno também. E por uma questão de jurisprudência iria encaminhá-lo para o paraíso junto com a mulher. Pareceu-me o mais justo a fazer na hora. Portanto só me restava levar o marido traído para as profundas do sofrimento eterno. Claro que ele chiou. E muito.

— Por que só eu?! Os dois me traíram. Protesto veementemente!

Eu já estava muito cansado daquilo. Somente a boa educação deles fazia com que eu não perdesse a paciência de vez. Puxei o sujeito de lado e fiz um pedido sensato.

— Cara, por favor, não complica. Você assassinou e se suicidou. Se isto não é motivo para eu te levar direto pro colo do tinhoso, o que mais pode ser?

— Mas é preciso levar em conta os meus antecedentes. Eu sou o único aqui que frequentava a igreja todos os domingos!

— É verdade. — disse o Ricardão com um sorrisinho sacana no rosto. A mulher sorriu de lado, cúmplice.

— Estou sinceramente arrependido do que acabei de fazer. — continuou o corno — E quem se arrepende ganha, ipso facto, o reino dos céus. Está na lei divina. Todo mundo sabe como funciona!

Tentei argumentar que ele deveria ter se arrependido em vida, e coisa e tal, mas não consegui. O cara, além de conhecer vários versículos do Novo Testamento que embasavam sua defesa, era mestre na oratória. Os outros dois o auxiliaram e disseram que todos ali poderiam fazer um acordo geral em que ninguém sairia perdendo, todos iriam para o paraíso. Inclusive me garantiram que eu sairia como grande herói da história, algo que contaria pontos no futuro para a minha carreira no além, afinal, Deus adorava estas coisas de misericórdia, perdão, e tudo o mais. Fiquei MUITO tentado a ceder, mas percebi que aquilo precisaria da intervenção de uma instância superior. Mandei os três calarem a boca, peguei o celular, e fiz uma ligação direta para Deus.

Deus me atendeu impaciente como sempre. Expliquei toda a situação, todos os argumentos, que Ele ouviu concordando sem falar nada. Somente quando mencionei que os três eram advogados é que o Todo-Poderoso estourou.

— Advogados?! — berrou Deus — ADVOGADOS?! E você está ensebando pra mandar os três pro inferno POR QUÊ?!

No mesmo instante as três almas sumiram da minha frente e foram para o inferno sem escalas num piscar de olhos. Ainda deu tempo de ouvir o Criador soltando um “será que eu tenho que fazer tudo por aqui?!” e desligando. Fiquei meio ofendido, claro, mas relevei.

E uma coisa ninguém pode negar: Deus é um Cara prático pra cacete. Não está onde está à toa."

Diário da Foice, 18/09/2010


Fonte: Diário da Foice

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