sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Pacto é Sinistro


"Por mais paradoxal que isso possa parecer, meu contato com o pessoal do além é mínimo. A minha agenda é tão lotada que nunca me sobra tempo pra fazer uma social decente. Vejo Deus e o Diabo muito raramente e quando a gente se encontra é só para falar de assunto de trabalho.

O capeta até me convida para um drink no inferno de vez em quando, mas sempre dou uma desculpa esfarrapada porque não gosto que me vejam muito na companhia dele. É meio queimação. Ainda mais no inferno.

No entanto, volta e meia nossos caminhos se cruzam. Não há como. Quando pintam umas complicações entre vocês, não tem jeito, somos obrigados a nos falar. Como uma vez em que fui buscar um bandidinho mequetrefe no Complexo do Alemão. O cara havia levado acidentalmente uns 138 tiros. Sei que isto vai contra a idéia de acidente, mas eu avisei que era no COMPLEXO DO ALEMÃO. Cheguei ao local e a alma do bandido saiu do corpo zunindo pra cima de mim, cheio de marra.

— Você não vai me levar! Eu não vou morrer.

Como isso me cansa. Mas ainda assim tentei ser delicado.

— Escuta, ô imbecil: se você está me vendo é porque já foi pro saco.

— Pode falar o que quiser, magrelo. Eu tenho o corpo fechado.

— Jura? Então como é que tem um pedaço do seu fígado no tapete?

— Isso é o de menos. Eu tenho um acerto aí. Com O CARA.

— Que cara? Tem dois que mandam no pedaço.

— Eu tenho um pacto com o DIABO!

— Ah é? E onde está ele agora que não me avisou nada?

No mesmo instante em que eu disse isso, meu celular tocou o seu “Hello Moto!”. Gelei. Olhei no visor e lá estava escrito “CAPETA”.O sujeitinho marrento me deu um sorriso cínico. Soltei um “merda” bem baixinho e me afastei para atender. Lúcifer estava preocupado do outro lado da linha.

— Solta o cara!

— Não dá! — eu disse — Se você tivesse falado antes.

— Ele fez um serviço grande pra mim. Não posso furar.

— Não tem jeito. O corpo está inutilizável.

— Muito?

— Digamos que é uma empada com 138 azeitonas.

— Merda! Espera só um minuto que eu já falo com você.

E desligou. Eu e a alma do bandido ficamos sozinhos, um de cada lado, meio sem assunto, num silêncio meio constrangedor. Mas o cara era marrento demais e resolveu mexer comigo.

— Tomou, saco de osso?! Não falei que eu tinha um acerto com O CARA? Me dei bem!

Comecei a rir. A rir não: gargalhar. Ele ficou puto.

— Tá rindo do quê?

— Você não sabe que não adianta fazer pacto com o demônio, ô panaca? Isso nunca dá certo. NUNCA! Ninguém se dá bem com ele.

— Eu não acredito nisso.

— É sério, faz parte do esquema. Todo pacto com o diabo tem alguma pegadinha irônica. É sempre assim: se ele promete a vida eterna, você pega prisão perpétua. Se você fica milionário, ele te manda pra uma ilha deserta. Se ele lhe promete talento pra ser um gênio da guitarra, você morrerá engasgado com o próprio vômito num quarto de hotel. Não adianta, mané: pacto com o diabo é sempre ROUBADA!

— Fica na tua, ô motoboy do além. Tá tudo dentro do combinado: quem mandou me apagar agora acha que eu tô morto. Só que eu vou continuar VIVO. E mais: vou sair dessa montado na bufunfa! Escondi uma grana boa de uma parada aí. Vou pegar o dinheiro e sumir pro Nordeste. Vou passar o resto da vida só comendo camarão e pegando as mulherzinha lá.

— Se é o que você acha…

Meu celular tocou de volta.

— É o seguinte — disse o pé-fendido pelo telefone — conversei com o Criador e Ele confirmou que não dá pra ressuscitar esse idiota, disse que até milagre tem limite. Mas como eu prometi fechar o corpo do cara preciso deixar ele vivo de algum jeito.

— Como?! O que sobrou dele não serve nem para fazer autópsia.

— O plano é o seguinte: tem um rapaz de 18 anos se suicidando AGORA a três barracos de onde vocês estão. A idéia é você pegar a alma do suicida e sumir com ela. Aí o outro que está aí do seu lado reencarna no corpo bom. Diz pra ele que é pegar ou largar.

Achei o plano uma loucura. Baldeação de alma nunca dá certo. Mas o marrentinho topou, pois percebeu que não tinha muita escolha, e fomos andando até o barraco do suicida que ficava realmente muito próximo dali.

Chegando lá nos deparamos com um corpo humano em EXCELENTE estado deitado numa cama em um bem arrumado quarto. Estranhei tudo. O rapaz que havia acabado de se matar tomando comprimidos era um moreno alto, bonito, de vidrados olhos verdes, malhado, um ex-ator de cinema que havia feito uma ponta no filme “Cidade de Deus”. Achei mais esquisito ainda. O sujeitinho marrento se animou.

— Este vai ser o meu novo corpo?! Urrú! Beleza! Me dei bem! Tchau pra você, magrelo! Fui!

Ele então encarnou no corpo caído e saiu batido pro hospital mais próximo para fazer uma lavagem estomacal.

Sem entender nada, perguntei à alma do suicida, que estava sentado quieto ali por perto, se ele se importava com aquilo. O desanimado ectoplasma deu de ombros. Não estava nem aí para nada. Perguntei, curioso, por que alguém tão jovem e cheio de vida se mataria daquele jeito. Ele relutou em dizer, até que cedeu:

— Eu me matei por desespero, tá legal? Eu tinha feito uma operação de troca de sexo que deu muito errado: fiquei sem o pau e ainda por cima não tinha ganhado uma vagina.

Suspirei aliviado. O velho Lu continuava o mesmo sacana de sempre."

Diário da Foice, 11/06/2010


Fonte: Diário da Foice

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