sexta-feira, 6 de julho de 2018

Gatos Católicos Enforcados


A ignorância humana, da qual nos ocupamos agora aqui, é a da "Grande Renascença" na Europa do século XVI, da tal "Reforma", quando os protestantes usaram gatos, bichanos enfeitados com vestimentas de bispos católicos e os enforcavam.


Quando em 1517 Martin Luther pregou suas 95 teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, um movimento de reforma surgiu, o protestantismo. Os gatos, de alguma forma, "representantes" do catolicismo, e sempre vítimas do abuso do homem, tornaram-se um símbolo chave para os protestos de ingleses reformistas. Muitas vezes os gatos representavam sacerdotes e clérigos, como em um episódio terrível que envolveu a crueldade ocorrida em Cheape, Inglaterra, como nos conta uma crônica do tempo:

"Em 08 de abril, sendo então domingo, um gato vestido com um traje de clérigo católico, com suas patas dianteiras amarradas, foi enforcado em Cheape, perto da cruz na freguesia de São Mateus" (Stow Chronicle p. 623 notas de rodapé, Jardine, 1847, p.46 ).

Os protestantes também queimaram efígies do papa recheadas com gatos vivos que, coitados, gritavam de dor e espanto, que agradavam demais as multidões loucas.

Então, nós éramos representantes da Igreja Católica? A mesma religião que nos dizimou na época daquele papa Gregório IX em 1227?

Faz favor! Até no Carnaval, todos os anos, a gente se esconde pra não virar couro de tamborim ... Humanos?


quarta-feira, 4 de julho de 2018

Ilha do Medo


O primeiro homem com quem falamos sobre a ilha do Medo, no porto de Salvador, olhou-nos de alto a baixo e emudeceu. Era um camarada de gestos mecânicos e poucas palavras, mas sabia muita coisa das vizinhanças do mar.


– O senhor sabe onde fica a ilha do Medo?

– Sei.

– Fica longe?

– Sim.

– Quantas milhas, mais ou menos, da costa?

– Umas doze ou quinze – disse ele. E empacou novamente.

O outro era um rapaz de olhos vivos e ariscos, blusão de zuarte desbotado aberto no peito e músculos saltados. Falou-nos de distâncias marinhas, peixes, alimentação e embarcações. Mas quando perguntamos se conhecia a ilha do Medo, desfez o sorriso que tinha amontoado num canto da boca e respondeu com secura: “Conheço”.

– Como é que poderíamos ir até lá?

– O senhor pretende ir à ilha do Medo?

– Sim.

– Fazer o que?

– Nada.

Notamos novamente o mesmo olhar do outro homem, nos olhos do rapaz de zuarte. As palavras começaram a diminuir, foram encurtando até virar monossílabos, que saíam angustiados de sua boca.

– Que diabo, rapaz, o que há com a ilha do Medo? Queremos ir até lá por curiosidade, ver o mato, os bichos, as ruínas dos holandeses. Outros querem ver as igrejas, os fortes ou o candomblé. Nós queremos ver a ilha do Medo.

– Mas nunca vai ninguém lá, – disse ele – a ilha está deserta. Só existem bichos selvagens no mato, depois…

– Depois o que?

– Contam coisas de arrepiar os cabelos.

– Que coisas, por exemplo?

O rapaz nos olhou mais uma vez, desconfiado, e disse, retirando-se:

– Se o senhor quiser ir, pode ir, mas eu não levo ninguém lá. Aquela ilha é mal assombrada, está cheia de fantasmas.

Bruxas de goelas de fogo

Miguel estava sentado no casco de um saveiro, emborcado na praia. Ao chegar, cumprimentamos, mas ele apenas levantou um pouco dos olhos a aba do chapéu e nos encarou demoradamente. Só respondeu ao cumprimento depois de familiarizar-se com a nossa presença. Soltou um “boa tarde” atrasado, olhou novamente para um ponto qualquer e começou a falar com desembaraço:

– Gilberto me disse que os senhores querem ir à ilha do Medo.

– Estamos aqui para isso. – Falamos com o moço no porto. – Ele nos informou que o senhor tem um saveiro grande.

– É o Leviatã. Está ali no meio daqueles barcos.

– Será possível sairmos amanhã?

– Sim, mas se não quiserem voltar tarde da noite, terão de se mexer muito cedo, ainda de madrugadinha.

– Bem, nós pretendemos passar o dia na ilha.

O homem fez a volta do saveiro e mexeu no leme, depois pegou uma lata de tinta que havia sobre a areia e encaminhou-se para nós de olhar muito vago e sem interesse.

– Bem moço, não que aquela ilha seja um inferno, mas contam coisas dela. Dizem que é mal assombrada. Os pescadores que se atrasam no mar ouvem gritos que partem de lá, e às vezes chamados pelo seu nome. Esses gritos são roucos e estranhos, como um choro. Vêm da ilha com o vento reboando pelo mar, depois somem e tornam a voltar mais fortes. Quando o mar está calmo, ouvem-se lamentos e uivos. E no meio disso tudo, o chamado, o chamado insistente, entrando pelos ouvidos deles, quando o saveiro está quase parado por falta de vento.

– Não vive ninguém na ilha?

– Ninguém. Faz muito tempo que ela está deserta. Desde o tempo dos holandeses, que tinham lá uma fábrica de pólvora.

E Miguel continua a sua narração estropiadamente, na sua linguagem meio do mar, meio da terra:

– Já viram coisas danadas na ilha do Medo. Uma vez, um pescador voltou dizendo que tinha visto uma mulher de cara negra e feia como a morte, que caminhou da ilha até o seu saveiro, sobre as águas. Tinha a boca imensa e as goelas incendiadas de labaredas vermelhas. Quando cegou ao lado do saveiro, ele sentiu um cheiro de enxofre e pano queimado.

– Mas a mulher fez alguma coisa ao pescador?

E Miguel respondeu:

– Não, mas depois que ele contou a história perdeu a fala para sempre.

– A alma danada dos holandeses que morreram na guerra habita a ilha do Medo, desde aqueles tempos. Se o senhor quiser ir, vá, mas eu não me responsabilizo pelo que houver. Os danados dos holandeses nunca abandonaram aquele lugar. Vivem até hoje na ilha, assustando os homens que se atrasam no mar. Também vão para lá os pescadores que morrem afogados na baía de Todos os Santos. É por isso que quando o mar está calmo, se houvem lamentos e uivos, vindos daquele lado.


Fonte: Jangada Brasil in "Sem indicação de autoria. “Na ilha do Medo há coisas de arrepiar os cabelos”. Folha de Minas. 29 de julho de 1951".

segunda-feira, 2 de julho de 2018

A Lenda da Morte

A crença na fatalidade da morte produziu no sertão a mesma lenda que existe no Oriente, com pequena diversidade de forma e nenhuma de substância. Onde quer que a alma popular pense do mesmo modo, se manifesta de idêntica maneira e, como ensina Van Gennepp, a qualquer momento em tema lendário bem localizado será achado num ciclo de contos populares em outro extremo do mundo.


Conta Paul de Saint-Vitor que, na Turquia, em certa época, todo o dia que Alá dava ao mundo um dos mais queridos pachás do sultão vinha saudá-lo na Sala do Divã e suplicar-lhe para ser nomeado governador duma cidade distante. Justificava o pedido com uma desculpa qualquer.

O soberano não o queria atender e até já estava se aborrecendo com aquela insistência, quando o velho servidor do trono confessou o verdadeiro motivo do seu desejo de deixar Istambul. Todas as manhãs, ao sair de seus aposentos, encontrava a Morte que lhe cravava olhos de espanto. Já não podia mais com essa obsessão. O sultão tomou a narrativa como caduquice, teve pena do pachá e mandou-o para onde tanto queria ir.

Semanas depois, passeando a noite pelo jardim do palácio, o sultão encontrou a Morte e interpelou-a:

- Porque perseguias o meu velho pachá, fitando-o diariamente com olhos de espanto?

E ela respondeu:

- Porque recebi ordem de matá-lo na cidade para onde foi nomeado governador e me admirava de ainda vê-lo por aqui ...

Esta certeza de que ninguém escapa à morte no dia marcado se consubstancia também numa história sertaneja:

Um caçador armou um mondéu por trás dum cemitério, a fim de pegar um tatu que costumava andar por ali. Numa noite de luar, topou com o maior espanto a Morte presa naquela armadilha, cujo pesado tronco lhe caíra sobre uma das tíbias. O corpo esquelético se estirava no chão, envolto no branco lençol e a foice rolara por uma ribanceira, ficando dependurada numa raiz de angico. Gelado e imobilizado de pavor, o matuto ouviu a Morte chamá-lo:

- Venha cá! Livre-me deste mondéu e o recompensarei.

Cobrou algum ânimo, aproximou-se e, aproveitando o ensejo, pediu-lhe, como recompensa para libertá-la, o direito de viver sadio e forte até avançada idade, que somente diria depois dela lhe revelar quanto teria de vida, se não fosse aquela ocasião de prestar-lhe um favor. Ela respondeu sinceramente que isso não lhe era possível revelar e nem seria preciso para que dissesse quantos anos desejava de existência.

- Cento e vinte! Exigiu o caçador.

A Morte acedeu e ele a libertou. Viveu sempre rijo e feliz, assombrando o sertão e vendo o desfile das gerações, aquele longo período. No dia em que se completava o prazo obtido com o acordo, teve medo de morrer e resolveu enganar a Morte. Raspou completamente barba, bigode, cabelos e até sobrancelhas, de modo a se tornar irreconhecível e se meteu num baile que davam no lugar onde morava.

Perto da meia-noite, que era quando terminava o prazo, a Morte, que o procurava por toda a parte sem o achar, veio ter a festa, perguntando se o tinham visto; mas ninguém lhe dava a menor notícia dele. Aproximava-se a hora fatal. Então, ela examinou um por um os convivas e, ao bater a primeira badalada das doze horas, disse, segurando o nosso caçador pelo braço:

- Como não tenho mais tempo de procurar o velhaco e não quero me retirar de mãos vazias, levo comigo este pelado!...

Gustavo Barroso

Gustavo Barroso (Gustavo Dodt Barroso), historiador e folclorista, nasceu em Fortaleza, CE, em 29/12/1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3/12/1959. Publicou, entre outras obras, Terra de sol, Rio de Janeiro, 1912; Heróis e bandidos, Rio de Janeiro, 1917; Casa de marimbondos, São Paulo, 1921; Ao som da viola, Rio de Janeiro, 1921 (2 ed. aumentada, Rio de Janeiro, 1949); O sertão e o mundo, Rio de Janeiro, 1923; Através dos folclores, São Paulo, 1927; Almas de lama e de aço, São Paulo, 1930; Mythes, contes et légendes des indiens, Paris, 1930; Aquém da Atlântida, São Paulo, 1931; As colunas do templo, Rio de Janeiro, 1932.


Fonte: Jangada Brasil - (Barroso, Gustavo. Ao som da viola; nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949).

domingo, 17 de junho de 2018

Mozart Couto


Mozart Couto (Mozart Cunha do Couto), ilustrador e autor (desenhista e argumentista/roteirista) de histórias em quadrinhos, nasceu em 27 de março de 1958 em Juiz de Fora, Minas Gerais. A carreira profissional de Mozart Couto começou em 1978, ao fazer seus primeiros trabalhos para a Grafipar, sob a batuta de Claudio Seto. Para o Estúdio Bico de Pena, junto com Franco de Rosa, produziu o herói bárbaro “Zamor”, em 1982.


Por volta de 1986 fez dezenas de histórias e capas para as revistas de terror e ficção da Press Editorial. Entre elas: “Superficção”, “Ambrak” e “HellDorado”, além ser colaborador regular da magazine “Calafrio”, de Rodolfo Zalla. O estilo agressivo e encorpado de Mozart – que chegou a ser comparado ao de John Buscema (por quem realmente nutre admiração) – sempre o destacou como um dos preferidos dos leitores.

Ainda nos anos de 1980 fez trabalhos de encomenda para a agência internacional Comu. Colaborou com a Opera Graphica, produzindo capas para “Fantasma Gold”, Crônicas do Fantasma” e “Fantasma Magazine”, além de realizar o álbum didático “Desenhando Arte Fantástica” e uma magazine estilo “espada-feitiçaria” com o herói “Brakan”, que co-criou junto com Júlio Emílio Braz.

Produziu para diversas editoras do eixo Rio-São Paulo recebendo, em 1986, o Prêmio Angelo Agostini, da Associação de Quadrinhistas e Cartunistas de São Paulo, como melhor desenhista. Dono de um traço inconfundível de realismo impressionante, em 1988 começou a exportar seus trabalhos para a Europa, onde foram publicados álbuns de histórias em quadrinhos e tiras de jornais; algumas dessas publicações com circulação na Bélgica, França, Alemanha, Dinamarca e Holanda.

Em 1993, entrou no mercado norte-americano colaborando em revistas das editoras Marvel Comics, DC Comics, Acclaim Comics, Dark Horse e Image Comics, desenhando conhecidos personagens como Mulher Maravilha, Thor, Hulk, Elektra, Turok, Glory, Gamera, e outros. O (Mike) Deodato convido para ajudá-lo na produção que era muita. Como sempre se deram bem nos trabalhos que fizeram, ele aceitou.

Mas não foi muito agradável porque descobriu nessa época que estava muito cansado de desenhar quadrinhos. Foram muitos anos trabalhando ininterruptamente com quadrinhos, e nessa época tinha que produzir muito rápido e desenhos muito elaborados e muito ‘limpos’, bem definidos, para o arte-finalista trabalhar bem. Ele estava também querendo trabalhar com cores, e com estilos mais soltos, fora da estética mais usualmente aceita pelos leitores de quadrinhos. Precisava mesmo dar um tempo, e também não se adaptou ao estilo americano e às exigências desse mercado. Então, durou pouco. Resolveu sair fora e seguir outros caminhos.

Atualmente Mozart tem se dedicado mais à ilustração. Sua produção é dirigida para livros didáticos, para-didáticos, literatura em geral, livros de RPG, capas de CDs, histórias em quadrinhos promocionais, criação de personagens para diversos fins e outros. Entre seus clientes contam-se editoras como FTD, Saraiva, Ática, Melhoramentos, Paulinas, Record, Ave-Maria, Moderna e Scipione.

Foi ganhador, com o livro "Nosso Folclore" (editora Ave-Maria), do Prêmio Jabuti na categoria de melhor livro didático de 1999 e, em 2000, do certificado “altamente recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Infanto-Juvenil pelas ilustrações no livro A Carta de Pero Vaz de Caminha, da Editora Moderna.


Fontes: Mania de Gibi Blog; Wikipédia.

Vampiros Voam ao Entardecer!

Quadrinhos do Terror apresenta: "Vampiros Voam ao Entardecer!" - Uma cidade italiana do interior é atormentada pela maldição dos mortos-vivos -, da revista Creepy nº 1. História: Archie Goodwin; Arte: Reed Crandall; Publisher: James Warren.





sábado, 16 de junho de 2018

A Morte Planejada


MARTINS TINHA UMA BOA esposa. Vivia com Maria há dez anos. Eles não tinham filhos. Martins era pedreiro. Construía casas. Só para pessoas ricas. Ele não aceitava trabalhar para pobres ou remediados.

Martins tinha uma amante. Estava com ela há dois anos. Seu nome era Márcia. Ela era muito ciumenta. Maldizia a hora em que vira Martins e se apaixonara por ele. Márcia não aceitava ser a outra. A amante. Ela queria ser a esposa de Martins.

- Amor, quando você pedirá o divórcio de sua esposa?

- Ainda não sei. Não é fácil decidir.

- Você sempre me responde assim. Estou cansada de ser a outra e de dividi-lo com outra mulher. Quero você só para mim. Quero ser a sua esposa. Não quer ser abandonada quando ficar velha e não ter ninguém por mim.

- Nunca lhe escondi nada. Sempre lhe disse que seria difícil separar-me de Maria enquanto minha mãe fosse viva.

- Sei. Mas sua mãe morreu já faz um ano.

- Você precisa ter paciência.

- Mais ainda.

- Não é fácil.

- Não seria fácil se vocês tivessem filhos. Ela é seca. Não sei o que você vê naquela mulher.

- Ela é sua melhor amiga. Como você pode falar dela assim.

- Por isso mesmo. Eu a conheço não é de hoje.

- Sei...

- Quando ela me conta o que vocês fazem na cama tenho vontade de esganá-la. Seguro-me tanto para não pegar o pescoço dela e matá-la como se fosse uma galinha.

- Nem pense nisso. Evite entrar nessas conversas. Você é muito melhor do que ela.

- Sei. Mas não sei até quando vou suportar essa situação. Sou muito ciumenta. Não sei o que eu tinha na cabeça quando me envolvi com você.

- Eu sei.

-Engraçadinho. Estou falando sério.

- Preciso ir. Ela está me esperando. Nós vamos ao aniversário do Jaime. Você vai também?

- Claro! Você acha que eu vou perder um forró desses? Vou dançar a noite toda... com você.

- Não exagere. Você sabe que ela está desconfiada

- Está certo.

Márcia olha para Maria com desdém.

- Sua esposa é mesmo uma grande idiota.

- Sua amiga é idiota?

- Não sou amiga dela.

- Mas finge ser. Ela é sua amiga. Conta-lhe todos os segredos. Você é apenas a ouvinte e se aproveita disso.

- Que proveito tenho eu? Sou obrigada a dividi-lo com ela. Uma pata sonsa.

- Um dia serei só seu.

- Quando?

- Não sei. Talvez se ela...

- Complete.

- Não! Jamais faria isso.

- Eu faria.

- Nem se atreva.

- Veja o meu desespero. Sou capaz de matar só para ter você só para mim.

- Você é louca!? Não fale assim nem brincando.

- Não estou brincando. É sério.

- Vamos sentar e beber cerveja. Estou cansado.

- Eu também estou. Mas é da nossa situação.

- Márcia, como vocês dois dançam bem. Sobre o que vocês tanto conversavam? Estavam tão sérios.

- Nada demais, amor.

- É. Nada demais.

A festa acabou e todos voltaram para casa. Márcia morrendo de ciúmes, pois tinha certeza que as danças com ela haviam acendido o desejo de Martins e ele iria matar seu desejo com a pata da Maria. E ela ficaria em casa sozinha deitada na cama chupando dedo e imaginando os dois na cama, morrendo de desejo. Precisava acabar com essa situação de qualquer jeito. Decidiu apelar para uma conhecida que poderia ensinar-lhe uma forma de se livrar de Maria.

- Sim. Eu sei o que fazer para que o seu amado seja só seu. Eu já passei por isso. E já fiz muito disso. Não tem erro. Você quer isso mesmo?

- É o que eu mais quero na vida. – respondeu Márcia.

- Muito bem. Preste atenção. Você deve pegar um sapo e deixá-lo debaixo da sua cama. Você tem que fazer amor com o seu homem nos sete dias seguintes, sem tirar o sapo debaixo da cama. Numa sexta-feira, você deve pegar o resto de comida, que sobrou no prato da sua rival, e colocar dentro da boca do sapo. Costura a boca dele e enterre o sapo no cemitério, numa cova recém aberta. Logo você verá o resultado. Ninguém escapa.

Márcia seguiu as orientações. Numa quinta-feira:

- Querido!

- Diga, Márcia.

- Quero lhe pedir um favor.

- Peça.

- Maria é boa cozinheira?

- Mais ou menos. Você é melhor.

- Sei. Eu gostaria de experimentar a comida dela.

- Você já comeu tantas vezes em nossa casa. Você já conhece.

- Eu sei. Mas eu sempre ajudo. Eu quero uma comida sem minha ajuda e tem que ser uma que ela deixou no prato. Não quis comer mais.

- Por que?

- Porque sim. Você pode satisfazer essa vontade do seu amorzinho?

- Posso. Amanhã eu trarei para você.

- Não Esqueça. É muito importante para mim.

- Certo. Não esquecerei.

No dia seguinte, Martins chegou. Entrou. Márcia estava tomando banho.

- É você, amor?

- Sim, querida.

- Você trouxe o que eu lhe pedi ontem?

Martins havia esquecido completamente. Olhou para o forno do fogão e viu um prato com comida.

- Trouxe. Você acha que eu esqueceria um pedido seu?

- Que bom, amor. Hoje eu vou acabar com você na cama para lhe mostrar todo o meu amor.

- Ótimo.

Martins foi até o armário e pegou um prato que sabia era de Maria. Abriu o forno do fogão e colocou metade da comida, que estava no prato dentro do forno, no prato de Maria. Pegou papel alumínio e cobriu o prato. Quando Márcia saiu do banheiro, foram para o quarto. Ela cumpriu o que havia prometido.

No dia seguinte, sexta-feira, Márcia levantou bem cedo. Pegou o sapo que estava preso sob a cama e o matou. Abriu a boca do sapo e colocou toda a comida, que Martins havia trazido da casa de Maria, dentro da boca do sapo. Depois costurou a boca do sapo. Colocou-o dentro de um saco e o saco dentro de uma sacola. Saiu. Pegou um ônibus até o cemitério da Lapa. Entrou e andou pelas alamedas procurando uma cova recém aberta. Não demorou muito para achar. Olhou para os lados. Não viu ninguém. Afastou a coroa de flores e fez um buraco com as mãos enluvadas. Retirou o sapo do saco e o enterrou. Satisfeita e feliz saiu do cemitério. Pegou o ônibus e voltou para casa.

No outro dia visitou Maria, que a recebeu muito feliz. Almoçaram juntas. Márcia não notou nada de diferente em Maria. Talvez ainda fosse cedo. Esperaria.

Dois meses. Três meses e nada. Márcia já estava pensando que tudo não passara de história falsa.

Numa sexta-feira, Márcia sentiu como se um bolo estivesse parado na sua garganta. Sensação terrível. Bebeu água. A sensação continuou forte. Na hora do almoço, sentou-se para comer. Não conseguiu. Algo impedia que a comida descesse. Bebeu mais água. A fome aumentava. No jantar também não conseguiu comer nada. Quando Martins chegou, estranhou.

- O que houve, amor? Você está esquisita

- Nada.

- Você está naqueles dias?

- Não.

- Você está pálida.

- Não estou me sentindo bem. Acho que foi alguma coisa que comi no almoço. Amanhã estarei melhor, com certeza.

- Quer tomar alguma coisa para melhorar?

- Não, obrigada. Já tomei. Vou dormir e melhorarei. Hoje você não precisa fazer hora extra. Pode ir para casa.

- Está certo. Qualquer problema me telefona.

- Não se preocupe. Tudo ficará bem.

Martins saiu e Márcia deitou-se na cama. No dia seguinte, a mesma sensação na garganta. Estava morrendo de fome. Tentou comer pão e beber café. Não conseguiu. Agora nem líquido passava pela garganta. Desesperada começou a andar pela casa. Telefonou para Martins. Ele havia saído. Deixou recado. Deitou-se. As horas passavam e a fome a deixava louca. Hora do almoço, novamente não conseguiu comer. O desespero tomava conta dela.

Quando Martins chegou, ela estava desesperada. Assustado Martins disse:

- Vou levá-la ao pronto-socorro. Você não pode ficar assim.

- Não. Eu não quero.

- Você está horrível. Alguma coisa está acontecendo com você. Veja sua pele.

- Eu sei. Não sei.

Márcia começou a chorar. Martins, sem entender nada, a abraçou.

- Eu não quero morrer. – Márcia soluçava.

- Você não vai morrer. Vamos ao hospital.

- Não!

- O que eu posso fazer por você? Vou chamar Maria.

- Não! Não faça isso. Eu não quero que ela me veja assim.

- Alguma coisa tem que ser feita. Você não pode ficar assim.

- O que será que deu errado? Era para Maria sofrer e morrer. Não eu!

- Como assim?

- Quando eu lhe pedi para trazer um prato com resto de comida de Maria era para preparar um trabalho para ela morrer. Você trouxe, mas quem está morrendo sou eu.

Márcia contou para Martins o que ela havia feito para tê-lo só para ela. Martins entendeu o que estava acontecendo e contou para Márcia o que ele havia feito naquele dia. Márcia desabou. A sua dúvida se confirmara: o feitiço virara contra a feiticeira.

Uma semana, Márcia já não se levantava da cama. Maria estava ajudando-a. Fora levada a um médico que nada vira de errado. Passou remédios. Mas ela não conseguia beber. Foi levada para o hospital e colocada no soro. Mesmo assim, enfraquecia, emagrecia. Já era só pele e osso.

Estava horrível. Num último esforço:

- Martins, pelo amor de Deus, vá até o cemitério da Lapa e procure o túmulo onde enterrei o sapo e abra a boca dele.

- Como vou encontrar o túmulo?

- Não sei! Procure.
Martins saiu desconsolado. Andou pelo cemitério da Lapa procurando túmulos. Nos poucos que mexeu não encontrou nada.

- Márcia, não consegui encontrar nada.

- Leve-me até lá. Quem sabe eu o encontre.

- Como vou tirá-la do hospital?

- Não importa como. Tire-me daqui.

Martins subornou uma enfermeira e levou Márcia até o cemitério da Lapa. Vagarosamente, Márcia caminhou pelas alamedas. Não conseguia lembrar onde enterrara o sapo. Triste desanimou.

- Leve-me para casa. Quero morrer na minha cama.

Maria não saía do pé de sua cama. Pronta para ajudar no que fosse preciso. Sempre que Márcia abria os olhos, via o rosto de Maria.

Naquela noite, Márcia morreu. Pesava apenas 20 quilos.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

sexta-feira, 15 de junho de 2018

O Regime Amaldiçoado


O CHEIRO DE COMIDA invadia a sala. João e Maria estavam assistindo a um filme na televisão. João sentiu o aroma e disse:

- Estou morrendo de fome, querida. Hoje não vai ter comida novamente?

- Não. Eu estou de regime. Preciso perder 10 quilos.

- Mas eu não estou de regime. Sempre fui pele e osso.

- Você tem que ser solidário. Não quer me ver magrinha e gostosa. Causar inveja aos seus amigos?

- Estou passando fome e eu adoro comer. E todo dia o cheiro da comida da Miriam entra em nossa casa. É muito sofrimento. Prefiro você assim gordinha e eu bem alimentado.

- Nada disso! Comecei e vou até o fim. Apostei com Marli e a Creuza. Quem perder 10 quilos primeiro ganhará cem reais das outras. Eu quero perder peso e ganhar duzentos reais.

- Posso ir até a esquina e comprar um churrasco, uma pizza? Comerei escondido de você.

- Não! Você tem que sofrer comigo. Vamos para a cama. Quero perder algumas gramas no amor.

- Eu estou muito fraco. Você não tem percebido que ultimamente eu não tenho dado conta do recado. Canso e durmo. Trabalho muito e me alimento mal.

- Não quero nem saber. Você é homem e tem que me satisfazer. Eu não me importo em fazer tudo. Basta que ele fique pronto. Vamos!

- ...

- Eu lhe disse. Preciso me alimentar.

Foi até a cozinha e ficou triste quando viu a geladeira vazia. Voltou para o quarto. A esposa já dormia. Saiu, foi até a pizzaria e comeu rapidamente uma pizza quatro queijos.

Voltou, deitou-se e dormiu também. No outro dia, quando acordou teve uma surpresa.

- O que é isso? Você ficou louca?

- Não.

- Então me desamarre da cama. Preciso trabalhar.

- Só se você prometer uma coisa?

- O quê?

- Fazer regime comigo.

- Passar fome com você?

- Se você prefere ver as coisas assim.

- Não. Solte-me.

- Não.

- Está bem. Eu faço regime com você. Solte-me.

- Eu não acredito em você. Ontem você saiu e comeu na pizzaria. Vai ficar amarrado até terminar o meu regime.

- Você ficou louca!? Preciso trabalhar.

- Meu trabalho será suficiente.

- Vou perder meu emprego. Não está fácil arrumar emprego.

- Eu sei. Se você se comportar, quando eu perder os dez quilos, eu soltarei você e sustentarei a casa, com o meu trabalho, pelo tempo que for preciso para você arrumar outro emprego.

- Ficar sem comer afetou o seu juízo?

- Talvez. Mas você verá que valerá a pena.

- Solte-me. Eu vou gritar!

Antes que ele começasse a gritar, Maria colocou uma fita colante sobre sua boca. Ele se retorceu na cama. Mas estava muito bem amarrado. Ela saiu do quarto e ele ouviu as portas sendo fechadas. Ouviu a vizinha cantando. Sentiu o cheiro da comida dela. Retorceu o corpo, mas nada conseguiu. Muito tempo depois, ela entrou no quarto.

- Amor! Cheguei. Já perdi dois quilos. E elas só um. Logo vou poder soltar você. Boa noite. Ah, liguei para o escritório e disse que você precisou viajar urgente para Salvador porque sua mãe está muito doente e que você só voltará quando ela se recuperar. Sei que sua mãe já morreu, mas eles não sabem. Talvez assim você não perca o emprego. Boa noite.

João a via todos os dias entrando no quarto e dizendo quantos quilos havia perdido. Não sabia há quanto tempo estava preso. Um grande sono e moleza tomaram conta de seu corpo.

Dormia, dormia, dormia. Só acordava quando ela chegava da rua e lhe dava água e uma sopa rala através de um canudo que introduzia na fita colante. O tempo passava e João tinha certeza que morreria antes de Maria perder os dez quilos. Seu raciocínio era lento. Não pensava mais. Apenas um grande ódio crescia dentro dele. E este ódio o alimentava diariamente para sobreviver.

- João, acorda, João! Consegui! Perdi quinze quilos e ganhei os duzentos reais. Vou soltar você. Veja como eu estou magra e gostosa. Todos os homens mexem comigo na rua.

Ele não a ouviu. No decorrer dos dias ela o alimentou com sopas. João recobrou, pouco a pouco, as suas forças. Já conseguia andar se amparando nos móveis. Via Maria quando ela chegava do trabalho feliz e magra. Seu ódio crescia. João não saía de casa.

Numa quinta-feira, Maria estava assistindo televisão, a vizinha cantava e o cheiro da comida que ela cozia invadia a casa. João, silenciosamente chegou por trás de Maria e deu uma, duas marteladas na cabeça dela. O sangue jorrou e o corpo caiu no chão. João a arrastou até o banheiro e colocou-o dentro da banheira. Com uma faca afiada, cortou o corpo em vários pedaços.

Separou as carnes. Colocou tudo no freezer.

No dia seguinte, sexta-feira, tirou vários pedaços e colocou-os na geladeira. Foi trabalhar. Convidou os amigos para almoçarem no sábado. Feijoada à moda do João. No sábado, começou a preparar as carnes. Colocou pedaços da cocha e dos braços em assadeiras. Assou-os.

Fritou nacos de carne das nádegas. Preparou batatas cozidas com carne da batata da perna, arroz pedaços da língua e das orelhas, feijão com carne dos seios e salada de legumes com pedaços do nariz. A Feijoada tinha, além da carne de porco, vários pedaços dela e os dedos sem as unhas. Os amigos começaram a chegar trazendo cervejas, batidas, pingas. A alegria tomou conta da casa. O forró animava os convidados. Comemoravam o retorno de João.

Todos se sentaram à mesa. A vizinha, Miriam, o marido e os dois filhos compareceram.

Alguém perguntou:

- Onde está Maria?

- Viajou às pressas para o Norte. Não sei quando volta. Passe a caipirinha para mim.

Todos comeram e beberam até se fartarem. Saíram elogiando o almoço preparado por João.

- As carnes estavam muito gostosas – disse o vizinho.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

A Comida Está Boa, Meu Bem?


CATARINA E O BEBÊ MORRERAM no parto. Desconsolado, Josué passou dois meses chorando a morte da esposa. O que mais sentia era que Catarina era uma boa mulher na cama e uma ótima cozinheira.

Nunca repetia um prato. Sabendo que sua outra filha de dois anos precisava de uma mãe, e ele de uma mulher, resolveu se casar novamente. Casou-se com Márcia, uma vizinha solteirona, que era muito amiga de sua finada esposa.

Ao contrário de Catarina, Márcia era ruim de cama e péssima na cozinha. Maldita hora em que a escolheu para se casar. Sabia fazer apenas arroz, feijão, ovo, carne e macarrão. Todo dia era a mesma coisa. Nunca mudava. Arroz, feijão mais ovo. Carne, macarrão mais ovo. Dois mais um, dois mais um, dois mais um. Já estava enjoado. Na primeira briga disse que ela era ruim de cama e péssima cozinheira. Márcia não disse nada. Apenas o olhou.

Logo Josué arrumou uma amante. Chegava em casa tarde. Quase não via sua filha. Nem se preocupava com ela. Achava que Márcia cuidava bem dela. Pelo menos isso.

Nos finais de semana ficava no bar. Ali almoçava e jantava. Dormia sem tomar banho. A barba estava sempre cerrada. Seu perfume era pinga e cerveja.

Quando chegava em casa bêbado, brigava com a mulher. Humilhava-a de todas as formas. Sempre frisava pejorativamente a atuação dela na cama e na cozinha. Ele não percebia o ódio que crescia dentro dela. Principalmente quando ele falava da finada.

Márcia decidiu que se vingaria. Ela tinha uma vida sossegada, de solteira. Nunca se preocupou com homem. Casou com ele porque pensou que ele era uma boa pessoa. Mas ele só sabia infernizar a vida dela. Começou a fazer um curso de culinária. Mas não tinha jeito. Tudo desandava. Mas precisava insistir para poder por seu plano de vingança em prática.

Numa noite em que Josué estava sóbrio, Márcia lhe disse que precisava visitar sua mãe em Pernambuco. Ela estava muito doente. Ela sabia que ia morrer e chamara todos os filhos para se despedir. Disse que levaria Jaqueline para casa da mãe dele em Sorocaba e que ela ficaria por lá enquanto estivesse em Pernambuco. Josué concordou rapidamente porque não tolerava mais a mulher.

No dia seguinte, quando chegou em casa, a mesa da sala estava posta. Josué estava com fome, mas sentiu ânsia de vômito quando pensou na comida que a mulher sempre preparava. No entanto, sentiu um cheiro gostoso vindo da cozinha. Entrou na cozinha e Márcia disse:

- Meu amor, aprendi a fazer um pratos especiais no curso. Fiz para você. Sei que vai gostar. Amanhã viajo para Pernambuco e quero que esta seja uma noite agradável.

- O que você fez? Parece delicioso.

- Sente-se na mesa e espere. Já vou servir.

Faminto, Josué sentou-se. Márcia entrou trazendo duas panelas. Quando ele tirou a tampa, sentiu um cheiro delicioso. Era carne. Mas o sabor era totalmente desconhecido para ele.

- A comida está boa, meu bem?

- Deliciosa.

Josué repetiu várias vezes. Márcia disse que tinha mais da mesma carne na geladeira e no freezer.
Amanhã ele poderia comer mais.

No outro dia, bem cedo, Márcia partiu.

Josué levantou-se e foi trabalhar. Passou o dia inteiro pensando na deliciosa comida. Não via a hora de chegar em casa e comer mais.

Aproveitando a ausência da esposa, convidou a amante para jantar com ele e passar a noite. Os dois chegaram. Francisca, a amante, foi até a cozinha preparar a comida.

Francisca abriu a geladeira e gritou. Josué correu para a cozinha e viu Francisca desmaiada no chão. Ela voltou a si e, balbuciando e tremendo, pediu para ele olhar a geladeira. Josué se levantou e foi até a cozinha. Abriu a geladeira e viu pedaços de um corpo humano espalhados dentro dela.

Quando abriu o freezer viu a cabeça de sua filha.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

Os Cães Assassinos


JOÃO ERA CAIXA NUM BANCO. Tinha uma vida pacata. Era solteiro e morava na Lapa de Baixo com os pais e duas irmãs. Família muito religiosa, frequentavam a igreja da Lapa todos os domingos. Não perdiam uma missa.

Era quase meia-noite. Maria caminhava preocupada. Não devia estar na rua naquela hora. Muito perigoso. Apertava mais o passo. Estava quase correndo. Parecia que sua casa nunca chegava.

Sentia um medo muito grande. Precisava passar por um pedaço da rua que possuía um grande terreno baldio e era escura. Devia ter dado ouvidos a Sônia e ter dormido na casa dela. Mas a preocupação com a sua mãe, sozinha esperando-a, fora maior. Decidiu que comprará um telefone para evitar esse tipo de problema. Bastaria ligar e pronto. Amanhã mesmo verá isso. Agora é fácil ter telefone ou celular. Melhor telefone. Continuava caminhando, rezando. A parte escura do caminho estava chegando.

O relógio da igreja da Lapa soou meia-noite.

Quando estava na metade do caminho sentiu uma mão por trás que tampou-lhe a boca e a arrastou para o meio do mato. Ela lutou, mas a mão era forte. Foi jogada no chão. Implorou para que ele não fizesse nada. Ele a mandou calar a boca. A lua, que até então estava encoberta por nuvens, surgiu. Redonda, grande, iluminou o rosto do homem. Maria olhou bem para ele. Implorou, pediu, chorou. Ele mandou calar a boca.

Enquanto ele fez o que quis Maria olhou bem para ele. Quando acabou ele disse:

- Você olhou muito para mim.

Ele sentiu o olhar mudo de Maria. Um olhar cheio de ódio. Ela disse numa voz rouca:

- Eu vou me vingar de você. Mesmo se você me matar eu voltarei e me vingarei de você.

Ele riu e disse:

- Você não é a primeira que eu mato. Colocou as mãos no pescoço dela.

No outro dia, uns moleques encontraram o corpo e chamaram a polícia.

João, como todos os dias, chegou em casa às seis horas. Entrou, tomou banho, jantou e se recolheu em seu quarto. Trancou a porta. Os pais e as irmãs ficaram na sala assistindo televisão. No dia seguinte, saiu de casa e viu, do outro do lado da rua, um cachorro enorme preto. Não se incomodou. Não gostava de cachorros.

Trabalhou normalmente. Quando chegou em casa, viu o cachorro novamente. Todos os dias o cachorro estava ali, acompanhando quando ele saía e esperando a sua chegada. A presença ostensiva do cachorro incomodava João.

Um mês depois, eram dois cachorros. Depois três e depois quatro. Eram todos negros e grandes. Olhavam para ele. Não o seguiam na rua. Quando João, de sua janela, olhava para a rua, os cachorros estavam olhando para ele. Resolveu que no dia seguinte chamaria a carrocinha para recolher os cachorros. A carrocinha levou os cachorros. Eles não esboçaram nenhuma reação.

Na manhã seguinte eles estavam lá de novo, olhando para João que os olhava da janela.

Segunda-feira. Onze horas da noite. João olhou a rua de sua janela. Os cachorros não estavam lá fora. Sem fazer barulho, saiu de casa. Caminhou olhando para trás. Não viu ninguém. Muito menos os cachorros. Entrou no mato. Sentou sobre uma pedra e esperou.

Logo surgiu uma moça caminhando apressada. Ele levantou-se e a atacou.

Quando a estava arrastando para o meio da mata sentiu uma fisgada na batata da perna e gritou de dor. Soltou a moça. Ela correu.

Ele olhou para baixo e viu o enorme cachorro preto preso em sua perna. Apareceu outro que lhe mordeu a outra perna. João caiu. Apareceram os outros dois. Os cachorros o arrastaram para a mata. João gritava de dor. As nuvens andaram e a lua cheia apareceu no céu.

Quando pararam de arrastá-lo, um dos cachorros subiu em cima dele e olhou nos olhos dele. João viu o olhar do cachorro sob a luz do luar:

- Eu não disse que ia voltar e me vingar. Voltei e trouxe as suas outras vítimas.

João compreendeu. Fechou os olhos. Os cachorros estraçalham o corpo de João.

Comeram sua carne a noite inteira. Cavaram um buraco e enterraram os ossos.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

O Plano Macabro


OS ALUNOS DO COLÉGIO LAPA estavam sentados nas mesas da lanchonete em frente à escola. Bebiam sucos e refrigerantes. Fumavam. As conversas eram cheias de palavrões e gritos. Alguns estavam sentados na calçada conversando com os fones do walkman nos dois ouvidos. Outros olhavam revistas. Mais afastados, outros, com cadernos abertos, copiavam lição, versos ou desenhavam. Casais trocavam beijos.

Numa das mesas da lanchonete, cinco colegas de classe do terceiro ano conversavam.

Estavam revoltados, furiosos, enfurecidos. Mas conversavam baixo. Seus olhos estavam vermelhos, demonstrando que choraram muito. Foram reprovados na escola. Terão que cursar novamente o terceiro ano.

A conversa deles tinha como objetivo planejar a vingança contra a professora que, na opinião deles, liderou a reprovação. Como se a reprovação se devesse unicamente pela vontade de uma professora e não pela vontade deles mesmos. Queriam algo que não lhes trouxessem problemas com a polícia. Algo que caísse fundo no espírito da professora e ela nunca mais lecionasse na vida. Precisaria ser algo extraordinariamente maléfico para o ânimo da professora. E que só ela pudesse sentir, em toda a profundidade, a angústia de viver com um medo permanente na alma.

As idéias eram muitas: cortar as orelhas do filho. Ela não tinha filhos. Arrumar uma amante para o marido. Ela não era casada e não tinha namorado. Muitas idéias estapafúrdias saíram das cabeças privilegiadas. Até que um perguntou:

- Qual é o maior medo do homem?

- Impotência.

- Não. Ela é mulher. O medo de qualquer pessoa?

- A morte.

- É.

- Precisamos pensar em algo que a faça ficar aterrorizada. Mas tem ser algo psicológico, não físico. Onde mora a morte?

- No cemitério.

- Devemos fazer algo que a faça sentir o medo e que ele entre na vida da professora e viva com ela para sempre.

- Que tal desenterrarmos uma cova recente e colocarmos o caixão com o defunto dentro da casa dela?

- E deixaremos um cartão desejando uma feliz morte.

- Ótima idéia!

- Todos concordam?

- Sim.

- Vamos começar hoje mesmo. Às onze horas nós nos encontraremos aqui e iremos ao Cemitério da Lapa roubar uma sepultura. Depois colocaremos dentro da casa da professora com o cartão.

- Você sabe onde ela mora?

- Vamos olhar no catálogo telefônico.

Combinaram os detalhes do plano.

Onze e trinta da noite. Chovia. Os cincos estavam dentro do Cemitério da Lapa. Uma lanterna iluminava o caminho. Procuravam um túmulo recém aberto. Todos sentiam medo, mas ninguém dava o braço a torcer. Ouviram o pio de uma coruja. Arrepiaram-se e tremeram. Em suas mentes estavam arrependidos. Já não queriam mais se vingar. Foi o calor da hora e da notícia da reprovação. Eles foram avisados o ano inteiro de que se não estudassem seriamente seriam reprovados. Não acreditaram. A culpa era deles. Agora estavam ali no frio, sob uma chuva, num cemitério, quase meia-noite.

Outro pio de coruja.

Dessa vez mais perto. Instintivamente se aproximam uns dos outros. A lanterna iluminava pouco. A chuva estava espessa. A umidade da chuva envolvia a todos e enchia os tênis de barro e água.

- Ali tem uma.

- Onde?

- Ali. Naquele canto perto do muro.

Pegaram a coroa de flores e jogaram para o lado. As pás começaram a cavar. A terra molhada dificultava o trabalho. Chegaram ao caixão. Retiraram da cova. Resolveram cortar caminho pelos fundos do cemitério. Caminharam segurando as alças do caixão. O barro deixava os tênis pesados.

Caminhavam lentamente em meio à escuridão e a chuva forte. Não viram que havia um buraco um plástico preto tampando a sua boca. O buraco fora feito para canalizar as águas das chuvas. Mas as obras foram interrompidas. Toda a terra retirada estava na borda do buraco. Uma montanha de terra.

O primeiro se desequilibrou soltou a alça e se segurou no segundo, que se segurou no terceiro, que se segurou no quarto, que se segurou no quinto e todos caíram dentro do buraco. O caixão se abriu na queda e o corpo de uma mulher jovem rolou para fora do caixão. Desesperados, no escuro, tentavam escalar as paredes, mas não conseguiam.

Várias tentativas. Nada.

Ouviram, num relógio distante, as badaladas da meia-noite. A chuva caía mais forte. Se encorpava e caía torrencialmente, forte, furiosa, carregando tudo o que encontrava pela frente. Vários bairros foram alagados.

Ensopados e enlameados gritavam por socorro. A montanha de terra que estava na borda do buraco começou a deslizar para dentro dele. De repente, a terra toda desabou sobre eles.

Todos morreram soterrados.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

quinta-feira, 14 de junho de 2018

A Vingança da Casa


O BAIRRO DA LAPA É TRANQUILO. Possui muitas ruas arborizadas onde os moradores caminham tranqüilamente. Numa dessas ruas, sem saída, morava um casal de velhos aposentados. Passavam os dias ocupados com o jardim, os pássaros na gaiola e a costura. Moravam na mesma casa que compraram quando se casaram. Viviam naquela casa há quarenta anos. A casa tem três quartos, sala, cozinha, dois banheiros, um quintal no fundo e um jardim na frente, onde cultivam rosas.

Ambos têm sessenta anos. E esperam pacificamente a morte. Desejam que ela os leve juntos para o descanso eterno. Um não saberia viver sem o outro. Ali criaram os dois filhos. Ambos moram no Canadá. Mas esqueceram que têm pais vivos. Apesar do descaso dos filhos, eles são felizes porque um basta ao outro. Começaram as vidas sozinhas e vão terminar sozinhos.

A aposentadoria dos dois não estava dando para comprar os remédios caros que usavam. Resolveram alugar dois quartos. Colocaram uma placa no poste. Logo surgiram candidatos. O casal entrevistava os candidatos querendo saber sobre os hábitos e costumes dos pretendentes.

Escolheram dois jovens e acertaram as condições da locação.

A vida seguia seu curso normal, agora só quebrado pela presença dos jovens. Eles não eram de ficar muito em casa. Chegavam tarde e saíam cedo. Diziam que cursavam faculdade: um de direito e, o outro, de engenharia. Mas os velhos nunca os via estudando ou carregando livros. Nem mesmo livros nos quartos havia. No entanto, eles pagavam o aluguel pontualmente e não causavam transtornos.

Os meses batiam na porta e traziam novos dias monótonos e as estações do ano se sucediam. Às vezes, no final do domingo, os jovens ficavam ouvindo as histórias do casal. Faziam algumas perguntas e se recolhiam.

Os jovens notaram que ninguém visitava os velhos. Ninguém telefonava para eles, ninguém escrevia para eles e até mesmo os vizinhos os ignoravam. Os velhos davam a entender que eram sós no mundo. A casa era grande e espaçosa. Ficava numa rua tranquila. Se vendida, renderia um bom dinheiro.

Os jovens comentaram isso com os velhos e eles responderam que naquela casa estava a vida dos dois e que ela fazia parte da história deles. Ela sabia todos os segredos, havia presenciado todas as alegrias e tristezas dos dois e que jamais venderiam a casa enquanto fossem vivos, além do que, não precisavam de dinheiro. Depois que partissem, os filhos poderiam fazer o que quisessem com a casa.

Pela primeira vez mencionaram a existência de filhos. Os jovens, interessados, perguntaram mais algumas coisas e logo perceberam que os filhos ignoravam totalmente a existência dos velhos. Os jovens se entreolharam e a sorte dos velhos estava decidida.

Num domingo frio do mês de julho, os jovens entraram no quarto dos velhos. Os dois estavam dormindo. Eram cinco horas da manhã. Com os travesseiros os jovens sufocaram os velhos. Depois desceram até a cozinha, saíram no quintal e abriram duas covas. Carregaram os corpos até as covas e os enterraram.

Aliviados e satisfeitos saíram. Andaram pela cidade. Quando estava anoitecendo, voltaram para casa. Tudo estava como eles haviam deixado. A semana passou e a rotina da casa não foi quebrada.

Para a venda da casa precisavam forjar um documento de doação da casa para um deles. Só assim poderiam efetuar o negócio. Procuraram nos documentos pessoais dos velhos e encontraram papéis com as assinaturas deles. Um dos jovens começou a praticar a imitação da assinatura para poder assinar o documento e reconhecer a firma em cartório.

Um mês passou. Tudo estava indo muito bem. No mês seguinte, começaram a acontecer fatos estranhos.

A casa possuía um jardim com roseiras vermelhas, amarelas e brancas. As rosas começaram a desabrochar. No entanto, todas vermelhas, de um vermelho escuro, muito escuro, quase negro. No princípio, eles não notaram a mudança, mas, num domingo, quando um deles estava olhando o jardim, notou que as rosas, antes de cores variadas, agora eram todas vermelhas. Mas de um vermelho muito forte. Os transeuntes se admiravam da cor vermelha daquelas rosas. Alguns jovens enamorados roubavam rosas do jardim, mas elas murchavam imediatamente após serem cortadas.

No fundo da casa, no local onde eles enterraram os velhos, nasceu uma planta. Quando abriu a primeira flor, exalava um perfume forte que invadia todos os cômodos da casa. Era um cheiro doce e enjoativo. Os rapazes cortaram várias vezes a planta, arrancaram pela raiz, mas ela sempre ressurgia, cada vez mais forte. Uma flor fênix. Aquele cheiro os incomodava muito. No entanto, nenhum vizinho viera reclamar do cheiro da flor.

Sete meses se passaram. Os rapazes mal ficavam na casa. Tudo os incomodava. Os jovens já haviam forjado o documento e estavam prontos para efetuarem a venda da casa.

Contrataram uma imobiliária e foi colocada uma placa no poste. A placa ficou dois dias afixada e sumiu misteriosamente. A imobiliária colocou outra. Sumiu de novo. Foram várias placas. Todas sumiram. Resolveram escrever na parede o anúncio da venda. No dia seguinte não havia nada escrito. A imobiliária desistiu pensando que os jovens estavam brincando com eles.

Os jovens procuraram outra imobiliária e os mesmos fatos se sucederam. Colocaram um anúncio no jornal do bairro. Ninguém respondeu ao anúncio. Verificaram que o endereço e o telefone estavam errados. O funcionário disse que estava no ramo há vinte anos e que nunca havia acontecido um fato desses. Anunciaram de novo. Saiu outro endereço e outro telefone publicado. Resolveram publicar num jornal de grande circulação. O endereço e o telefone saíram publicados errados.

Num domingo frio do mês de julho o telefone tocou às cinco horas da manhã. O jovem atendeu e uma voz, que parecia estar vindo de muito longe, disse que gostaria de comprar aquela casa e que dias depois ligaria para marcarem um encontro. Voltou a dormir.

Acordaram. Um deles foi ao banheiro tomar banho. Fez a barba. Ligou o chuveiro. A água morna caía mansamente sobre seu corpo. Na cozinha, o outro preparava o café quando ouviu um grito vindo do banheiro. Era um grito horrível. Correu até o banheiro. A porta estava trancada. Nunca trancavam. Bateu e ninguém respondeu. Arrombou a porta. O banheiro estava nublado. Cheio de vapor denso. O jovem estava caído no chão do banheiro com queimaduras pelo corpo todo. Levou-o até a cama e correu até a farmácia mais perto. Comprou pomada para queimaduras.

Quando voltou ele não estava no quarto. Procurou-o pela casa e o encontrou ao lado da árvore que teimava em não morrer. Carregou para dentro de casa e colocou na cama. Passou a pomada por todo o corpo.

Mais tarde, ele acordou e contou que estava tomando banho com água morna quando a água começou a cair fervendo sobre o seu corpo. Tentou abrir a porta do box, mas ela não abria. Estava emperrada. A água caía por todos os lados. Tentou fechar o registro. Ele fechava mas a água continuava caindo. Não aguentando mais de dor berrou e desmaiou.

À noite uma febre alta tomou conta de seu corpo. No outro dia amanheceu morto.

O jovem carregou o corpo até o quintal e enterrou. Felizmente era ele que sabia assinar os nomes dos velhos. Assim poderia vender a casa por qualquer preço e sumir dali. Na segunda-feira colocou uma placa na parede e anúncios em todos jornais. Esperou dois, três dias, nada. O telefone não dava sinal de vida. No domingo, às cinco horas da manhã, o telefone tocou. Uma voz fraca disse que desejava comprar a casa. Marcaram para a manhã da terça-feira seguinte.

Aliviado, o jovem voltou a dormir. Quando acordou, foi para a cozinha preparar o café. Ao tentar abrir a porta da geladeira não conseguiu. A porta estava emperrada. Forçou, forçou até que conseguiu abrir. Tudo, dentro da geladeira, estava congelado como se ela tivesse se transformada num freezer. As coisas eram blocos de gelo.

Assustado, foi até a sala e ligou a televisão. Estava passando um filme antigo com dois velhos que sorriam para ele. Desligou a televisão, mas ela continuou passando a imagem dos velhos. Arrancou o fio da tomada, a imagem continuou na tela. Jogou a televisão no chão. Foi até a porta da rua e não conseguiu abrir. Estava trancada. Tentou as janelas, estavam trancadas. Era prisioneiro da casa.

Sentou-se no sofá. O coração batia acelerado. Seu corpo tremia e estava banhado de suor.

Uma sede enorme invadiu sua garganta. Abriu a torneira, não saiu água. Correu para o banheiro, abriu a torneira, o chuveiro, nada. No outro banheiro também. Desceu, entrou na cozinha. Abriu a despensa para pegar uma cerveja e deparou com vários ratos mortos. Eles haviam comido toda a comida e roído as latas. A mancha de cerveja derramada estava espalhada.

Desligou a geladeira para descongelar os alimentos e beber o gelo derretido. Depois de horas tudo continuava congelado na geladeira. Lembrou-se do telefone. Ligaria para a polícia. Mas o telefone estava mudo.

Sete dias. A sede e a fome estavam atormentando sua mente, seu corpo. Deitou-se.

Lá fora já estava escuro novamente. Só restava esperar a morte. Alguns dias depois ela apareceu com os dois velhos ao lado dela.

Numa rua tranquila da Lapa existe uma casa abandonada. Os moradores de rua dizem que ela é assombrada. Ninguém tem coragem de dormir ali.


O Pacto Maldito e Outras Histórias de Morte - José Cláudio da Silva - Casa do Novo Autor, São Paulo, 2006

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O Acidente!


ANDRÉ E MARCELA, NOIVOS agora, estavam voltando para Londrina após a cerimônia do noivado ocorrido na casa dos pais do noivo. Estavam muito felizes e mal sabiam o que estava para acontecer.

André, cansado da festa e da viagem, pensando no bem-estar da noiva e no seu, queria chegar em casa o quanto antes para descansar.

Sempre cuidadoso no trânsito, desta vez estava um bocado acima da velocidade permitida, não se dando conta disso. Afinal, naquela hora da noite a estrada estava vazia. Apesar do cansaço e da velocidade, a viagem transcorria bem, até que ao fazer uma curva fechada, foi surpreendido por um caminhão que trafegava em sentido contrário e estava ligeiramente invadindo a faixa contrária.

Se André dirigisse em menor velocidade, talvez conseguisse controlar o veículo, o que infelizmente não foi possível. O veículo rodopiou para fora da curva e veio a colidir com uma árvore. O motorista do caminhão nem se deu conta do ocorrido e seguiu viagem.

Segundos após a colisão, Marcela, quase inconsciente e muito assustada, reparou que sangrava muito, não conseguia respirar direito e sentia uma forte dor no abdômen.

Neste estado, não conseguia discernir no que estava acontecendo, mas, apesar das fortes dores, pode notar que André a retirou no veículo e passou a andar no acostamento da estrada com ela no colo.

Sentiu-se aliviada ao pensar que seu grande amor, por estar com ela no colo, deveria estar melhores condições do que ela. Enquanto carregava Marcela, André se queixava de fortes dores nas pernas. Aqueles momentos pareciam intermináveis, a estrada estava deserta e não aparecia ninguém para ajudar.

Devido aos ferimentos e ao forte sangramento, Marcela começou a desmaiar. Segundos antes, pode ouvir claramente André dizer:

- Meu amor, daqui a instantes você vai estar bem, será medicada e vai ficar boa muito rápido. Lembre-se sempre que meu amor por você sempre foi a coisa mais verdadeira da minha vida.

Após ouvir essas palavras, Marcela perdeu os sentidos, os quais foi recuperar dois dias depois, no hospital, ao sair do coma.

A primeira coisa que fez ao recobrar a consciência foi perguntar por André.

O médico lhe disse que tudo estava bem, para que não se preocupasse e que tentasse descansar. Após ser sedada novamente, a conversa que se seguiu entre o médico e a mãe de Marcela foi, no mínimo, estarrecedora:

- Senhora Júlia, por enquanto sua filha não pode saber que o noivo dela faleceu no mesmo instante. Pobre rapaz, ficou preso às ferragens pelas pernas e não resistiu à hemorragia. Já ela teve mais sorte ao apenas fraturar as duas pernas...

- Sim doutor, ela não saberá por enquanto. André era como um filho para mim. A tristeza por sua perda nem me permite raciocinar... Como é que, apesar dos ferimentos, ela foi parar a 50 metros de um posto policial... três Km do local do acidente...

E você, o que acha?

Teria Marcela percorrido essa distância nas condições em que estava, ou será que, mais do que um torpor irracional de insensatos apaixonados, o amor é uma força tão poderosa que, em casos extremos, pode atravessar a cortina que separa a vida da morte?

Com certeza André sabe a resposta!


Conto extraído e modificado do site http://www.alemdaimaginacao.com/Contos.html - Imagem retirada do gibi de terror Calafrio, uma edição de 1982. Acredito mesmo, que esta "estória" foi retirada do dito gibi.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Um Mundo de Água

Quadrinhos do Terror apresenta: "Um Mundo de Água" - A Creepy mergulha num conto de pavor e fantasia -, da revista Creepy nº 1. História: Larry Ivie; Arte: Larry Williamson e Roy Krenkel; Publisher: James Warren.





Ressaca


JONAS ACORDOU, MAS não abriu os olhos. Mesmo a pouca claridade que penetrava por suas pálpebras já fazia arder seu órgão visual. Decidiu ir aos poucos. “Que horas seriam?”, pensou. Ainda de olhos fechados, movimentou-se para sentar na beirada da cama. Dor. Cada músculo de seu corpo clamava por descanso. O cérebro parecia lutar para escapar da cabeça, jogando-se de encontro aos limites cranianos. A boca implorava por água. Jonas prometeu para si mesmo que pararia de beber. Mais uma vez.

Lentamente, revelou aos olhos as cores e formas do mundo. Esboçou uma careta enquanto tentava se adaptar à claridade. Com esforço descomunal, ergueu-se e caminhou até o banheiro. Cada passo, um duelo interminável contra o próprio corpo. A cama o chamava de volta como uma amante insaciável.

Prestes a abrir a porta do banheiro, Jonas teve a impressão de ver, pelo canto do olho, uma pequena protuberância na cama. Voltou a cabeça e confirmou. Havia volume sob o cobertor.

Tentou lembrar da noite anterior, mas não conseguiu. O corpo sobre a cama era pequeno. Muito pequeno. Decidiu se aproximar. No instante em que dava o primeiro passo, a coisa se mexeu. O cobertor, que até então tapava o que quer que estivesse ali, deslizou para o lado, revelando boa parte do corpo.

Jonas ficou estático por alguns segundos. Em sua cama, envolto nos lençóis, estava um ser de aproximadamente um metro e vinte de altura, de cor pálida e braços e pernas tão finos que pareciam não ter carne. A cabeça era gigante se comparada ao corpo, e os dedos longos pareciam outros membros.

Em uma mistura de medo, dúvida e até certo fascínio, Jonas apenas observava a criatura em seu sono pacífico. O que repousava em seu leito parecia um daqueles alienígenas vistos em retratos falados realizados por pessoas abduzidas. Pequeno, cabeça desproporcional, olhos grandes, boca reduzida.

Foi quando a criatura acordou. Virou-se para Jonas. Os olhos possuíam cor uniforme, um azul escuro quase preto. Por alguns segundos, Jonas e o alienígena encararam um ao outro. O corpo de Jonas tremia. A criatura, incrivelmente ágil, pulou da cama e caminhou em direção a Jonas. Ele deu três passos para trás, chocando-se contra a parede. O ser parou, inclinando a cabeça para a direita.

– Olá, Jonas – falou, quase sem mexer o pequeno orifício que parecia ser a boca.

Jonas nada respondeu. Continuava esmagando seu corpo na parede, tentando compreender o que acontecia. A pequena criatura à sua frente o observava com atenção.

– Pelo visto – prosseguiu o alienígena –, você não se lembra do que aconteceu ontem. É melhor assim.

Aos poucos, Jonas percebeu que o ser não estava ali para machucá-lo. Ainda assim, não conseguia entender o que se passava.

– Ontem? – perguntou Jonas, com a voz trêmula. – O que... o que aconteceu ontem? Quem é você?

A criatura nada respondeu. Encarou Jonas por rápidos momentos e virou-se em direção à porta do quarto. Ali, parou e olhou mais uma vez para Jonas, que continuava encostado na parede.

– Muito obrigado, Jonas. A noite de ontem foi muito importante para mim. Para todos nós.

O alienígena abriu a porta e começou a sair do quarto quando Jonas gritou.

– Espere! – o medo começava a sucumbir, enquanto a curiosidade se agigantava. – Você não vai embora enquanto não me explicar o que aconteceu aqui. Quem é você e o que aconteceu ontem? Preciso saber.

– Você não quer saber.

Essas palavras causaram um calafrio na espinha de Jonas. No fundo, ele não queria mesmo. Mas precisava saber.

– Eu quero saber, sim. Acordar com uma ressaca gigantesca, sem qualquer lembrança da noite anterior, é comum na minha vida. Mas não com um alienígena na cama.

Jonas estava parado na porta do quarto, com a criatura a dois metros de distância. O ser deu meia volta e foi até a cama. Sentou-se na beirada, com as esguias pernas balançando no ar, como criança em sala de espera. Disse:

– Alienígena? Não, Jonas. Não sou alienígena – fez uma breve pausa. – Sou um ser humano, assim como você.

A reação de Jonas foi de espanto. Não poderia ser. Aquela criatura que tinha diante de si não era humana.

– Humano? Você é humano?

– Sim, Jonas. Sou uma mulher.

– Mas... mas o que aconteceu com você?

– Evolução. Darwin. Aquela coisa toda das espécies. Jonas, vim do futuro.

Incrédulo, Jonas nada respondeu. Aquela criatura, aquela abominação estética, não poderia ser humana. Como a espécie teria evoluído para aquele monstro de aspecto grotesco? O silêncio de Jonas foi a deixa para o ex-alienígena continuar.

– Sim, Jonas. Sou uma mulher. Uma viajante do tempo. E não sou a primeira. Discos voadores? Extraterrestres? Tudo isso que continua um mistério para vocês será explicado em poucos anos. Mas adianto que não são seres de outros planetas. Não são marcianos. São vocês. Somos nós. Nós em nossas máquinas do tempo voltando para estudar o passado. Para aprender sobre como era a vida aqui. Sobre o que vocês fizeram certo e o que fizeram errado. Aprender com o passado para melhorar o nosso presente.

Jonas tentou balbuciar algumas palavras. As perguntas afloravam à mente em tanta velocidade que ele não conseguia organizar os pensamentos.

– Vejo que está tendo dificuldades para aceitar isso, mas é verdade – prosseguiu a criatura. – O que você vê aqui são anos e anos de evolução. Você deve estar se perguntando: como deixamos de ser saudáveis como vocês para assumir essa aparência frágil? Máquinas, Jonas. Computadores. Nunca parou para pensar na aparência dos chamados extraterrestres?

A criatura levantou-se da cama, dando a Jonas uma melhor visão de seu corpo.

– Anos, vidas, gerações diante de máquinas. Digitando, pensando, longe da luz do sol. O resultado é o que você vê. Atrofiamento dos músculos, dedos longos, membrana sobre os olhos, cérebro desenvolvido, pele pálida. Não sou um alienígena. Eu sou sua descendente.

O ser parou de falar. Jonas, atordoado com o início de manhã mais estranho de sua vida, dirigiu-se até o banheiro em passos rápidos. Abriu a torneira e jogou água sobre o rosto.

– Tudo bem – disse Jonas, de maneira incisiva, entrando novamente no quarto –, vamos dizer que eu acredite nisso. Que você é, realmente, um ser humano, digamos, evoluído. Nada disso explica por que passou a noite na minha cama.

Até o momento, a criatura não mostrara nenhuma expressão no rosto. Era como uma máscara sem mobilidade. A única parte da face que ainda se mexia era a boca, ainda assim, com movimentos quase imperceptíveis ao falar. Agora, aquela mulher do futuro parecia ter se divertido ao dizer as seguintes palavras:

– Jonas, a gente teve o que vocês chamam de uma noite de amor. Cópula, fornicação, acasalamento.
Sexo, mais precisamente.

Um mal-estar tomou conta do corpo de Jonas. Em velocidade estarrecedora e irrefreável, tudo o que havia bebido na noite anterior decidiu se libertar. Não teve tempo para nada. O vômito saiu ali mesmo, sobre o carpete do quarto.

Segundos depois, ajoelhado com as duas mãos no solo, ainda sentindo o gosto nauseante do vômito em sua boca, Jonas disse:

– Mas... co... como? – perguntou, recobrando as forças e levantando-se. Resquícios do vômito ainda pendiam do lado de sua boca, e os restos de comida e álcool regurgitados adornavam seu quarto em uma poça cujo cheiro demoraria a se extinguir.

– Nós já o observávamos havia um bom tempo.

– Nós? – espantou-se Jonas.

– Sim, nós. Não vim para cá sozinha.

– E eu transei com todas vocês?

– Não, não. O plano era fazer você manter relações com apenas uma. A escolhida fui eu. Minhas colegas apenas ajudaram na pesquisa sobre quem seria um macho digno de dar continuidade à nossa espécie.

A criatura fez uma pausa de breves segundos. Jonas apenas ouvia, pasmo, tentando entender. O ser continuou:

– A questão é que estamos com um problema em nossa época. Os machos não estão conseguindo reproduzir. Os séculos de fascínio pelas máquinas, como eu disse antes, acabaram por atrofiar nossos músculos. Inclusive o órgão sexual masculino. São raros os que conseguem praticar o ato. Com isso, estamos quase beirando a extinção. Se não tomássemos uma atitude drástica, não teríamos futuro.

– E eu... eu fui essa atitude drástica?

– Como eu disse antes – prosseguiu a criatura, como se não tivesse ouvido a pergunta de Jonas –,observamos você há muito tempo. Queríamos um representante digno do gênero masculino. Alguém apto à reprodução, com genes fortes nesse sentido. Não foi difícil chegar até você, Jonas. Sua fama de... como vocês dizem?

– Pegador?

– Isso. Sua fama de pegador já é conhecida. Foi questão de esperar o momento certo. Ontem, quando vimos você alterado pelo álcool, achamos que era a hora de agir.

Jonas sacudiu os braços à frente, como se tentando apagar da mente tudo o que ouvira. Em seguida, foi até a estante mais próxima, pôs as duas mãos em uma das prateleiras e abaixou a cabeça. Voltou-se para a criatura e, com receio, falou:

– Então... então... você está grávida de mim? É isso?

– Pense em você como um salvador de sua própria espécie. Um messias.

Tudo era demais para Jonas. Sentou-se na beirada da cama e colocou as duas mãos na testa, olhando para o chão. Balançava a cabeça de um lado para o outro, incrédulo.

– Não acredito nisso – falou. – Vocês se aproveitaram de mim para engravidar. Tudo por que os homens de seu tempo são brochas?

A criatura estava prestes a perguntar o que significava aquela última palavra, quando foi interrompida por um alto som. Jonas, mesmo abalado com todas as recentes informações, saiu do quarto para a sala e correu em direção à porta de seu apartamento, de onde parecia ter vindo a origem do ruído.

Não foi longe. Sob o batente da porta destruída, estava uma criatura igual àquela que estava em sua casa.

Jonas não teve tempo para pensar. Assim que foi visto, o vidro de uma mesa no corredor voou em direção ao seu pescoço. Com agilidade atípica para quem enfrentava uma ressaca, Jonas jogou-se ao chão, escapando por milímetros do ataque.

Nos poucos instantes em que estava deitado, Jonas percebeu que a criatura não era igual à outra. Esse novo ser era maior e mais encorpado. Talvez um macho.

Jonas levantou-se e correu para trás do sofá. Espiou a criatura, ainda na porta, olhando diretamente para ele. Não sabia o que fazer. Ao contrário do ser com o qual passara a noite, a nova criatura parecia estar lá para machucá-lo.

O medo que já dominava Jonas apenas aumentou quando viu seus móveis levitarem. Sofá e cadeiras da mesa de jantar começaram a flutuar na sala, como em uma dança da morte. Jonas olhou para a criatura parada na porta mais uma vez. Os móveis, um a um, posicionaram-se a poucos metros de Jonas. Ele começou a andar para trás até encostar na parede. Logo à frente, o mobiliário permanecia ameaçadoramente no ar.

Foi quando o sofá entrou em movimento. Mas, em vez de esmagar Jonas, o móvel foi de encontro à criatura. O resto do mobiliário voador sentiu mais uma vez a ação da gravidade, voltando ao solo.

Jonas viu, saindo do quarto, a sua amante da noite. Ela perguntou:

– Você está bem?

Ainda tremendo, Jonas conseguiu responder:

– Sim, acho que sim – levou alguns segundos para se recompor e perguntou: – O que aconteceu? O que era aquilo?

– Meu marido. Ele sempre foi meio ciumento.

– Marido? Eu quase fui assassinado por um marido ciumento intergaláctico?

– Não. Já disse que não somos alienígenas.

– Meu Deus! – esbravejou.

Jonas arrumou o sofá que, agora, estava fora de lugar e sentou-se. A criatura se encaminhou até a porta e abriu-a. O marido permanecia no corredor, atirado no chão, aparentemente desacordado. A mulher voltou até onde Jonas estava.

– É minha hora de partir. Vou levar meu marido antes que aconteça algo.

A criatura aproximou-se e colocou sua mão sobre a de Jonas. Instintivamente, ele a retirou.

– Desculpe – falou. – Mas tudo isso é demais para mim.

– Não se preocupe. O objetivo da minha missão foi cumprido. Só tenho a agradecer. Você nos salvou. É um herói.

Jonas continuou sentado. Nada disse enquanto a criatura saía de seu apartamento.

Como centenas de vezes antes, a mulher que passara a noite com ele ia embora pela manhã.

por Silvio Pilau


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

O Palanque


AMANHECIA NA pequena cidade de origem alemã, e o velho Ruschel já trabalhava sozinho na montagem do palanque com o esmero de quem prepara um cadafalso. O evento estava marcado para as oito horas da noite em ponto, não seria tolerado qualquer atraso logístico. “Eles são os donos do tempo, da cidade e de todos aqui, eu, apenas um prestador de serviços, humilde, mas pontual, impecável, perfeito”. Era mais ou menos o que murmurava o alemão, enquanto serrava e pregava com precisão as grossas madeiras e os sarrafos devidamente afinados e lixados.

“Impecável, perfeito”, repetia medindo milimetricamente a madeira. Afiou mais uma vez, com delicadeza, os dentes já extremamente adelgaçados do serrote, sacou o lápis de carpinteiro da orelha, marcando a olho uma diagonal no lado mais largo do sarrafo, e serrou, passou a ponta do dedo na recente parte pontiaguda, colocou-o na mira do olho experiente e quase sorriu satisfeito. Impecável, perfeito. Pegou o formão da caixa de ferramentas, girou-o no ar com intimidade e começou a desbastar várias cunhas e cavacos para usos determinados.

Toda ação do carpinteiro se fazia rápida e sem gestos vãos. Uma ferramenta precisa e eficiente cumprindo um serviço indispensável, era como ele se sentia sempre, e aquela tarefa seria, sem dúvida, a mais importante e preciosa de todas, de toda a sua vida.

Aos poucos, a cidade começou a despertar, e os frequentadores do centro, um a um, foram surgindo na praça, onde um alto palanque se erguia em estado bem adiantado de montagem − pelo menos, o feio esqueleto da parte inferior que sustentaria toda a estrutura já estava coberto com um caprichoso tapume de lambri, com macho e fêmea perfeitamente justapostos sem deixar brecha alguma que permitisse olhares curiosos e analíticos para o seu interior. Se tinha uma coisa de que o velho Ruschel se orgulhava era o capricho do seu labor, não suportava críticas e desprezava os elogios.

As pessoas viam o palanque se aprontar como que sozinho, tamanha era a objetividade da montagem e a destreza do profissional, que, solitário, executava e limpava o ambiente com a sua obsessão germânica. Por temperamento, raramente aceitava ajudantes, muito menos nesse trabalho de extrema responsabilidade; era forte e se bastava. Não suportava intromissões, tanto que o pessoal chegava, cumprimentava o velho mestre, fazia algum comentário e, na falta de resposta, se afastava com respeito.

O sol subia, mas a obra era mais rápida e ficou pronta mais cedo que o previsto, bem antes do entardecer, permitindo que os organizadores montassem a iluminação, a decoração e os preparativos necessários com antecedência. O metódico marceneiro havia riscado no chão referências para cada elemento a ser colocado, cada coisa em seu lugar: mesa, caixas de som, microfones e, inclusive, o local onde cada autoridade deveria se colocar, conforme planta proposta por ele mesmo e aceita por todos; era impecável, perfeito.

Os “maiorais”, como ele dizia, ficariam alinhados de forma que o figurão mais importante se postasse bem no meio e avançado, já que o palanque, em seu frontispício central, era o vértice de um ângulo aberto, obtuso. Nesse desenho triangular, o prefeito teria maior destaque, ladeado à direita, pelo padre; à esquerda, pelo tenente-coronel, seguidos pelos vereadores, o gerente do Banco do Brasil, o tabelião e o empresariado graúdo, todos com suas respectivas esposas. O velho Ruschel foi rigorosíssimo nesse detalhe e só se afastou quando teve a certeza de que tudo seria cumprido à risca.

Às oito horas em ponto, a bandinha da Brigada Militar, situada na retreta da praça, ao lado do palanque, começou a tocar o hino da cidade, dando início à comemoração. A graudagem foi se chegando, sem pressa, na ordem inversa de importância; até o prefeito, com os seus mais de cento e sessenta quilos, se aproximar, cumprimentar a puxa-sacagem e subir, já eram mais de oito e meia, e o velho Ruschel, distante, sobre o pedestal de uma estátua, vigiava.

O grande prefeito, depois de muitos aplausos, iniciou seu discurso abrindo oficialmente o evento. A satisfação geral tomou conta da praça, a população inteira da pequena cidade estava presente, todos felizes e orgulhosos.

O protocolo era seguido a rigor, até que, no auge da festa, quando a bandinha atacava com uma polca para valorizar o ponto alto da fala do político-chefe, iniciaram uns estalos no madeirame do piso, que começou a ceder sob a pressão do peso das autoridades. Rapidamente, uma grande cratera se abriu no chão, e todos foram tragados pelo buraco, dessa vez em ordem direta de importância: o que cedeu primeiro foi a parte avançada do palanque, o frontispício; e tudo isso na frente de um povo pasmo.

A gritaria substituía o som da banda, que foi percebendo aos poucos a gravidade da situação, uma vez que nem todos os músicos enxergavam a cena. Foi um deus-nos-acuda, todos queriam subir no palanque para socorrer a nata social e política da cidade, que sucumbira tendo como plateia a sua própria população.

Os primeiros que chegaram lá em cima e olharam para dentro do buraco instintivamente recuaram aterrorizados. A cena era inimaginável, longas estacas verticais e pontiagudas minavam o solo inteiro. Todos os que caíram no buraco estavam cravados, estaqueados, com várias lanças atravessadas em seus corpos. Aquelas vidas, que até então brilhavam envaidecidas, de um instante para o outro, jaziam e agonizavam empaladas em uma armadilha ao mesmo tempo tosca e sofisticada.

Os gemidos agônicos aos poucos foram cessando, e já não havia mais sobreviventes, estavam todos mortos, uns sobre os outros, sobrepostos e trespassados. Uma massa ensanguentada formava um conjunto mórbido, achatado pela composição de estacas vermelhas que se sobressaía em uma geometria organizada e tétrica.

O primeiro impacto se transformou em pânico e desespero coletivo, emoções extremas foram vividas na noite mais cruel da história daquela comunidade.

Do alto do pedestal, o velho Ruschel murmurou: “Impecável, perfeito”.

por Pena Cabreira


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

CPL593H


AS HUMANAS NÃO SÃO nada para mim. Mulher nenhuma se compara com a amante que encontrei. Seu nome é CPL593H, e ela foi desenvolvida por mãos humanas para ser mais. Mais que humana. Mais que máquina. Mais que tudo. O prazer de quando nos encontramos foi místico, tóxico, me deixou por dias fora do ar. E eu amo tudo o que ela faz – a maneira carinhosa com que desliza pelas minhas veias até explodir no meu coração, o amor sinuoso de enguia elétrica que me desfibrila, me eletrochoca, me amacia a massa cinzenta, a voz rouca robótica e chiada que geme e geme e geme até me deixar jogado, um fio de saliva, no chão.

Quando nos conhecemos, eu andava mal. CPL593H, sem dúvida, salvou minha vida. Eu caminhava para casa tresnoitado, não sabia se amanhecia ou anoitecia. Ao chegar, fechei as janelas, cerrei as cortinas e me deitei no sofá. Tudo escuro. Comecei a escutar um zunido fino. Acendi um cigarro. O som foi se tornando mais grave até meu coração vibrar. Uma explosão. Luz se fez presente, e eu vi: uma orquídea de fumaça, ela se abrindo no ar, lasciva, para mim. Parecia ser feita de um metal cinzento e opaco, como ossos galvanizados ou a superfície de outro planeta, lampejos vermelhos surgindo em padrões geométricos pelo seu corpo que se construía na minha frente. Quando cessaram as transformações, uma esfera no topo e um par de rodas davam um ar vagamente humanoide. Eu não sabia o que fazer. O cigarro queimou meus dedos. Soltei no chão. Fiquei imóvel enquanto ela caminhava para mim. Estendeu mil tentáculos e me abraçou, me envolveu, me embalou. Uma sensação de calor químico, eletrodos me furando. Entrou no meu cérebro, no meu sangue, em mim. E eu soube. Soube que havia encontrado a minha mestra e redentora. Nos conectamos.

Daquele dia em diante, melhorei a olhos vistos: me tornei saudável, passei a frequentar mais locais de interação humana, me tornei o mais apto dos amantes, me livrei de vícios que minavam a minha saúde e lucidez. Minha família ficou contente. Nos últimos meses, pelo menos uma vez por semana, me alimentava na companhia de meus pais, que me olhavam, um potro saudável, pastando com eles. E faziam perguntas; eu respondia sorrindo, quando minha vontade seria vomitar bile, ácido de bateria verde na toalha de mesa. Mas, precavida, CPL593H fazia um concerto silencioso, estimulando alternadamente os centros de prazer do meu cérebro. A excitação era tanta que, às vezes, me impedia de falar, e aí era ela que falava pela minha boca. Nas primeiras tentativas, quando ela assumia o controle, era evidente, meu corpo se comportava mal. Mas, com a prática, até mesmo eu era incapaz de perceber qualquer diferença.

Dia comum, uma mulher na rua. Nos conhecíamos. Demos risadas. Semanas depois, juntos. Ainda que me seja impossível questionar, sempre tentei entender o porquê de se aproximar tanto assim de um humano. Mesmo que quisesse perguntar para CPL593H, isso já não seria mais possível. Nossa comunicação tinha sofrido atualizações drásticas, ela havia acabado de carregar o que restava dela para dentro de mim. Agora, eu e ela. No recheio dos ossos, nos fios de cabelo, em tudo. Suas demonstrações externas se tornaram raras, intensas, extenuantes. Eu, obsoleto.

O arremedo de envolvimento com a humana foi completo. Intercurso sexual, confissões, jogos de insegurança e entrega. Ela gostava da maneira metódica com que eu lhe dava atenção, nenhum detalhe passando incólume, até chegar o dia em que se esgotou a fonte. Não havia mais motivo para manter contato. Havia terminado de colher as amostras e cruzar os dados. Acreditava possuir uma definição clara desse objeto tão particular, o amor. Minha acompanhante, porém, não compreendeu quando eu lhe disse que havia terminado.

Foi atrás de mim, alcançando altíssimos decibéis, fazendo ameaças e acusações. Em um êxtase apreensivo, absorvi essa sucessão de excreções com interesse renovado. Eu e CPL593H havíamos acabado de nos deparar com uma complexidade não-prevista. Reformulamos, então, a programação, passamos a criar diferentes maneiras de verter esses novos e curiosos sucos. Agressividade, humilhação, mudanças abruptas de humor e demonstrações amorosas fora de contexto foram exaurindo a tal ponto nossa cobaia que ela começou a se mostrar progressivamente incapaz de fornecer e, presumo, sentir qualquer tipo de emoção. O embotamento chegou a um ponto tal que ela não saía mais da cama. Então, eu ia até ela. Até o final.

Ela me disse “chega”, e eu e CPL593H sabíamos que havia chegado. Agora, ela nos evitava a todo custo, tinha trocado a fechadura da porta, desligava o telefone chorando. Quando saía de casa, e eu a seguia, se desesperava. Até que não saiu mais. Entendemos, então. Nosso propósito estava quase completo. Acho que, no final das contas, até mesmo nosso objeto de estudo entendeu o que se passava.

Hoje, mais cedo, quando arrombei a porta, ao me ver, ela disse sussurrando que não tinha mais nada para mim. Mas tinha. Havíamos absorvido tudo o que podíamos retirar de alguém, mas algo faltava. E, para a conclusão de nossa pesquisa, finalmente saboreamos carne humana.

por João Kowacs Castro


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Cura-te a Ti Mesmo


SALA DO DIRETOR do centro de estudos era pequena e estreita, mas muito alta. A luz do sol entrava por janelas quase rentes ao teto, em raios brilhantes que iluminavam pequenos turbilhões de poeira.

A mesa do diretor ficava sobre um tapete de feltro embolorado bem no centro de um minilabirinto de estantes metálicas e cheias de livros, dessas que podem ser montadas e expandidas com paciência e uma boa chave de fenda.

A mesa em si era grande e velha. Cheirava como madeira velha. Paulo, o diretor em pessoa, socava fumo no cachimbo com o polegar enquanto explicava o trabalho do centro ao estagiário, um jovem recém-formado em medicina, recém-chegado:

– Como você sabe, a maior parte das curas paranormais acontece dentro de algum tipo de ambiente religioso – Paulo lambeu o polegar e, sem perceber, limpou o dedo sujo de saliva e tabaco na gravata azul. – Centros de diversas correntes espíritas, terreiros, templos pentecostais, na maior parte das vezes. Daí, você percebe como é difícil obter dados científicos a respeito do fenômeno. Isso acontece porque...

O diretor fez uma pausa para acender o cachimbo, que logo começou a fumegar. Um cheiro de chocolate amargo preencheu a sala.

– Porque as pessoas nesses lugares tendem a enquadrar a realidade na teologia. O fato de a Terra girar em torno do sol prova que tal atitude dificilmente conduz à verdade – Paulo sorriu. – Compreende?

– Claro – o jovem não conseguiu evitar que sua voz saísse rascante, como se viesse junto com um pigarro.

– Você não tem nenhuma forte convicção religiosa a esse respeito, tem? – o diretor não esperou pela resposta antes de prosseguir; a pergunta era estritamente protocolar. – Então, nós reunimos aqui pessoas que acreditam possuir algum dom especial e fazemos experiências em condições controladas. E é por isso que preferimos o termo curas paranormais a curas mediúnicas. Existe uma certa carga metafísica na palavra “mediúnica”, não acha?

– Com certeza. Mas...

– Mas? – pela primeira vez, Paulo encarou o estagiário com interesse, como se a adversativa fosse o primeiro sinal de inteligência vindo de um longínquo sistema solar. Ali, estava um rapaz magro, loiro, sardento, com íris tão claras que quase pareciam apagadas. De onde ele dissera que vinha a família? Holanda? Mas o garoto nascera no Brasil, ao menos segundo a ficha. – Alguma dúvida?

– Bem, sim. Como os “curandeiros” são testados? Vocês têm pessoas doentes aqui?

– Santo Deus, não! – a ideia parecia divertir o diretor mais do que propriamente escandalizá-lo. – Mas venha. Vou lhe mostrar.

– Aqui, é onde preparamos os testes – disse Paulo, fazendo um gesto amplo com os braços, como se para abarcar todo o espaço compreendido pelas paredes brancas, azulejadas. Eles estavam no laboratório. Ao redor, bancadas e jaulas com animais: porquinhos-da-índia, hamsters, alguns chimpanzés.

– Estes são os nossos pacientes – o diretor continuou. – Com os recursos que temos aqui, podemos criar tipos sortidos de doenças e deformidades e medir graus mínimos de recuperação aparentemente inexplicável. Assim, evitamos o golpe da velhinha na cadeira de rodas. E também descobrimos algumas coisas interessantes. Observe.

O estagiário acompanhou Dias até uma gaiola com dois hamsters.

– Vê o rato da direita? – perguntou o diretor, apontando para um animalzinho bastante ativo e excitado. – Há duas semanas, seccionamos sua coluna cervical. Para todos os efeitos, ele ficou tetraplégico.

– Incrível! E quem conseguiu curá-lo?

– O rato da esquerda.

Isso pegou o rapaz de surpresa; ele ficou quieto, com a boca aberta, como se à espera de palavras que não vinham.

– Reagi assim, também, quando me contaram – disse Paulo, rindo, dando tapinhas amistosos no ombro do jovem. – Mas revisamos todos os testes, e não há erro. O que parece provar que o dom da cura não é exclusivo da raça humana, mas comum a todo o reino animal... ou, ao menos, aos mamíferos.

– E vocês já sabem como isso funciona?

– Não, mas descobrimos algumas limitações interessantes. Por exemplo, até agora, só vimos curas paranormais funcionarem em casos de cicatrização. Podem ocorrer cicatrizações maravilhosas, como a do tecido nervoso no pescoço do rato, mas apenas cicatrizações. Até o momento, nenhum de nossos voluntários foi capaz de remover pedras dos rins, ou um apêndice inflamado, ou deter um câncer. Ao que tudo indica, a cura paranormal é o poder de induzir a uma rápida divisão celular no local da lesão.

– E como essa indução acontece? Força de vontade?

– Ainda não temos muita certeza. Só sabemos que o fenômeno afeta a aura vital.

– Aura vital? – por mais que tentasse, o estagiário não conseguia deixar de sorrir. Afinal, ele encontrara uma brecha de superstição no frio racionalismo do diretor! – Vocês trabalham com auras? Sempre achei que...

– Pois achou errado – Paulo não gostava daquilo, do ar de superioridade que as pessoas adquiriam quando ele mencionava auras. – Considere os tubarões, por exemplo.

– Tubarões?

– Tubarões. Têm órgãos especiais no focinho, que permitem detectar o campo elétrico gerado por matéria viva. Muito útil quando se é um predador e a presa pode se esconder mergulhando na areia do fundo do mar. E... – ele deteve a frase bruscamente, pensando no que dizer ou fazer em seguida. – Ora, venha cá.

– Esta é a grande prova que posso apresentar a favor do nosso trabalho aqui.

O diretor havia conduzido o estagiário até uma sala no subsolo no edifício e, agora, lhe mostrava um homem obeso, completamente nu, conectado a uma série de monitores por uma verdadeira teia de fios e eletrodos, mergulhado em um aquário de vidro – apenas a boca e o nariz estavam acima da linha d’água. Se é que, pensou o jovem, o líquido era água.

– Tubarões detectam auras sentindo o campo elétrico que se forma entre o organismo da presa e a água salgada do mar – disse Paulo. – É como se a pele fosse uma membrana de bateria na verdade. Daí, o tanque.

– Mas...

– Você é um médico, não? – provocou o diretor. – Então, examine-o!

O estagiário procedeu com cautela. Tocou o corpo. Com cuidado, e depois de obter um olhar de aprovação de Paulo, retirou um braço e a cabeça do homem da água por alguns instantes, moveu-o no interior do tanque, produzindo um som de chapinhar que lhe pareceu um tanto quanto sinistro, irreal. Testou a rigidez nas articulações, olhou as pupilas e, por fim, disse, sacudindo as mãos para secá-las:

– Esse homem está morto.

– Há quanto tempo?

– O corpo já atingiu a temperatura ambiente, mas não há manchas de sangue nas costas... e não há sinais de decomposição. É difícil dizer.

– Esse homem está aqui, nesse estado, há duas semanas.

O estagiário engoliu em seco, lembrando-se de que Paulo iria ser seu superior hierárquico – buscando uma resposta educada.

– O que o senhor diz é... impossível – o jovem murmurou, engasgando com as palavras. – Em duas semanas... Nesta temperatura... na água... não notei sinais de conservantes, ou...

– O cadáver estaria se desmanchando, dissolvido, bolhas de gordura humana boiando na água, dentes podres, a água exalando um fedor insuportável. Eu sei! Mas venha, veja os monitores.

As telas negras com linhas verdes eram bem conhecidas: eletrocardiograma, eletroencefalograma. Nenhuma delas indicava qualquer sinal de atividade.

Próximo desses aparelhos, havia um grande painel de luz fluorescente, onde se prendiam dois negativos fotográficos. As fotos apresentavam os contornos de um corpo humano, bastante acima do peso, envolto numa ofuscante aura branca. Ao lado, um monitor de tomografia mostrava, com sua imagem colorida e cambiante, que ainda havia alguma atividade no interior do corpo.

– Este homem era um de nossos voluntários mais talentosos – disse Paulo. – Ele morreu de ataque cardíaco há 15 dias. Também, com esse peso... Mas o fato é que nenhuma decomposição teve início, e a aura, como mostram as fotos, parece tão firme como antes, embora, na verdade, esteja decaindo aos poucos. Fizemos uma pequena cirurgia exploratória e descobrimos que seu coração está se regenerando lentamente, células novas ocupando o lugar daquelas mortas durante o enfarto. Percebe? Ele está cicatrizando a causa da própria morte.

– Tal processo precisaria de... energia. Proteínas. Como...?

– Ele está drenando da própria aura. É por isso que o campo elétrico parece decair aos poucos: a energia está sendo consumida pelo processo de cura. É um cabo de guerra, veja bem. Se o campo se exaurir antes que a regeneração esteja completa, a morte irá se consumar. Se resistir... É claro que estamos dando uma pequena ajuda, mantendo as condições ambientais estáveis, desobstruindo as artérias, cuidando do equilíbrio eletrolítico da água.

– O senhor está dizendo que esse homem pode voltar a viver?

– Estou dizendo que, embora o sistema bioquímico de seu corpo tenha sido destruído, o sistema eletromagnético ainda luta para se recuperar. É a Ressurreição, dois mil anos depois.

Depois dessa última demonstração, o estagiário foi conduzido ao quarto que ocuparia, uma sala nua com cama, banheiro e escrivaninha. As malas já estavam lá.

Sua primeira atitude foi tomar um banho frio, na esperança de que o choque térmico clareasse as ideias. Cada vez que pensava no assunto, porém, ele se convencia de haver cometido um erro – um grande erro, ao não se identificar adequadamente após a pergunta sobre “crenças religiosas”.

Mas como explicar a vocação, o chamado que o levara ao seminário e, depois, o arrancara de lá, conduzindo-o à faculdade de medicina, aos centros de curandeirismo, à busca incessante pelos sinais da mão d’Ele em cada vida salva, no alívio da dor?

Ao ouvir falar do centro, o estagiário havia imaginado que aquele seria o seu lugar, um espaço onde a ciência e os misteriosos dons de Deus se reconheceriam em respeito mútuo. Mas o que ele vira – o quê? – vaidade. Blasfêmia. A ciência tentando ocupar o assento do Criador, a dizer, de forma zombeteira, que o cadáver flácido e inchado poderia se constituir numa símile do Salvador.

Não houvera tanque de água no Santo Sepulcro. Mas os óleos aplicados ao cadáver... Os íons metálicos da rocha... A esponja de vinagre...

Só quando terminou de mudar de roupa que se deu conta de que não vestira o pijama, como (ao menos conscientemente) pretendia. A roupa que usava era um conjunto de calças e moletom pretos, o tipo de traje que alguém escolheria para...

Esgueirar-se na noite.

Um delicado equilíbrio se rompera, e o jovem louro soube que lhe cabia reajustá-lo.

Chegar à sala no subsolo não era difícil. Os poucos seguranças do centro dedicavam-se apenas a vigiar as portas que davam para a rua – e não as instalações internas. Assim, o estagiário logo se viu diante do cadáver que se recusava a morrer.

Era um homem branco, cerca de 40 anos e 190 quilos. Gordo com aquele tipo de gordura que se concentra no tronco, deixando braços e pernas com uma aparência de abjeta fragilidade, e os peitos como se fossem seios flácidos de mulher. A barriga se revolvia em dobras que pareciam querer boiar na água rasa.

Pela primeira vez, o estagiário olhou com atenção para o tubo conectado à coxa direita; talvez o responsável pela tal “limpeza de artérias”.

Caminhando até a tela do tomógrafo, o jovem notou uma série de matizes coloridos que só poderiam significar um tipo de vida vegetativa, mantida a taxas metabólicas extremamente baixas. Mas mesmo esse diagnóstico era falso – pois o corpo atingira a temperatura ambiente, e não havia atividade cardíaca nem cerebral. Aquele era o quadro de um homem morto que não morria, uma aberração médica, um conceito que a própria linguagem não alcançava adequadamente.

Como matá-lo?

O problema ético surgiu ao mesmo tempo em que a questão prática. Como matar um morto? Assassinar um cadáver é pecado?

O estagiário começara a suar. Olhando ao redor em busca de uma solução para seu duplo dilema, encontrou um armário. Abriu-o: instrumentos cirúrgicos. Serras, bisturis, luvas.

É isso, pensou. Posso dissecá-lo – e não seria crime; seria aprendizado.

Equacionadas as duas questões, o jovem médico logo se preparou para o trabalho, selecionando o bisturi que pareceu mais adequado para a incisão torácica em Y.

Respirando fundo, aproximou-se silenciosamente do corpo. Será que o sangue vai se espalhar como fumaça colorida pela água?

O primeiro acesso de tosse foi tão violento que literalmente arremessou o estagiário três ou quatro passos para trás, fazendo-o derrubar a mesinha com os monitores, que caíram no chão com um som abafado, as telas espatifando-se como velhas garrafas vazias. O médico sentiu um estremecimento mórbido se apossar de seu corpo. A garganta e os pulmões ardiam, enquanto alguma coisa parecia abrir caminho lá de dentro, impulsionada por uma erupção.

Logo em seguida, veio a dor, por todo o tronco, que o obrigou a se ajoelhar no chão, com os braços cruzados sobre a barriga. E então a tosse voltou, convulsiva, e dessa vez veio acompanhada por pedaços ensanguentados de algo que o médico recém-formado, olhos arregalados, identificou como sendo os próprios pulmões.

No dia seguinte, a equipe de pesquisas encontrou dois cadáveres na sala. Um, o do estagiário, jazia de forma deplorável em meio a uma poça fétida de sangue. O outro, no tanque, começava a apresentar os primeiros sinais de decomposição. Leituras de aura foram feitas, e o resultado não mostrou qualquer resquício do campo. Era como se houvesse esgotado suas energias num último grande esforço.

Havia cacos de vidro, componentes eletrônicos, serras e bisturis pelo chão, e o estagiário calçava luvas cirúrgicas. A autópsia, realizada poucas horas depois pelo próprio Paulo, foi incapaz de encontrar a cavidade torácica – e isso porque uma massa anormal de tecido preenchia todo o espaço entre o peito e as costas: algo que havia empurrado os pulmões para fora, esmagado o coração e esmigalhado a coluna.

O atestado de óbito só dizia “câncer”.

por Carlos Orsi


Ficção de Polpa - Volume 2 - Organizado por Samir Machado de Machado - 2012.